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novembro 3, 2009
A tragédia pôs em pauta a questão dos acervos por Marcio Doctors, Jornal do Brasil
Matéria de Marcio Doctors originalmente publicada no Jornal do Brasil, em 24 de outubro de 2009.
Veja outros artigos no Dossiê Oiticica
RIO - A questão de como lidar com os acervos familiares dos artistas é muito complexa e a partir de agora estará em pauta, como uma das consequências da tragédia ocorrida com a obra de Helio Oiticica. Penso que devemos saber separar os fatos para não nos embolarmos neles. Percebo que há ressentimento em relação aos direitos das famílias sobre as obras. E o que, algumas vezes, pode parecer um abuso – e às vezes é – é mais consequência de um mecanismo de defesa e de insegurança, já que não há uma normatização de procedimentos a serem adotados. Vejo tudo isso como resultado da inexistência de uma estrutura maior por parte dos poderes políticos e econômicos capazes de proteger o patrimônio da arte brasileira. Não há vontade política e econômica clara nem orientação de como devemos proceder porque não existe uma consciência real da importância do valor da arte brasileira.
Incidentes como o da última semana servem para nos alertar de que estamos no caminho errado e que algo é preciso ser feito. Os herdeiros dos artistas neoconcretos têm nos dado uma grande lição, reforçando a iniciativa pioneira da família Portinari, de que é necessário cuidar da obra legada não só como valor econômico, mas também como valor cultural. A crescente presença internacional da arte contemporânea brasileira é também – mas não só – resultado do empenho das famílias em lutar para preservar o legado cultural de seus antepassados. Reconheço o esforço que tem sido feito por diretores de museus e pelo MinC nos últimos anos no sentido de buscar aparelhar melhor nossas instituições culturais. Mas ainda estamos muito distantes de uma situação minimamente ideal. Isso é o reflexo de uma tendência mundial de musealização da realidade humana, que se impõe ao mundo contemporâneo como sua condição e da qual não há como escapar, do que uma consciência real da importância do bem cultural. É como a questão ambiental ou a realidade digital: não dá para fechar os olhos, são caminhos sem volta. Falta a nós ainda aguçar nossas consciências e produzir uma mudança de mentalidade para a importância desse fato, para evitar chorar depois pelo que não foi feito. Não se muda o passado; só se muda o futuro. Enquanto não entendermos que proteger o patrimônio cultural é proteger também a economia, estaremos infelizmente pensando os museus e todo o patrimônio tangível e intangível como um “enfeite” e não como uma poderosa ferramenta econômica, que sinaliza a importância do valor agregado para uma economia.
Gostaria de citar dois exemplos para melhor evidenciar essa idéia: de um lado o Beaubourg, que foi o polo de revitalização de uma área degradada de Paris que era o Marais; de outro, Juazeiro do Norte, cuja economia hoje vive em torno da invenção plástica de Mestre Vitalino. O investimento em cultura no mundo da atualidade contemporânea é vital, já que, se a economia gira em torno da tecnologia (a imaginação científica tornando realidade o imaginário humano) a arte é a usina da imaginação humana, no sentido de “ser ter a realidade”, como nos indicou Clarice Lispector.
A questão não é se os acervos estariam em melhores condições nas mãos do governo ou das famílias. Eles estarão em melhores condições quando todos, herdeiros, poder público e privado tomem, em conjunto, para si a tarefa de proteger nosso patrimônio cultural, dividindo responsabilidades e obrigações. E para tal é necessário começarmos a pensar em uma mudança de atitude. É preciso cuidar. Cuidar do que já temos, respeitar corrigindo o que já foi feito e não temer o novo, cuidando do vir a ser. Cuidar no sentido amplo, para que não haja miséria social, econômica, política e cultural. Penso que estamos no caminho certo ao desejar rever nossas atitudes. Mas, mesmo assim trago dentro de mim um pensamento da Hannah Arendt: a banalização da realidade produz distorções monstruosas. Infelizmente é esta a realidade secular que vivemos no Brasil e da qual estamos lutando para escapar, ao buscar lidar melhor com a nossa baixa autoestima nacional.
* Marcio Doctors é curador da Fundação Eva Klabin
Esse assunto tem que ser discutido amplamente, gostei da articulação do texto do Doutor Doctors. As suas colocações são claras e objetivas e posso crer que a rapaziada do MINC deve ta de orelha em pé com os seus argumentos.
Tem uma colocação, no terceiro parágrafo, que o Doctors colocou que foi equivocada. Trata-se da arte do mestre Vitalino, ceramista popular que viveu na cidade de Caruaru, cidade da região do agreste do interior de Pernambuco. Caruaru é uma cidade de economia difusa com atividades agropecuária, têxtil, agrícola e industrial. A atividade comercial é bastante difundida na região, principalmente por ter a sua famosa feira-livre como um viés dessa atividade econômica. O turismo de eventos é outro viés da economia que tem amplitude no município, principalmente o tradicional São João e as corridas de Fórmula Truck que são realizadas no município. A feira da Sulanca, evento que ocorre no município todas as semanas, reúne várias fabriquetas do ramo da confecção e movimenta milhões de reais, principalmente depois da construção do shoping do fabricão onde se concentra centenas de pequenas lojas que desenvolve essa atividade. O artesanato, principalmente o de barro no qual podemos incluir os herdeiros do mestre Vitalino, é comercializado na feira-livre e no Alto-do- Moura (localidade que congrega vários artesãos). Porém, a cidade não vive economicamente da herança da invenção plástica desse artista popular morto nos anos 60.
Juazeiro do Norte, cidade da região do Cariri cearense, citada pelo Doutor Doctors, tem atividade econômica semelhante a que citei em relação a Caruaru. O seu artesanato também não se configura como atividade econômica principal do município. Afirmar que Juazeiro do Norte, cuja economia vive em torno da invenção plástica do mestre Vitalino, é algo tão distante da realidade local quanto Ceará e Pernambuco estão de Paris.
Pena que o artigo do doutro Doctors foi publicado no Jornal do Brasil com tamanho equívoco.