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março 14, 2007
"Brasil é o império das ilusões", entrevista de Jean Baudrillard a Katia Maciel
"Brasil é o império das ilusões"
Entrevista de Jean Baudrillard a Katia Maciel, originalmente publicada na Folha On Line no dia 11 de março de 2007
Em 1992, realizou-se na cidade do Rio de Janeiro a Segunda Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco 92.
Jean Baudrillard havia sido convidado para uma conferência, e a enorme mobilização da cidade em torno do evento provocou esta entrevista, que aconteceu no Jardim Botânico.
Esta não foi a nossa primeira conversa e nem seria a última.
Filósofo francês Jean Baudrillard morreu na última terça-feira aos 77 anos, em Paris. Durante muitos anos foram muitas conversas, mas só tenho o registro desta, que trata da relação entre a natureza e a alteridade, o ciclo da metamorfose, da vida e da morte.
As idéias de hiper-realidade e de simulacro são experimentadas no cenário brasileiro a partir de uma análise que considera os processos comunicacionais como aceleradores do consenso.
A forma de confrontação escolhida pelo autor é a da teoria fatal, a teoria no meio das coisas, uma teoria que não considera mais a separação entre sujeito e objeto e que acolhe em seu centro os gestos da indiferença como estratégia.
Para o Brasil as palavras são de encantamento.
Baudrillard sempre acreditou neste país confuso e generoso e nunca pensou no Brasil como o país do futuro; ele sempre preferiu o presente.
PERGUNTA - É possível pensar a natureza como alteridade?
JEAN BAUDRILLARD- Será que tivemos a alteridade como a alteridade? Não sei se tivemos relação de alteridade radical como essa. Tenho a impressão de que o estado em que estamos seria antes o da metamorfose e de que a natureza não existe como tal. Existem animais, plantas, mas isso está no mesmo ciclo da metamorfose, e aí não há, portanto, identidade verdadeira, portanto também não há alteridade, não há eu e um outro, há fases sucessivas.
Nós achamos isso no ciclo da metamorfose, nós estamos todos nesse ciclo e em um dado momento temos medo porque é preciso encontrar uma individualidade e portanto resistimos a isso por meio da morte individual _se há um indivíduo que morre todo o resto torna-se outro, há outra coisa que não morrerá ao mesmo tempo em que ele, o outro é aquele que não sou eu, certamente, mas é sobretudo aquele que não morre comigo, sou forçado a considerar que o que sobrevive, o mundo é radicalmente diferente porque, por exemplo, não vai morrer, é outra vida.
A natureza eu não consigo muito bem saber o que é, porque é um conceito extremamente moderno, ou nós o consideramos como os gregos, a natureza como a ordem do mundo, a ordem do cosmos, isto é, imortal, enquanto que os homens são mortais, mas podem também adquirir a imortalidade, mas pelas explorações, pelas obras etc. Quer dizer: há uma imortalidade natural e uma imortalidade humana que não é a mesma, que pode ser adquirida por meio das explorações.
PERGUNTA - Vivemos outra coisa porque agora a natureza para os ecologistas é mortal.
BAUDRILLARD - Dizer "a natureza é mortal" significa afirmar que o nosso espaço humano é mortal. Pela primeira vez podemos conceber que essa espécie humana é mortal e ao mesmo tempo todo o contexto que a envolve. Ela não possui privilégios, ela compartilha da mesma mortalidade que a natureza, então é preciso sobreviver enquanto espécie não-natural, artificial, é preciso criar uma espécie-artefato em simulação.
É o que estamos fazendo através da genética, da biologia. É a substituição de uma espécie humana não-natural por uma espécie humana natural, tudo isso pode desaparecer porque não há justamente o ciclo da metamorfose. Porque antes não havia problema, porque os homens se pensavam como os animais.
Não havia o medo da morte porque tudo era transferido de uns aos outros. Um ciclo sem interrupção simbólica, não havia o medo da morte. Hoje há a possibilidade da morte. É preciso portanto escapar da morte, por uma espécie de prótese, uma espécie de projeção sob a forma de clone, de máquina.
PERGUNTA - O movimento ecológico talvez seja uma forma de decretar o fim da natureza na medida em que a trata como o mesmo e não como o outro.
BAUDRILLARD - Isso é certo. A ecologia procura uma domesticação total, de pacificação total, o reequilíbrio. E no fundo realmente a energia se origina de um tipo de antagonismo, de desafio. O mundo é energia conflitual, diferencial etc. Ao passo que aí procuramos um mínimo vital, o menor denominador comum, equilibrar as forças, procuramos uma força homeostática da vida.
Isso me parece uma ilusão vinda talvez da economia, de um sentido econômico que tem a idéia de equilibrar os recursos e os gastos, enquanto não me parece que é isso que está em jogo. A energia é inesgotável, não é esse o problema. O problema é o da liberação da energia. Quando liberamos alguma coisa, isso faz parte de um processo que é verdadeiramente incontrolável. A energia é uma forma de catástrofe e não é uma forma de equilíbrio, é uma forma de desequilíbrio.
PERGUNTA - O sr. acredita que esta conferência terá resultados mesmo sendo um tipo de simulacro?
BAUDRILLARD - Parece-me que tudo isso faz parte de uma nova ordem mundial. No sentido político a ecologia faz parte de um novo establishment mundial, fundado sobre uma extensão formal da democracia, dos direitos humanos, fundado sobre um consenso. É mais um pacto simbólico com a natureza. Não é exatamente um contrato natural, não é um contrato em termos racionais. É um consenso, não é um contrato. Não é nem um pacto nem um contrato.
Um consenso é como uma uniformidade para se obter o equilíbrio pela ausência de negatividade. Porque não pode haver negatividade, nem na natureza, nem na sociedade. Essa ideologia consensual me parece a pior forma de mudar. É a pior forma de dissuasão de uma relação verdadeira. O consenso não é um consenso, me parece.
PERGUNTA - Não há mudança de toda forma.
BAUDRILLARD - Neste momento de consenso, só há mudanças de tipo mecânicas ou eletrônicas. A rede funciona, o processo é de rede, de circuito. Estabelecemos o consenso pela circulação acelerada das coisas. Se você está dentro de uma rede, você está em consenso. Não é uma questão de ideologia.
PERGUNTA - A aceleração é produzida pela mídia, por exemplo? O que promove toda a aceleração?
BAUDRILLARD - Na verdade parece uma espécie de imensa maquinaria que circula em forma de circularidade indefinida. Tudo comunica e tudo se torna comunicação. Nada muda verdadeiramente, não há uma forma de alteridade, de antagonismo, de relação dual. Não. Tudo circula. Isso é a comunicação.
Tudo se torna comunicação, seja a sexualidade, as imagens e até mesmo os processos científicos. Temos a impressão de que nós somos reconhecidos no mercado da pesquisa científica por descobertas e hipóteses que possam comunicar. O universo da comunicação é monofuncional. Existe uma mobilidade e é preciso que tudo seja dito.
É preciso que tudo circule. De onde vem esse imperativo? Eu não sei... um mecanismo de dissuasão, de desqualificação. Tudo que é substancial, que tem valor, é perigoso. Então é preciso reduzi-lo, é preciso consensualizar fazendo circular.
PERGUNTA - O sr. vê a questão da hiper-realidade no Brasil?
BAUDRILLARD - Eu não vejo o Brasil como um país hiper-real. Não é como a Califórnia, a América do Norte. Talvez porque o Brasil não possa passar pelo princípio de realidade. Portanto, se ele ainda não passou pela realidade, não pode se tornar hiper-real, porque o hiper-real é mais que o real, um tipo de confusão entre o real e o imaginário.
Tem-se a impressão de que não existe um princípio de definição da realidade. É bem uma espécie de país de ficção, mas não de ficção de transparência. Não é o país da semiologia ou da semiótica. Não sei, mas tenho a impressão de que o Brasil está mais próximo do jogo da ilusão, da sedução desta relação dual, mas confusa.. E que não há essa forma de abstração que é a hiper-realidade... Enfim, essa forma de transmutação no vazio, de perda de substância, de referência, de perda de tudo isso. Aqui, é claro, tem televisão por todo lado, tem imagens... tem isso tudo. Temos a impressão de que é uma matéria muito mais bruta, imediata, primitiva, é uma matéria da relação coletiva.
Não é a mesma coisa a definição que podemos ter na Europa entre o "medium" e a mensagem. Toda a teoria da comunicação, que não funciona assim, porque são as funções de um modelo abstrato, uma realidade abstrata. Justamente por meio das novas imagens há uma espécie de confusão entre o emissor e o receptor. Uma confusão de rede, portanto, mesmo a hiper-realidade é uma espécie de roteiro transparente da modernidade, mesmo na Europa.
Aqui eu tenho a impressão de que é uma confusão não primitiva, porque seria pejorativa, mas original. Uma confusão que é ainda uma forma anterior à da discriminação das coisas, da distinção das coisas. A hiper-realidade é quase tardia porque ela veio depois da divisão das coisas.
PERGUNTA - Mas nos EUA também não houve uma realidade anterior.
BAUDRILLARD - Sim, certamente. Não exatamente um princípio de realidade, na medida em que não houve uma acumulação primitiva de realidade por dois séculos, como na Europa. Não há um histórico de realidade, mas um princípio tecnológico, operacional, pragmático, isso é um problema de infra-estrutura própria, não é uma infra-estrutura de princípios metafísicos, realidade de princípios do sujeito. [...]
Aqui eu não tenho a impressão de que ele funcione realmente e não é ele que governa as formas simbólicas da relação. Portanto, é uma situação original, mas evidentemente quando fazemos a análise da hiper-realidade ela é universal. Todo mundo é submetido a esse regime de potencialização de signos. Mas talvez o Brasil escape do universal.
Pode parecer um paradoxo, mas a hiper-realidade não é a mesma coisa em todo lugar. É uma espécie de universalidade e certamente ela é menos forte nas culturas que guardaram uma forma de singularidade, mesmo dentro da confusão. É uma situação singular, portanto não podemos transportar o modelo universal e o hiper-real. É ainda muito ocidental, uma forma de análise crítica.
É preciso saber se a cultura brasileira passou pela modernidade, se os elementos de modernização, de abstração, de mediatização se tornaram os mais fortes. Se ela foi engolida e absolvida por isso, eu não estou muito certo. Não há julgamento estatístico, não há julgamento metafísico. Talvez no Brasil haja uma certa tradição, talvez ele tenha muito mais de surrealismo que de hiper-realismo.
PERGUNTA - Então seriam principalmente efeitos do inconsciente?
BAUDRILLARD - O hiper-realismo é, na verdade, uma zona da desencarnação dos corpos. Não é o caso, aqui os corpos não são de forma alguma desencarnados. Os gestos, o movimento aqui são verdadeiramente sensuais.
A hiper-realidade é um tipo de desencarnação, de desilusão, um pragmatismo das coisas. Aqui ainda é o império das ilusões, mas no sentido positivo do termo, ou seja, o jogo de aparências, incluídas no gestual, na dança, na música, no jogo, no culto. Esse tipo de coisa não demonstra absolutamente uma alternativa política, apenas mostra que ainda existe uma forma de ilusão, isto é, de gestão simbólica das coisas.
PERGUNTA - Sem dúvida, aqui existe a ordem do simbólico.
BAUDRILLARD - Sim, mas eu penso que ela é mais forte, foi isto o que Muniz Sodré colocou: - É o Brasil real e o Brasil simulado. O Brasil real esperará mais ainda uma espécie de substrato simbólico e o Brasil simulado é um Brasil à ocidental, mas que na realidade não consegue essa espécie de transformação, em algum sentido ela é melhor. É uma cultura em que vemos se oporem as duas ordens: a simbólica e a racional, sem que os jogos sejam feitos... Os jogos nunca são feitos... [Sobre] quem vencerá, nós não temos a mais vaga idéia e isso é real para todo mundo, apenas para nossa cultura temos a impressão de ter passado para o outro lado, há ainda seqüelas, velhas relações simbólicas e ainda uma cultura mais profunda que desaparecerá de qualquer forma. Nós passamos para o outro lado. Aqui isso não é verdade, e, retrospectivamente, a partir do momento em que existe um país como um Brasil, nós vemos que os jogos ainda não estão feitos, podemos chegar à conclusão de que os jogos não estão feitos em lugar algum. Já para os país de cultura moderna hipermoderna vemos que tudo é instável, desestabilizado.
PERGUNTA - Mas os jogos não são feitos na relação das duas ordens, é como se não tivesse relação. A ordem racional, se olharmos para os movimentos intelectuais, o movimento modernista, por exemplo, onde havia várias correntes, havia uma, liderada por Oswald de Andrade, mais adaptada ao sentido da fragmentação da cultura, de um certo erotismo, e ele foi superado pela versão de Mário de Andrade, pela versão de São Paulo, que era sobretudo do progresso, o simulacro do ocidente.
BAUDRILLARD - E você acha que esse perdeu em relação ao outro ?
PERGUNTA - O progresso venceu de uma certa maneira.
BAUDRILLARD - Sim, mas isso é a ordem manifesta, as idéias, os intelectuais, o discurso.
PERGUNTA - Mas ele venceu apenas no interior do próprio discurso, ele não tocou a outra ordem. Oswald de Andrade tentou estabelecer uma ligação entre as duas ordens. Então o discurso manifesto seria um discurso sobre o simbólico. Seria um discurso sobre a outra ordem, por isso havia uma possível relação. Uma realidade e um discurso sobre essa realidade. Mas não, isso era fechado porque talvez a relação não tivesse sustentação de outros que não fossem os intelectuais.
BAUDRILLARD - Eu sei o jogo de tentar reconciliar os dois, mas eu não creio muito nisso. Isso me parece uma utopia. Não há nada a fazer, a modernidade se instalou sobre uma estrutura tradicional, é preciso a destruição. A única questão, e nossa única chance, é que a modernidade, quando se instala, destoa das estruturas arcaicas ou simbólicas e decreta também uma ideologia que é o evolucionismo... Sou o melhor porque sou o mais avançado e o que passou desaparece. Isso é uma ideologia própria da modernidade.
O que se revela é que esse evolucionismo progressista, linear, está afundando, e o fato de as estruturas tradicionais, simbólicas, terem ficados para trás não significa que tenham desaparecido, há um efeito de reversão, e novamente os jogos estão abertos. E entre os dois existe uma relação de exclusão, uma relação de antagonismo, de duelo, não entre o bem e o mal, mas uma relação irredutível. Então, o fato de ser irredutível ou bem a uma exterminação de termos, nós exterminamos os índios, os aborígines. Ou então conseguimos exterminar esse estruturais tradicionais, pelo fato de ser irredutível, ou bem há uma exterminação de termos _nós exterminamos os índios, os aborígines, ou então conseguimos exterminar essas estruturas tradicionais, todas as estruturas simbólicas e entramos em uma cultura da confusão porque nenhuma das duas ordens pode liqüidar a outra. Não há possibilidade de liqüidação.
PERGUNTA - Nem de conciliação.
BAUDRILLARD - Talvez no sentido de mistura, de confusão, quer dizer, se fusiona. Mas o estado de confusão é hoje o estado universal. Nenhuma cultura é original, pura. No Brasil há uma forma de sedução na confusão.
PERGUNTA - Sedução no sentido de que não podemos mais distinguir os termos?
BAUDRILLARD - Sim. Um sentido de que na sedução não se podem distinguir dois sujeitos separadamente, como há na relação contratual. Não há relação contratual, não há dois sujeitos, há uma reversibilidade de funções, uma perda de identidade de cada um em jogo, em termos de prazer e que secreta uma energia, justamente porque cada um dos dois termos perde a sua identidade.
Enquanto a cultura moderna quer sempre identificar as coisas, ela quer criar sujeitos que perdem identidade etc. Mas na sedução não temos a perspectiva pessoal individualista da sedução. Mas isso pode ser a forma simbólica de toda uma cultura.
PERGUNTA - O seu pensamento não se faz através de conceitos ou de metáforas.
BAUDRILLARD - O mais próximo seria a metamorfose. O sistema de metamorfose é diferente da metáfora. A metáfora tem uma espécie de significância e significado, há um sistema de sentido. Há um jogo de metáfora. Uma espécie de transubstanciação como essa, de metamorfose das coisas.
Nenhum desses conceitos tem identidade própria, é preciso ser transformado em outro, como nos mitos. São como metáforas na mitologia quando se identificam espécies humanas e animais, por exemplo. A metáfora é mais discursiva, faz parte do discurso.
Há um tipo de legislação da metáfora, enquanto na metamorfose há uma regra de sucessão de formas. E as formas não têm amanhã, a sedução, a reversibilidade, isso são as formas e certamente essas são formas poéticas para mim. Um anagrama, por exemplo, é uma forma de desaparecimento, de uma palavra sagrada em um poema, são formas poéticas de disseminação.
Em um texto que publiquei sobre a Revolução Romena, discuti a diferença entre o cinema e a televisão, entre imagens que implicam a existência do imaginário ou não, o que passa pelo negativo e o que não passa pelo negativo e que cria duas categorias de imagens bem diferentes. E isso se passa entre o cinema e a televisão.
Na televisão a imagem não precisa mais de negativo, no sentido técnico do termo. E não há mais negatividade no sentido... no sentido metafísico também não. Há uma ruptura na esfera das imagens e no limite não há mais imagens, a não ser no cinema. Há duas coisas que são interessantes: a liberação incondicional da imagem, por isso o simulacro incondicional, e ainda o problema da liberdade oposta à liberação. Esse é um tema sobre o qual escrevo.
PERGUNTA - Muitos o consideram indiferente, quando o que o sr. faz é falar sobre a indiferença. Há uma grande confusão.
BAUDRILLARD - Sim, isso é interessante.
PERGUNTA - Na verdade é uma provocação, o que não significa que o sr. seja indiferente à indiferença do mundo. A proposição teórica seria do fim do consenso artificial, o ressurgimento do negativo, da parte maldita, do princípio do mal.
BAUDRILLARD - O tema da indiferença é muito importante, é o mesmo problema do pessimismo do qual me acusam. Não é uma indiferença subjetiva, é a indiferença do mundo, mas com ela é preciso responder através de uma indiferença superior. Sempre o princípio do mal pelo mal, da ilusão por uma ilusão maior.
Se o mundo é uma ilusão, o então pensamento não pode ser senão uma ilusão superior. Não é a realidade que vai contra ela, é uma ilusão maior. A mesma coisa vale para a indiferença. É como um duelo. Os historiadores falaram dessa indiferença do mundo, mais precisamente, à qual ele deve responder. Não é um modelo indiferenciado, ao contrário, é um universo que pede um duelo de indiferença, que na minha opinião é mais forte do que o jogo da diferença. A compatibilidade das diferenças.
É preciso fazer o contrário, uma dramaturgia da indiferença. Porque para mim a indiferença é do mundo, mas, como para os gregos, o mundo é imortal, mas os homens são mortais _mas se tornam imortais se chegarem a brincar, a jogar por desafio com a imortalidade do mundo. E a indiferença é a mesma coisa. Se nós chegarmos a jogar com, a se fazer mundo, a se fazer objeto, mais ainda indiferente que o mundo, isso se torna uma situação muito mais interessante que praticar a diferença do sujeito-objeto.
PERGUNTA - A indiferença é então uma confrontação.
BAUDRILLARD - Sim. O problema é que há várias indiferenças. Há uma que resulta da perda da diferença. Mas isso é o sistema da metástase, é o sistema moderno. Essa não é interessante. É a perda de tudo, é a perda da diferença, mas no fundo é a perda da verdadeira indiferença, o jogo das aparências.
Por exemplo, a analogia do jogo, a regra do jogo. Ela é completamente indiferente, ela não resulta de uma escolha de liberdade, ela é arbitrária e indiferente, mas com isso, nós jogamos. Eu tenho um problema bastante particular com essa história da indiferença, é que a estratégia da indiferença é privilegiada, é uma estratégia forte. Mas quando chegamos a uma situação como a de hoje, em que as pessoas não acreditam mais no que fazem, aí a posição é difícil a firmar porque é como se nós quiséssemos entrar na indiferença.
Se você se torna indiferente, sua indiferença não é mais estratégica. Eu tenho essa questão muito pessoal _como se fossem roubar a estratégia da indiferença. É muito difícil falar, porque na realidade não vale a pena contestar o sistema de diferenças quando não existe mais, não funciona mais. Não podemos mais realizar a verdadeira indiferença. Aí está a armadilha.
PERGUNTA - Até o seu livro intitulado "Da Sedução", o sr. defendia uma teoria critica, depois passou a polemizar com o que chamou de "teoria fatal". A teoria fatal seria ainda uma teoria?
BAUDRILLARD - Não exatamente, porque a teoria por definição me parece crítica, e, se a escrita é fragmentária, ela não é mais uma escrita teórica. Não é filosofia, não é teoria. Eu prefiro o termo "teoria" a "filosofia".
Ou então é preciso aprender a teoria no sentido da teoria, não contemplação, mas visão das coisas. Quer dizer, nós não procuramos ou criticamos o sentido, mas nós jogamos o jogo e nesse momento o discurso é uma forma de aceleração, ele pega a forma de seu objeto. Ele não tem a distância tradicional do sujeito-objeto, não há mais dimensão crítica. E é muito difícil eliminar a dimensão crítica porque, seja qual for, funciona assim, joga nessa posição.
PERGUNTA - Mesmo a teoria fatal é critica no que se refere, por exemplo, à parte maldita.
BAUDRILLARD - Sim. Mas isso não se propõe a uma negatividade. Não é uma crítica. Não há resolução. Porque o pensamento crítico objetiva sempre a ultrapassagem.
PERGUNTA - O que provocou essa ruptura? Talvez o sr. tenha sido seduzido pelos efeitos dos acontecimentos...
BAUDRILLARD - Sim, em 1968 houve acontecimentos como esse, é verdade. Uma espécie de metáfora temporal.
KATIA MACIEL é professora de comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro
Bela conversa. Vivi muitos anos na Europa e ao voltar a viver aqui senti na pele o que é o simbólico nosso e o hiper-real deles. É tao interessante que logo um dito pessimista seja tao otimista com o Brasil... Sim, o princípio de realidade ocidental nao deu certo aqui, resta a nós criar um outro modelo.
Posted by: Cabot at março 19, 2007 11:34 AM