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outubro 20, 2009

Texto de Glória Ferreira sobre o incêndio do acervo Oiticica

2009 seguia seu curso, praticamente afásico em relação aos 50 anos da primeira exposição do Neoconcretismo − salvo uma pequena e quase inexpressiva mostra no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro − quando as obras de Hélio Oiticica se esfumaçam... provocando um choque nesse torpor, embora as palavras ainda não encontrem sintaxe passível de expressar esse gigantesco vazio.

Já há algum tempo sucedem-se comentários descabidos, ressentidos, de críticos e por vezes de artistas, até mesmo cariocas, sobre a possível usurpação da projeção de Hélio Oiticica e de Lygia Clark sobre a arte brasileira contemporânea. Situação reveladora de nossa incapacidade de incorporar criticamente a memória ao presente e, assim, absorvê-la, enriquecendo a reflexão sobre a produção atual e também histórica no Brasil. Se é bem verdade que às vezes o reconhecimento internacional da força da obra desses dois artistas tenda a tudo agregar ao neoconcretismo, não é menos verdade que essa aceitação fortalece o solo histórico em que se constituíram ao lado de muitos outros artistas e tendências, deslocando a percepção da produção de arte brasileira como sucedâneos, fissurando, de certo modo, o hipotético universalismo da narrativa historiográfica da arte ocidental.

Mas Parangolés, Grande Núcleo, Bólides, Maquetes e muitas outras obras hoje são restos queimados, cinzas. Catástrofe que se abate sobre um projeto que ao longo de 27 anos, por relações familiares e de amizades, assegurou a presença da obra de Hélio Oiticica no mundo, disponibilizou documentos e outros materiais para pesquisas, revelando-se, contudo, incapaz, em termos privados, de assegurar sua preservação. Catástrofe que é de todos nós e da cultura em geral, e cuja responsabilidade maior é do poder público brasileiro, inoperante na constituição de coleções públicas. Boa parte dessas obras deveria estar em museus brasileiros, com salas especiais. Coleções não apenas de suas obras, mas conjuntos que permitissem romper a permanente invisibilidade de que padecemos de nossa própria história e que se soma à invisibilidade dos trabalhos de arte internacional. Cabe lembrar que a proposta da Prefeitura do Rio de Janeiro de assegurar lugar para a obra de Oiticica com a criação do Centro de Arte Hélio Oiticia revelou-se de profunda incompetência em seus jogos de poder.

Do incêndio do MAM-RJ, em 1978, a herança revebera até hoje como perda de um lugar central da arte contemporânea na cidade. Lugar que foi de encontros e de presença de uma coleção pública, e, desde então, vem sendo de sucessivas tentativas de recuperação. Se esse incêndio nos privou de obras, entre muitos outros, de Mondrian, Picasso, Magritte e dezenas de trabalhos de Torres Garcia, não deixemos silenciar sua proposta de resistência cultural e poética – “Nosso norte é nosso Sul”. Já é hora também de transformarmos o célebre grito de alerta de Hélio Oiticica, “Da adversidade vivemos”, em estratégia, parafraseando-o, “de caracterização de um povo”.

A ação de sua arte no mundo será, helàs, para sempre inseparável da dor.

Glória Ferreira

Posted by Cecília Bedê at 7:09 PM | Comentários(5)
Comments

lindo texto!
e lúcido e equilibrado, qualidades raras num momento como esse...
só um pequeno comentário, bem atrevido, pra continuar pensando: duas dimensões aparecem separadas: "relações de amizade e familiares" e "poder público inoperante". Nós temos responsabilidade nesse GAP. não podem continuar sendo as relações familiares e de amizade a garantir a visibilidade pública de artistas importantes (ou a própria presença da arte na sociedade!).
é um anacronismo do qual somos também co-responsáveis.

Posted by: fabiana eboli santos at outubro 21, 2009 4:37 PM

Concordo, Fabiana, com o seu comentário.

Infelizmente somos um meio que colabora com governo quando esse ou aquele indivíduo é convidado. (E o pior é que nem sempre a colaboração é efetivada, lembra da Comissão que o Macieira inventou para nos calar em relação às esculturas de Mazeredo?) Não sabemos construir uma participação coletiva, uma representação social. Não sabemos ser sociedade, apenas estar do lado do poder... É uma herança renascentista da qual não conseguimos nos afastar.

Estamos as vésperas de conferências municipais e estaduais aonde deveríamos escolher temas e representantes para a grande Conferência Nacional de Cultura em 2010. Pergunta se alguém sabe alguma coisa a respeito?

Outra coisa importante seria acompanharmos os trabalhos do Colegiado Setorial de Artes Visuais, alguém faz isso?

Ou seja, o Brasil até que começa a mudar com o desenho da participação social na construção de políticas públicas, mas e nós?

Posted by: Patricia Canetti at outubro 22, 2009 6:08 PM

SOBRE A PERDA DE 90% DA OBRA DE HÉLIO OITICICA PARA SEMPRE


Hoje é quinta feira, são mais ou menos dez da noite e se passaram seis dias da perda de 90% da obra de Hélio Oiticica para sempre. De hoje em diante, ouviremos falar de uma época em que havia parangolés e penetráveis. Hoje não há mais quase nenhum.

Há dias que falo nisso e já aborreci muita gente. Então resolvi colocar no papel o que penso sobre o acontecido.

Meu nome é marcelo lachter e sou livreiro. Digo isto para que fique claro que não sou artista ou crítico de arte ou colecionador ou galerista. Da arte, sou usuário.

Gostaria de dizer que o que escrevo não é para crucificar uma família. Não tenho nenhum interesse que não o pela obra, pelo valor estético. Arte é uma coisa importante para mim. As vezes entendo e, num dia bom, faço relações.

Não era particularmente ligado à obra de Hélio Oiticica mas gostava. Gostava de ver, gostava da viagem.. acho que entendia um pouco... mesmo sem ser crítico ou scholar... a importância... o que estava acontecendo... o que estava em questão. Enfim, essas coisas de arte. Lembro-me de ir ver alguma coisa dele no Centro, de vez em quando.

Aprendi aos 19 anos que arte você tem que ir lá olhar de vez em quando porque volta e meia você olha olha e não consegue ver nada. Não rola. Você olha olha e nada. Não conecta. Não sei. O fato é que sempre achei que arte você tem que ir ver de vez em quando. As vezes a gente sai assobiando “ah, tá... agora entendi”. As vezes não sai assobiando nada.

Como disse no começo, meu interesse não é o de crucificar ninguém. Não me interessa. O que quero propor é para o futuro. Enfim, para que a gente aprenda com o que aconteceu.

E o que aconteceu?

O que aconteceu é que 90% da obra de Hélio Oiticica se incendiou. A coleção estava numa casa da família no Jardim Botânico. Não estava num cofre de banco, não estava no MAM, não estava no museu Hélio Oiticica. A coleção, que em 2050, mais ou menos. seria minha e sua, não estava em nenhum desses lugares. Essa coleção não existe mais. Era minha e sua e agora não é de mais ninguém.

O fato de ter ou não seguro, neste caso, é irrelevante. Porque não se pode repor o que se perdeu. Não há como pagar um seguro de algo muito valioso e único. É compreensível, do ponto de vista da lógica financeira, que a coleção não estivesse segurada. Mas isso não importa. Infelizmente não faz diferença.

Hélio Oiticica tinha um museu. O museu Hélio Oiticica. Independente da política do momento, da quantidade de dinheiro do momento, dos ventos do momento, a obra tinha que estar no museu Hélio Oiticica. O certo é que estivesse lá. É simétrico. É claro que deve haver uma explicação. Mas num mundo ideal, a coleção de obras de Hélio Oiticica deveria ficar no museu Hélio Oiticica. Para mim, que sou usuário, era melhor que estivesse no museu Hélio Oiticica. Amanhã, sexta-feira, estaria lá...

O incêndio deve ter uma explicação. Talvez até uma boa explicação. Mas não há explicação para o fato de que o certo é que a coleção NÃO deveria estár lá. Não é o certo que ela estivesse lá. Isso é apenas algum dos possíveis destinos. E para mim não importa. Amanhã, sexta-feira, não estará lá!

Mas não vou ficar aqui batendo em cachorro morto. Gostaria de fazer uma sugestão.

1. A lei de direito autoral tem que ser mudada. Não sei exatamente como, não sou especialista e nem me interessa. Mas posso dizer como eu gostaria que fosse depois de mudada.
a) o artista é dono de sua obra. Faz o que quiser. Vende, recompra, dá. Só não pode dar para a família. Se quiser dar alguma coisa para a família, vende o que quiser e dá o dinheiro. Obra não pode.
b) Quando o artista morre, seu acervo que estava em seu poder e da família é passado para o estado. Cai em domínio público no momento da morte. Nada mais pode ser vendido, negociado etc. Acaba o período de 70 anos até que a obra caia em domínio público.


c) Para que isso funcione e as obras não se percam em algum porão escuro e úmido, o estado admite que:
1.1 quem sabe guardar coisas em nossa civilização é banco. Os bancos são o lugar onde guardamos coisas de valor. Parece óbvio que quem mais entende de guardar no Ocidente é banco.
1.2 O estado é o dono dos objetos e o banco tem a guarda. O banco pode organizar exposições, associar sua imagem à obra, usar em propaganda etc. O estado deve trabalhar junto. Empréstimo de obras para outros lugares, acesso de pesquisadores e curiosos. Essas coisas. Mas quem toma conta é um banco.

Vou dar um exemplo. Eu me sinto seguro em relação as fotos do Marc Ferrez. Elas agora estão com o Unibanco. Não é porque é o Unibanco. É porque é um banco. Nesse caso específico, os donos são interessados no assunto e é óbvio que vão guardar direito porque guardar valores é o negócio deles. E eu fico com a sensação de que se eu realmente precisar ver alguma foto, conferir alguma pista, vai ter um jeito e vai estar tudo da melhor forma possível.

Se essa for uma solução ruim, vamos procurar outra. Mas o que quero que fique bem claro é que NÃO QUERO FAMÍLIAS CUIDANDO DE OBRAS DE ARTE. QUERO O ESTADO JUNTO COM OS BANCOS.

Posted by: marcelo lachter at outubro 23, 2009 6:52 PM

o risco que gerou esse fato lamentável, e muito bem posto em seu artigo, está nesse momento acontecendo com o acervo de paulo bruscky e de outros artistas importantes. a grande pergunta é: o que deve ser feito efetivamente? e por quem?
o que vc fez,escrevendo esse artigo, deve ser reverberado com muito vigor.

Posted by: cyane pacheco at outubro 26, 2009 8:53 PM

o risco que gerou esse fato lamentável, e muito bem posto em seu artigo, está nesse momento acontecendo com o acervo de paulo bruscky e de outros artistas importantes. a grande pergunta é: o que deve ser feito efetivamente? e por quem?
o que vc fez,escrevendo esse artigo, deve ser reverberado com muito vigor.

Posted by: Cyane Pacheco at outubro 26, 2009 8:57 PM
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