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outubro 21, 2009
Marcio Doctors - Respostas para a Folha de S. Paulo sobre o incêndio do acervo Oiticica
1 - Indepedente do direito de herança, vc acha que deveria haver algum mecanismo que protegeria a obra dos artistas contra eventuais abusos por parte das famílias?
Penso que a pergunta não está bem formulada: ela parte do pressuposto de que haja eventuais abusos por parte das famílias dos artistas. Eu acredito que a questão é mais ampla. O que pode parecer um abuso é um mecanismo de defesa frente a inexistência de uma conjuntura maior por parte dos poderes políticos e econômicos para proteger o patrimônio da arte brasileira. Não há ainda vontade política e econômica clara de como devemos proceder porque não há uma consciência real da importância do valor da arte brasileira. É uma pena! Tragédias como a ocorrida com o acervo de Helio Oiticica servem para nos alertar de que estamos no caminho errado e que algo é preciso ser feito. Penso que os herdeiros dos artistas Neoconcretos têm nos dado uma grande lição, reforçando a iniciativa pioneira da família Portinari, de que é necessário cuidar da obra legada pelo artista não só como valor econômico, mas também como valor cultural. A crescente presença internacional da arte contemporânea brasileira é também -mas não só-, resultado do esforço das famílias estarem lutando para preservar o legado cultural de seus antepassados.
2 - Você acha que o patrimonio legado por artistas do porte de Lygia Clark, Leonilson e o próprio Helio Oiticica, estariam em melhores condições se pertencessem a instituições públicas?
Não necessariamente. Reconheço o esforço que tem sido feito por diretores de museus e pelo Minc nos últimos anos no sentido de buscar aparelhar melhor nossas instituições culturais. Mas ainda estamos muito distantes de uma situação minimamente ideal. Esse esforço, que reconheço, é mais o reflexo de uma tendência mundial de musealização da realidade humana, que se impõe ao mundo contemporâneo como sua condição e da qual não temos como escapar, do que uma consciência real da importância do bem cultural. É como a questão ambiental ou a realidade digital: não dá para fechar os olhos. Nos falta ainda aguçar nossas consciências e produzir uma mudança de mentalidade para a importância desse fato, para evitar chorar depois pelo que não foi feito. Não se muda o passado, só se muda o futuro. Portanto, enquanto não for entendido que proteger o patrimônio cultural é proteger também a economia, estaremos infelizmente pensando os museus e todo o patrimônio tangível e intangível como um “enfeite” e não como uma poderosa ferramenta econômica, que sinaliza a importância do valor agregado para uma economia. Gostaria de citar dois exemplos para melhor evidenciar essa idéia: de um lado o Beaubourg, que foi o pólo de revitalização de uma área degradada de Paris que era o Marrais; de outro, Juazeiro do Norte, cuja economia hoje gira em torno da invenção plástica de Mestre Vitalino. O investimento em cultura no mundo da atualidade contemporânea é vital porque a economia gira em torno da tecnologia, que é a imaginação científica tornando realidade o imaginário humano. E a arte é a usina da imaginação humana, no sentido de “ser e ter a realidade”, como nos dizia Clarisse Lispector.
Portanto, a questão não é se os acervos estariam em melhores condições em instituições públicas. Eles estarão em melhores condições quando todos, herdeiros, poder público e privado tomem, em conjunto, para si a tarefa de proteger nosso patrimônio cultural, dividindo responsabilidades.
3 - Você teria mais algum comentário sobre a situação de sábado?
Foi uma tragédia. Um pesadelo do qual estamos ainda despertando. E mais do que tudo penso que Helio, na dimensão solar que traz no seu próprio nome, entrou em combustão para nos indicar mais uma vez os caminhos da arte brasileira. É preciso cuidar. Cuidar no sentido amplo: cuidar para que não haja miséria social, econômica, política e cultural. Para mim o que ficou foi um pensamento da Hanna Arendt de que não podemos banalizar a realidade. Infelizmente é esta a realidade que temos vivido no Brasil.
SOBRE A PERDA DE 90% DA OBRA DE HÉLIO OITICICA PARA SEMPRE
Hoje é quinta feira, são mais ou menos dez da noite e se passaram seis dias da perda de 90% da obra de Hélio Oiticica para sempre. De hoje em diante, ouviremos falar de uma época em que havia parangolés e penetráveis. Hoje não há mais quase nenhum.
Há dias que falo nisso e já aborreci muita gente. Então resolvi colocar no papel o que penso sobre o acontecido.
Meu nome é marcelo lachter e sou livreiro. Digo isto para que fique claro que não sou artista ou crítico de arte ou colecionador ou galerista. Da arte, sou usuário.
Gostaria de dizer que o que escrevo não é para crucificar uma família. Não tenho nenhum interesse que não o pela obra, pelo valor estético. Arte é uma coisa importante para mim. As vezes entendo e, num dia bom, faço relações.
Não era particularmente ligado à obra de Hélio Oiticica mas gostava. Gostava de ver, gostava da viagem.. acho que entendia um pouco... mesmo sem ser crítico ou scholar... a importância... o que estava acontecendo... o que estava em questão. Enfim, essas coisas de arte. Lembro-me de ir ver alguma coisa dele no Centro, de vez em quando.
Aprendi aos 19 anos que arte você tem que ir lá olhar de vez em quando porque volta e meia você olha olha e não consegue ver nada. Não rola. Você olha olha e nada. Não conecta. Não sei. O fato é que sempre achei que arte você tem que ir ver de vez em quando. As vezes a gente sai assobiando “ah, tá... agora entendi”. As vezes não sai assobiando nada.
Como disse no começo, meu interesse não é o de crucificar ninguém. Não me interessa. O que quero propor é para o futuro. Enfim, para que a gente aprenda com o que aconteceu.
E o que aconteceu?
O que aconteceu é que 90% da obra de Hélio Oiticica se incendiou. A coleção estava numa casa da família no Jardim Botânico. Não estava num cofre de banco, não estava no MAM, não estava no museu Hélio Oiticica. A coleção, que em 2050, mais ou menos. seria minha e sua, não estava em nenhum desses lugares. Essa coleção não existe mais. Era minha e sua e agora não é de mais ninguém.
O fato de ter ou não seguro, neste caso, é irrelevante. Porque não se pode repor o que se perdeu. Não há como pagar um seguro de algo muito valioso e único. É compreensível, do ponto de vista da lógica financeira, que a coleção não estivesse segurada. Mas isso não importa. Infelizmente não faz diferença.
Hélio Oiticica tinha um museu. O museu Hélio Oiticica. Independente da política do momento, da quantidade de dinheiro do momento, dos ventos do momento, a obra tinha que estar no museu Hélio Oiticica. O certo é que estivesse lá. É simétrico. É claro que deve haver uma explicação. Mas num mundo ideal, a coleção de obras de Hélio Oiticica deveria ficar no museu Hélio Oiticica. Para mim, que sou usuário, era melhor que estivesse no museu Hélio Oiticica. Amanhã, sexta-feira, estaria lá...
O incêndio deve ter uma explicação. Talvez até uma boa explicação. Mas não há explicação para o fato de que o certo é que a coleção NÃO deveria estár lá. Não é o certo que ela estivesse lá. Isso é apenas algum dos possíveis destinos. E para mim não importa. Amanhã, sexta-feira, não estará lá!
Mas não vou ficar aqui batendo em cachorro morto. Gostaria de fazer uma sugestão.
1. A lei de direito autoral tem que ser mudada. Não sei exatamente como, não sou especialista e nem me interessa. Mas posso dizer como eu gostaria que fosse depois de mudada.
a) o artista é dono de sua obra. Faz o que quiser. Vende, recompra, dá. Só não pode dar para a família. Se quiser dar alguma coisa para a família, vende o que quiser e dá o dinheiro. Obra não pode.
b) Quando o artista morre, seu acervo que estava em seu poder e da família é passado para o estado. Cai em domínio público no momento da morte. Nada mais pode ser vendido, negociado etc. Acaba o período de 70 anos até que a obra caia em domínio público.
c) Para que isso funcione e as obras não se percam em algum porão escuro e úmido, o estado admite que:
1.1 quem sabe guardar coisas em nossa civilização é banco. Os bancos são o lugar onde guardamos coisas de valor. Parece óbvio que quem mais entende de guardar no Ocidente é banco.
1.2 O estado é o dono dos objetos e o banco tem a guarda. O banco pode organizar exposições, associar sua imagem à obra, usar em propaganda etc. O estado deve trabalhar junto. Empréstimo de obras para outros lugares, acesso de pesquisadores e curiosos. Essas coisas. Mas quem toma conta é um banco.
Vou dar um exemplo. Eu me sinto seguro em relação as fotos do Marc Ferrez. Elas agora estão com o Unibanco. Não é porque é o Unibanco. É porque é um banco. Nesse caso específico, os donos são interessados no assunto e é óbvio que vão guardar direito porque guardar valores é o negócio deles. E eu fico com a sensação de que se eu realmente precisar ver alguma foto, conferir alguma pista, vai ter um jeito e vai estar tudo da melhor forma possível.
Se essa for uma solução ruim, vamos procurar outra. Mas o que quero que fique bem claro é que NÃO QUERO FAMÍLIAS CUIDANDO DE OBRAS DE ARTE. QUERO O ESTADO JUNTO COM OS BANCOS.
Posted by: marcelo lachter at outubro 23, 2009 6:32 PM