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fevereiro 12, 2007

Museus à venda, por François Cachin, Jean Clair e Roland Recht

Museus à venda

Artigo de François Cachin, Jean Clair e Roland Recht, traduzido por Paulo Migliacci, originalmente publicado no Caderno Mais da Folha de São Paulo, no dia 11 de fevereiro de 2007

Anúncios de filiais "caça-níqueis" do Louvre, nos Emirados Árabes, e do Hermitage, em Las Vegas, põem em xeque a vocação cultural das instituições

Até recentemente, o mundo dos museus franceses era causa de inveja mundial devido ao nível excepcional de apoio que recebia dos governos nacional e municipais do país. Os EUA servem como exemplo contrastante, já que lá apenas um museu, o de Washington, é uma instituição financiada pelo governo nacional. Todos os outros dependem majoritariamente de verba privada. É certo que os museus franceses também eram capazes de ocasionalmente obter auxílio de mecenas do setor privado, especialmente para as exposições mais prestigiosas. Também a nova lei que propõe fortes incentivos fiscais às empresas e indivíduos que doarem obras de arte importantes -ou dinheiro para adquiri-las- às instituições culturais merece elogios.

Entretenimento
No entanto, excetuado o Guggenheim, em Nova York, que se vangloria de ser parte do "negócio do entretenimento" e se tornou o desastroso pioneiro na exportação por dinheiro de suas coleções a todas as partes do mundo, a maioria dos museus do outro lado do Atlântico e nos demais países europeus manteve até o presente uma ética irreprochável.

Conferem prioridade indiscutível aos seus deveres para com as coleções que abrigam, a pesquisa, o enriquecimento de seus acervos, o trabalho científico de seus curadores, o papel educativo das instituições. Hoje, um exemplo da situação que se vive pode ser verificado na atuação do Louvre em Atlanta (EUA). Lá, quadros que decerto constituem algumas das peças mais importantes de seu acervo, como "Ed in Arcadio Ego", de Poussin, e "Baldassare Castiglione", de Rafael, estão em exposição na rica cidade-sede da Coca-Cola, por períodos que variam entre três meses e um ano, mediante um pagamento de 13 milhões.

Esse tipo de prática pode nos conduzir a um desvio que ninguém mais será capaz de controlar. No plano moral, a utilização, para propósitos comerciais e de mídia, de obras-primas do patrimônio artístico nacional, fundamentos de nossa história e cultura que a República tem por dever exibir e preservar em benefício das gerações futuras, deve com certeza ser causa de choque. E, além disso, por que os sete milhões de visitantes que o Louvre recebe por ano, quase todos pagantes, devem ser privados por tanto tempo de acesso a essas obras? A permanência de certas obras-primas que formam o acervo de um museu é uma exigência que todo visitante tem o direito de fazer.

A busca de recursos financeiros à qual o novo estatuto dos grandes museus franceses arremessou as instituições pode explicar certos desvios, mas felizmente nem todos estão cedendo às suas tentações.

Balneário atraente
O pior ainda está por vir. O exemplo oferecido por Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, é alarmante. Para aumentar o número de visitantes a um centro turístico e balneário e torná-lo mais atraente, o país de apenas 700 mil habitantes está propondo construir um total de quatro museus, entre os quais um inevitável Guggenheim e um museu "francês" que levaria a marca "Louvre". Mas isso com a condição de que todos os grandes museus da França emprestem obras importantes de seus acervos à nova instituição por períodos prolongados.

E o que dizer sobre os interesses recíprocos com a China e a Índia? Há um plano para construir um anexo ao Museu Nacional de Arte Moderna francês em Xangai, na China, enquanto o espaço atual do museu, no centro Beaubourg, em Paris, está impedido de exibir o acervo -em sua maior parte armazenado.

O conjunto dos grandes museus franceses e europeus resistiu a essas expansões ou à adoção de critérios comerciais e de mídia para localizar suas instalações e os desaprova. Assim como os desaprova a maioria dos curadores de arte franceses, que estão impedidos, por regras contestáveis, de se pronunciar sobre assuntos que representam, no entanto, a essência de sua profissão. É evidente que se devem emprestar obras de arte, caso o estado de conversação delas o permita e caso as condições de segurança sejam suficientes. Mas os empréstimos devem ser gratuitos, e organizados sob uma estrutura de manifestações que representem contribuição ao conhecimento e à história da arte.

Até hoje, isso era um imperativo cultural e científico. Sob qual princípio, levando em conta a necessidade de conservar e valorizar os acervos institucionais, se deveria utilizar obras de arte como moeda de troca?

Será que as iniciativas políticas e diplomáticas devem ter a primazia diante de todas as demais considerações, e resultar em empréstimos pagos de obras essenciais ao patrimônio de um país?

Será que a França é o único país a acreditar nesse princípio e a imitar a criação de uma "filial" do Hermitage [de São Petersburgo, na Rússia], em Las Vegas [EUA], com o objetivo de arrecadar mais dinheiro e manter em dia os salários de seus funcionários?

O sonho de um mundo em que os homens e os bens de consumo possam circular livremente é legítimo, mas os objetos que constituem o patrimônio nacional não constituem bens de consumo, e preservar seu porvir é garantir que mantenham, no amanhã, seu valor universal.


FRANÇOIS CACHIN é diretor honorário da organização Musées de France.
JEAN CLAIR é curador.
ROLAND RECHT leciona no Collège de France. A íntegra deste texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci.

Posted by João Domingues at 11:12 AM | Comentários(0)
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