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outubro 21, 2009
Parangolé Pamplona você mesmo guarda?? por Patrícia Palumba
Texto publicado no blog de Patrícia Palumba.
Logo agora que o Brasil começava a dar a devida importância para sua obra, o acervo de Helio Oiticica queima no Rio de Janeiro. Num incêndio trágico tudo o que era guardado na casa da família desse artista de vanguarda dos anos 50 e 60, o mais antenado com o mundo daquela época aqui no Brasil, foi destruído. Hélio Oiticica criou os famosos parangolés e vestiu com eles os moradores do morro da Mangueira. Oiticica fez as caixas penetráveis, obras de arte para entrar dentro, para vivenciar sensações, e uma delas se chamava Tropicália. Foi daí que surgiu o nome do movimento que revolucionou a música brasileira. E Caetano Veloso nem o conhecia pessoalmente quando o nome da obra lhe foi entregue de bandeja. Caiu como uma luva.
O penetrável Tropicália era formado por duas tendas com areia e brita espalhadas pelo chão, araras e vasos com plantas e uma espécie de labirinto que percorria a tenda principal, às escuras. Ao fundo um aparelho de televisão ligado. Helio Oiticica defendia a antropofagia como o único caminho da cultura verdadeiramente brasileira, original, não colonizada.
Adriana Calcanhotto, ligada em cinema, literatura e artes plásticas fez sua homenagem com Parangolé Pamplona no disco Maritmo: “Parangolé Pamplona você mesmo faz, com um retângulo de pano de uma cor só… e é só dançar, é só deixar a cor tomar conta do ar…”
Na prestigiosa galeria de arte Tate Modern, em Londres, Helio Oiticica fez uma mostra histórica e levou seus parangolés tropicais.
O que mais me assusta nesse incêndio trágico é saber que obras e acervos espalhados por esse Brasil estão por aí nessa situação precária. Hoje perdemos a obra de Hélio Oiticia e a todo momento quando uma rádio muda de endereço, por exemplo, milhares de horas de gravações históricas, de documentos culturais importantíssimos, são literalmente jogados no lixo em nome da falta de espaço. Ou será por falta de vontade, de entendimento, de educação? Quando será que esse país se levará à sério? Quando será que os investimentos em cultura e educação ganharão a importância que tem as ampliações de portos, rodovias, duplicação de marginais…
Parangolé Pamplona você mesmo guarda?
É triste.
Quero acrescentar aqui outro lado mal divulgado sobre o Hélio que acho importante ressaltar neste momento quando arte virou industria e coporativismo:
Tendo em vista o que tenho recebido por e-mail, considero meu dever, nesta hora, testemunhar sobre o que observei bem de perto enquanto mantive bastante proximidade com o Hélio.
Tanto em Nova York, de 1973 a 1975, como também depois que ele regressou para o Brasil, até o momento em que me mudei para os Estados Unidos, no início de 1980.
Penso que você vai achar este testemunho importante. E, por favor, sinta-se livre de compartilhá-lo com quem quer que seja, inclusive com o resto dos envolvidos na discussão.
Primeiro, quero ressaltar que Hélio, durante todo este tempo de nossa bela amizade, continuou produzindo sua obra com extremo cuidado, carinho e precisão. Era um amante da precisão, a ponto que, por exemplo, se ele estivesse batendo à máquina (lembre-se que naquela época não existiam computadores, e nem me lembro se Hélio tinha máquina eletrica, me parece que não, já que seu dinheiro era ultra incerto). Pois bem, se ele estivesse batendo à maquina e cometesse um erro, ele jamais usava a tinta branca de correção, mas tirava imediatamente o papel da máquina e começava a bater tudo de novo. Juro que o vi fazer isto várias vezes.
Hélio vivia numa extrema frugalidade. SEMPRE viveu assim e até mais frugal depois que voltou para o Brasil. E foi dentro desta pobreza franciscana (Hélio morreu dormindo num colchão, no chão, naquele apartamento que a Sônia, ex-mulher do Jorge Salomão, emprestou para ele). Foi dentro desta grande precariedade que ele continuou criando a sua obra. Tecida das veias da adversidade.
Por exemplo, Hélio nunca pegava táxi. Não tinha dinheiro para isto. Mas nem por causa disso eu o vi se queixando. Não se queixava jamais. Achava até gostoso andar de ônibus. Dizia que quando eles disparavam, no Aterro, ele curtia um "barato".
Lógico que de vez em quando pintava 'grana', mas não da arte, desta nunca!, já que ele era 'marginal ao mercado',
E por falar na ética do 'marginal', me lembro muito bem de uma tarde em que estávamos Guy Brett, eu e mais um garoto inglês (hóspede de um dos ninhos do Hélio) no apartamento da Segunda Avenida. Na parede perto da janela estava colado um belo retrato dele, tirado por uma de suas amigas prediletas. Comentando a beleza da foto, o Guy perguntou se ele podia ter uma cópia. Como o Hélio só tinha aquela, ele retirou a foto com todo cuidado da parede, já que ela lá estava colada com pedaços de fita gomada enrolada e disse pro menino inglês:
- "Fulano, vai lá embaixo e faça uma cópia xerox desta foto para o Guy. MAS, (disse bem sério e bem enfaticamente), ANTES DE POR A FOTO NA MÁQUINA DE XEROX DO INDIANO AÍ DE BAIXO, POR FAVOR CUBRA AS COSTAS DA FOTO COM UMA FOLHA DE PAPEL.
Ao que o menino meio tonto, meio sem entender, perguntou:
- NAO ENTENDI, HÉLIO. Por que a necessidade de colocar uma folha de papel nas costas da foto?
_ PARA QUE OS RESÍDUOS DA FITA GOMADA NO REVERSO DA FOTO QUE A PRENDIAM NA PAREDE NÃO SUJEM A MÁQUINA DO CARA!!!!
Por falar em xerox, o Hélio fazia xerox de tudo. De todas as cartas que recebia, que mandava, de tudo que escrevia. Numa época em que não havia processos digitais. Arquivava tudo, tudo dele e do que as pessoa davam para ele.
Tudo era arquivado em pastas detalhadamente e cuidadosamente organizadas, num apartamento entulhado até o teto com - desde coisas que ele encontrava na rua até caixas e mais caixas de slides, maquetes, parangolés, etc. E diga-se de passagem que dentro desta precariedade toda tudo foi preservado da melhor maneira possível. Ele era ao mesmo tempo Dionísio e Apolo.
Suas TVs eram preto e branco (de segunda-mão, óbvio) e creio que nem projetor de slides tinha. Quando vi a "Cosmococa", ele me mostrou o trabalho naqueles antigos e pequenos 'slide viewers", onde ele mesmo mudava o slide um a um.
Sei de cadeira o que ele passou, pois meu processo de me dedicar à arte sem ter grana para isto não foi muito diferente.
Dele eu ouvi:
- A ARTE é a amante mais cara que você pode arranjar. Com mesquinharia nao se faz arte.
E Hélio não era só generoso com sua arte, que trouxe sempre muito prazer e 'insights' a todos nós, mas ele foi também o colega mais generoso que conheci. Depois dele, só a Lygia e o Bill.
Ele era generoso quando comentava o meu trabalho: iluminando meus encontros ou minhas possíveis saídas. Era generoso com seu tempo, tempo de sobra em que dispendíamos em looongas e quase diárias conversas telefônicas. E era generoso nos presentes com os quais agraciava todo mundo.
Não sei se deu para dar uma ideia do porque eu quis escrever este texto:
Eu o escrevi porque achei necessário lembrar que esta obra que perdemos, obra para todos nós tão importante. foi criada dentro de uma grande precariedade de meios e de apoios.
HEROICAMENTE.
E é este o lado do artista heroi,que teimou em inventar o tempo todo, remando contra a maré dos críticos (que tardaram para entendê-lo) e do mercado, e que eu quero testemunhar.
Regina Vater, Austin Texas outubro 2009
"Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso."
Fernando Pessoa
Posted by: Janaina Paes at outubro 26, 2009 3:51 PM