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Como atiçar a brasa

 


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novembro 19, 2007

É de fama e dinheiro que se trata a arte?, por Luciano Trigo, Folha de São Paulo

É de fama e dinheiro que se trata a arte?

Texto de Luciano Trigo, originalmente publicado na Folha de São Paulo, no dia 19 de novembro de 2007.

Leia também os artigos:
É do mundo que a arte trata de Moacir dos Anjos (Como atiçar a Brasa, 20/11 e Folha de S. Paulo, Ilustrada, 28/11).
Paranóia ou Mistificação? de Marcos Augusto Gonçalves (Folha de S. Paulo, Ilustrada, 22/11)
Entrando na discussão e procurando outras direções de Luiz Camillo Osorio (Como atiçar a Brasa, 28/11)
A maior violência contra a arte é querer falar dela sem ela de Laura Vinci (Folha de S. Paulo, Ilustrada 28/11)
Resposta da artista Débora Bolsoni (Máquina de Escrever, 27/11)
Idéias fora do tempo, tréplica de Luciano Trigo (Folha de S. Paulo, Ilustrada, 01/12)
Arte e Fla x Flus de Daniela Labra (Como atiçar a brasa, 06/12)

O sucesso hoje não depende só do valor intrínseco de uma obra, mas sobretudo da capacidade do artista de se inserir nas regras do mercado

Duas exposições recentes, uma no Rio e outra em São Paulo, sugerem interessantes questões sobre os rumos da arte contemporânea. Na instalação "Ainda Viva", a paulista Laura Vinci espalhou 7.000 maçãs sobre uma mesa de mármore branco e o chão de uma galeria; "Quebra-Molas", da carioca Débora Bolsoni, reproduziu um redutor de velocidade feito com uma tonelada de massa de paçoca de amendoim. As duas têm em comum a deliberada efemeridade e o recurso a comestíveis como matéria-prima.

Solicitado por uma revista a comentar as duas exposições, o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar afirmou: "Essa produção vai morrer aí. Trata-se da arte da boa idéia, da Caninha 51. [...] Não tem artesanato, não tem técnica, não tem linguagem. Já se usou de tudo: balde, bacia, ovo frito. É uma falta de imaginação, uma grande bobagem que não me interessa. [...] Uma mancha no chão, uma água escorrendo, tudo isso é expressão, mas não é arte". As artistas se justificam falando da transitoriedade das coisas vivas, de tentativas de simbolização etc.

Arte contemporânea é um tema em que é difícil tornar produtivo qualquer debate, pois sempre se cai num diálogo de surdos, num Fla-Flu, isto é, numa questão de adesão incondicional de torcedor, mais que de reflexão crítica. O que temos hoje são, de um lado, críticos, como Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant'Anna, que contestam a legitimidade e o valor de instalações como as de Laura e Débora, e, de outro, artistas que rejeitam esse julgamento como reacionário.

Menos do que saber quem está com a razão, importa constatar que desse atrito não sai nenhum desdobramento interessante. Por quê? Algumas hipóteses: - Os artistas se tornaram auto-suficientes: ignoram solenemente qualquer crítica que os contesta.

- Os críticos perderam a importância que tinham no processo de legitimação da pro- dução artística. - Hoje, para um artista, importa muito mais se inserir numa rede de relações composta de curadores, marchands e galeristas do que obter reconhecimento crítico.

Valor da arte
A noção de valor em artes plásticas é altamente subjetiva.

Mas é também condicionada pelo contexto histórico-cultural e pelo modelo de relação entre economia e cultura que estiver prevalecendo.

O sucesso de um artista hoje não depende somente, nem mesmo principalmente, do valor intrínseco do que ele produz, dos méritos plásticos ou estéticos de sua obra, mas sobretudo de sua capacidade de inserção num "sistema" que funciona cada vez mais segundo as regras do mercado, do consumo e da moda -mesmo quando se veste o surrado disfarce da transgressão.

Pode-se simpatizar com as maçãs de Laura e o quebra-molas de Débora -embora não representem nada novo nem original. Mas é preocupante que esse tipo de produção -desligada da realidade, das questões contemporâneas, de compromissos, da História, do presente, em suma, da vida real- monopolize os espaços da arte hoje. É uma produção que pode até trazer fama, viagens e dinheiro a quem a faz, mas é disso que se trata?

As duas instalações pecam por serem obras inofensivas, fechadas em si mesmas, que não se articulam com nenhum processo exterior a elas próprias. Os artistas têm obrigação de vincular suas obras à realidade? Não. Mas, quando instalações desse tipo se tornam a tendência dominante da arte, fica a impressão de esgotamento e alienação.

Todos os movimentos de vanguarda do século 20 que resistiram à prova do tempo devem parte de seu êxito ao fato de terem mobilizado a sociedade, de estarem associados a transformações sociais, culturais e tecnológicas que tinham um impacto direto na vida das pessoas. Basta pensar na relação do futurismo com a guerra e com velocidade trazida pela máquina ao cotidiano para constatar que o novo não era uma manifestação espontânea e gratuita de gênios individuais.

Mesmo o surrealismo, com seu projeto de libertar a criação de qualquer controle racional, só foi possível num contexto de consolidação da idéia freudiana de inconsciente; mesmo assim, numa segunda etapa, foi associado por André Breton a um projeto político de esquerda -o que é uma contradição em termos, mas confirma o papel do contexto histórico na arte de cada época. Quando Marcel Duchamp expôs um urinol ou desenhou um bigode na Mona Lisa, fez um gesto revolucionário, que rompia com as convenções e abria possibilidades infinitas para a arte. Mas, como todos os gestos fundadores, é irrepetível, porque o contexto já passou: fazer um bigode na Mona Lisa hoje seria apenas ridículo.

Abolidos os cânones, qualquer adolescente é capaz de transgressões parecidas, e as fronteiras entre a criação artística e a empulhação pura e simples se tornam muito tênues. A falência da crítica como fator relevante agrava esse quadro, já que quem legitima o artista hoje é o sucesso em si: se faz sucesso, é bom. Nada mais capitalista. Mas talvez seja mesmo este o destino de todas as artes (a literatura, a música etc), isto é, enquadrar-se numa lógica de mercado ou morrer.

Projeção no mercado
Mais grave que a repetição anódina de fórmulas que fizeram sentido na primeira metade do século passado é o esforço, igualmente ultrapassado, de épater a qualquer custo. Como é cada vez mais difícil chocar as pessoas, alguns artistas caem no ridículo, numa tentativa desesperada de ganhar projeção num mercado (pois é) cada vez mais competitivo. Duas obras que nos últimos meses apareceram na mídia são bem representativas desse fenômeno:

1) Numa exposição em Manágua, em agosto passado, o artista plástico costa-riquenho Guillermo Vargas Habacuc amarrou um cachorro num canto da galeria e o deixou lá sem comida, até morrer de fome, diante dos olhos perplexos dos visitantes. Habacuc se justificou: "O importante para mim era constatar a hipocrisia alheia. Um animal torna-se foco de atenção quando o ponho em um local onde pessoas esperam ver arte, mas não quando está no meio da rua morto de fome".

2) Em outubro, o artista plástico cipriota Stelarc convocou a imprensa para mostrar sua obra mais recente: ele implantou uma orelha no próprio braço. Não satisfeito, ele anunciou que quer implantar um microfone próximo à orelha, para captar o que estiver sendo "escutado".
Será arte?

LUCIANO TRIGO é jornalista e editor de livros.

Posted by João Domingues at 11:34 AM | Comentários(7)
Comments

Não acho que artistas contemporâneios ignorem a crítica. Eles ignoram certos críticos, como sempre foi, desde que o mundo é mundo, das artes.

Posted by: cristina pape at novembro 26, 2007 5:29 PM

Penso que é realmente importante ressaltar que: a ifinitude criativa da arte contemporânea - muito embora mais consistida em releituras do que em vanguardismo - além da soberania do mercado de arte, liderado por galerias, Salões e bienais, que por sua vez etabelecem a linguagem à ser explorada, impondo ao artista o melhor trajeto, em suas ópticas, para a condução de uma carreira, torna dificultoso o dicernimeto entre uma produção efêmera, mas, insinuante, de uma criação permeada pelo anseio desesperado da projeção. Este é algo realmente preocupante não apenas para os críticos, que deveras tornaram-se repetitivos por pejortivarem demasiada criação reacionária, mas, sobretudo por desconstruir cada vez mais o alicerce que atrai o espectador comum para um universo contido em uma existência restrita apenas às classes cultas e elitizadas, que desta forma podem exprimir suas opiniões.

Posted by: tito oliveira at novembro 26, 2007 8:21 PM

Apenas como informação, a prova escrita do mestrado em Poéticas Contemporâneas da Universidade de Brasília, realizada na última quinta-feira (22/11), utilizou este texto como questão, motivando os candidatos a tecerem comentários de acordo com a bibliografia recomendada no edital de seleção. Independentemente da posição que se tenha quanto a ele, acredito que levanta pontos pertinentes ao debate. Que seja uma oportunidade para os críticos da arte contemporânea exporem seu contraponto, como fez Moacir dos Anjos, e não a cristalização de um parecer retrógrado (como o de Monteiro Lobato sobre Anita Malfatti, o qual prevaleceu por muito mais tempo que o devido, fato que Marcos Augusto Gonçalves não recorda em seu artigo/comentário).

Posted by: Bianca Tinoco at novembro 27, 2007 9:21 AM

É o mesmo problema de sempre: pessoas frustradas porque gostariam de ser artistas se tornam... críticos! Tudo o que a gente não consegue ter, critica.... afinal, eu não quero a maçã, ela DEVE estar podre mesmo!

Posted by: Raquel at abril 4, 2009 8:42 PM

O artigo fala de "valor intrínseco” da obra e afirma que "A noção de valor em artes plásticas é altamente subjetiva", o que é um paradoxo. Se algo tem um valor intrínseco deveria ser reconhecido por todos e universalmente válido (algo como o juízo do belo kantiano).
O artigo associa a noção de "valor intrínseco” com "méritos plásticos ou estéticos", o que é um discurso Modernista (o autor foi até Greenberg e não leu mais nada do que veio depois?). A idéia de "valor intrínseco" da obra é um mito, já que o juízo crítico na arte é culturalmente determinado (Ah, se fosse possível perguntar a um índio botocudo o que ele acha de Cézanne!)
O artigo cita críticos "que contestam" e artistas "auto-suficientes" sem levar em conta que o espectador tem autonomia para julgar a obra independente do que é proposto pelo artista e das leituras feitas pelos críticos.
O artigo afirma que as obras não apresentam “nada novo nem original”, ou seja, insere a arte contemporânea na lógica vanguardista da “tradição do novo”.
O artigo nos diz sobre “fama, viagens e dinheiro”: não eram esses os prêmios da Academia Imperial de Belas Artes no século XIX? Pra ser artista hoje tem que fazer voto de pobreza?
O artigo afirma que “Todos os movimentos de vanguarda do século 20 (...) devem parte de seu êxito ao fato de terem mobilizado a sociedade, de estarem associados a transformações sociais, culturais e tecnológicas que tinham um impacto direto na vida das pessoas.”: mais uma prova de ingenuidade na crença de que a arte extrapolava os limites de seu sistema e atingia à todos. Será que os desempregados em plena crise de 1929 se preocupavam com a arte? A arte como seqüência de estilos e movimentos é uma ficção historicista.

Posted by: Agnaldo Rego at março 9, 2010 6:06 PM

basicamente o trabalho de alguns artistas são apoiados na quáquáquáquálidade (ou seja, num discurso interminável sobre a paçoca e todo o descobrimento da pólvora....) e do outro lado, estão os críticos que não sabem fazer nada além de usar obras de arte apenas para a legitimação de suas especulações sobre o mundo da arte. ai cansei, vou ser estilista!

Posted by: Lesma Catunda at julho 6, 2010 5:13 PM

Desmaterializando a obra de arte do fim do milênio
Faço um quadro com moléculas de hidrogênio
Fios de pentelho de um velho armênio
Cuspe de mosca, pão dormido, asa de barata torta
Meu conceito parece, à primeira vista,
Um barrococó figurativo neo-expressionista
Com pitadas de arte nouveau pós-surrealista
calcado da revalorização da natureza morta
Minha mãe certa vez disse-me um dia,
Vendo minha obra exposta na galeria,
"Meu filho, isso é mais estranho que o cu da jia
E muito mais feio que um hipopótamo insone"
Pra entender um trabalho tão moderno
É preciso ler o segundo caderno,
Calcular o produto bruto interno,
Multiplicar pelo valor das contas de água, luz e telefone,
Rodopiando na fúria do ciclone,
Reinvento o céu e o inferno
Minha mãe não entendeu o subtexto
Da arte desmaterializada no presente contexto
Reciclando o lixo lá do cesto
Chego a um resultado estético bacana
Com a graça de Deus e Basquiat
Nova York, me espere que eu vou já
Picharei com dendê de vatapá
Uma psicodélica baiana
Misturarei anáguas de viúva
Com tampinhas de pepsi e fanta uva
Um penico com água da última chuva,
Ampolas de injeção de penicilina
Desmaterializando a matéria
Com a arte pulsando na artéria
Boto fogo no gelo da Sibéria
Faço até cair neve em Teresina
Com o clarão do raio da silibrina
Desintegro o poder da bactéria
Com o clarão do raio da silibrina
Desintegro o poder da bactéria

Posted by: Fabrizio at janeiro 9, 2012 7:10 PM
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