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maio 19, 2006
Marcia X e o CCBB - Censura e/ou a lógica do sistema?, por Paulo Paes e Luiz Camillo Osorio
Marcia X e o CCBB - Censura e/ou a lógica do sistema?
Paulo Paes (artista) e Luiz Camillo Osorio (crítico de arte)
(Este texto foi escrito há mais de duas semanas e foi tentada a sua publicação na imprensa. O tom do artigo visa um público mais abrangente. Não tendo sido possível, achamos importante circulá-lo pelo meio de arte através do canal contemporâneo, para que a discussão não seja prematuramente interrompida e possa ganhar novos desdobramentos políticos).
A polêmica envolvendo o CCBB e a classe artística pela retirada da obra "Desenhando em terços" de Márcia X da exposição "Erótica" passa ao largo da questão que está na raiz do problema. É claro que a atitude do CCBB de retirar a obra antes mesmo de uma manifestação da justiça quanto à ação movida pela Opus Christi merece repúdio. Abre um precedente perigoso em relação a todo tipo de intolerância e mobilização de grupos de interesse para a retirada de obras de arte de exposições.
Não é a primeira vez que algo desta ordem acontece e há casos simbólicos que merecem ser lembrados. Um deles, de uma exposição nos Estados Unidos do fotógrafo Robert Mapplethorpe fechada por ser considerada imoral e que acabou levando o diretor do museu ao tribunal. Neste caso, a direção do museu foi solidária ao artista e defendeu a autonomia daquele espaço de arte, o museu, como um espaço de liberdade e experimentação. O resultado do julgamento foi pedagógico: o diretor foi inocentado uma vez que a liberdade de expressão artística não deveria estar sujeita a considerações de ordem moral.
No entanto, para além da precipitação, um tanto covarde, do CCBB neste episódio recente, este seu posicionamento acabou mostrando a lógica por trás do fomento à cultura. O centro cultural em questão é um braço das atividades do Banco do Brasil, que atua em um ramo - o mercado financeiro - com notória aversão ao risco e que viu, com a paranóia típica do setor, a sua principal atividade ser prejudicada por uma atividade secundária, a atuação cultural. É bom que se diga também que o CCBB, entre os centros culturais brasileiros, é um dos que mais têm contribuído para a qualificação do circuito e para a ampliação de público. De modo que esta situação só mostra a precariedade e a falta de autonomia de nossas instituições culturais.
O que sobressai nesse quadro, mais que a censura pontual à obra de Márcia X, é o quão equivocado é o sistema de financiamento público das atividades culturais, pois sistematicamente entrega na mão de entidades privadas com interesses diversos, dinheiro do contribuinte para que elas atuem como gestores e assim formulem a política cultural do país. Usar como um dos argumentos para o afastamento da obra, a ameaça de que muitos correntistas iriam retirar suas contas do banco, é de uma clareza assustadora. Isto não é só o CCBB, é bom insistir, mas é a lógica vigente quando os responsáveis pela política cultural transferem para o setor privado toda a decisão do que vai ser investido - se o dinheiro fosse todo ele privado, tudo bem, mas não é o caso. Não se trata de defender intervencionismo estatal ou retirar autonomia do investimento privado, longe disso, mas de se exigir mais transparência e aprimoramento na transferência de dinheiro de renúncia fiscal para a cultura.
A obra da Márcia X já estava em exibição quando foi identificada como "incômoda". Cabe perguntar diante disso: Será que o catálogo da exposição Erótica continuará a ser vendido ou o CCBB retirará de circulação e assumirá o prejuízo? Sugestão: doe às bibliotecas de arte. Quantas obras e exposições nem chegaram a ser apresentadas porque "obras-problema" foram identificadas a tempo? Será que uma atividade tão complexa e importante quanto a produção de cultura não mereceria uma entidade autônoma para discutir publicamente critérios e processos de seleção, levando-se sempre em consideração a excelência e a democratização do acesso?
O obscurantismo dos critérios que pautam a atuação cultural das entidades privadas que investem o dinheiro público da cultura, impede o avanço da discussão e dá no que deu. Já está mais do que na hora desse sistema ser reformulado. Além disso, é hora também de se superar uma série de rixas ideológicas e privilégios constituídos para tratar o dinheiro público investido em cultura de forma mais democrática e frutífera. As acusações de intervencionismo quando o atual governo quis começar uma discussão nesta direção foi de uma precipitação preocupante. Assim como o encolhimento do MinC e sua demora no aprimoramento da lei. Enquanto esta discussão não acontecer de pouco adianta ficarmos revoltados com o episódio do CCBB. Faz parte da lógica do sistema.