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junho 10, 2011
O mundo é o que se vê de onde se está por Luisa Duarte
O mundo é o que se vê de onde se está
Conheci o trabalho de Lucia Laguna em 2005. Ela era então uma “nova” artista (Lucia Laguna é um caso singular: começou a pintar aos 54 anos de idade, após uma vida inteira como professora de língua portuguesa) e uma das mais gratas surpresas do meu processo de mapeamento daquela edição do Programa Rumos Artes Visuais - Instituto Itaú Cultural.
“Lucia Laguna é uma das grandes revelações da pintura do Brasil neste início de século”, escreveu Paulo Herkenhoff após o Rumos. Passados seis anos, hoje se vê a construção de uma linguagem que exibe uma integridade ímpar e, ao mesmo tempo, o amadurecimento de um campo poético e metódico engendrado por uma pintura que nada de fato representa, mas que nos endereça apresentações transfiguradas do mundo em que vivemos.
“O mundo é o que se vê de onde se está”. O título da nova exposição de Lucia Laguna, na Galeria Moura Marsiaj, sintetiza um modo de operar que permeia toda a produção da artista. Os olhos da artista miram aquilo que está do lado de fora da janela do seu ateliê, no subúrbio do Rio de Janeiro – uma paisagem desordenada na qual se sobrepõem prédios, viadutos, telhas de casas, puxadinhos, o morro da mangueira ao fundo, postes, cabos. Se a sua pintura exala uma contemporaneidade ímpar, isso talvez se deva à conexão genuína da mesma com o presente e o mundo que o cerca. Ou seja, uma pintura que dialoga com que está fora dela, que é alimentada pelo contexto, sem por isso ser narrativa ou literal.
Na presente mostra, outra paisagem deflagrou o processo de criação, aquela da arquitetura da nova galeria paulistana. Se o leitmotiv é outro, a visualidade própria de seu trabalho permanece. A “desorganização organizada” resultante do olhar para sobre o subúrbio também surge no olhar que pousa sobre as linhas retas, o cubo branco, a reserva técnica ou telhado da nova galeria. As cores e sobreposições doam a vitalidade da urgência urbana, que está no ethos dessa pintura, para essa paisagem completamente diversa, certamente mais fria do que aquela vista da janela do ateliê.
As cartografias de Laguna têm um grau de parentesco com o trabalho de outra grande pintora da atualidade, Julie Mehretu, cujas telas expõem mapas entremeados, estilhaçados, nas quais há um embate dialético entre macro e micro.
As paisagens de Laguna, como as de Mehretu, solicitam atenção. Se o resultado evoca movimento, o processo é lento, como o de todo fazer pictórico. Nesse processo a artista inclui o outro como ponto de partida para a obra. O método consiste em dar aos seus assistentes a tarefa de fazer a primeira intervenção na tela em branco. Trata-se de uma espécie de proposição necessária para começar o seu trabalho, trata-se do seu “arrimo”. Laguna precisa do outro – a paisagem, o assistente, a história da arte, o mobiliário do ateliê, recortes de jornal, a galeria – para fazer a engrenagem rodar.
Após esse primeiro momento, a artista inicia um processo no qual veda partes da tela com fitas crepe – cria vazios – enquanto preenche outras com camadas e camadas de tinta à óleo. Cobre também as fitas com tinta, retira as mesmas, faz intervalos, e, nesse fluxo, de tempos e espaços, cria uma arquitetura própria, interna ao quadro. Começa aí a relação entre a realidade que deflagra o processo e o que é uma segunda pele doada para essa realidade primeira.
Na tela “Galeria 3”, presente na exposição, é possível notar essas duas peles. A primeira é somente entrevista: a galeria, seu corredor, seus andares, suas passagens. A segunda transfigura a primeira e nos lança em uma convulsão ao centro da tela. Uma paleta corajosa, feita de vermelhos, azuis, laranjas, pretos, desfaz a ordem que permanece em outras áreas do quadro.
Desordem e ordem só podem conviver assim graças a uma notável maturidade diante do seu ofício. É encorajador ver como uma pintura tão senhora de si pode levar em conta a dúvida, o outro, o mundo. O arrimo de Laguna é o que a possibilita alçar vôo sem saber aonde vai chegar. Uma sábia economia que nos lega uma pintura forte, inquieta, que não se sustenta em limites tão seguros quanto anódinos.
A janela é um dos motivos mais antigos da pintura. A pintura é, em si, uma linguagem carregada por uma história cujo peso pode fazer o artista não caminhar, tal como um alpinista com uma mochila nas costas repleta de pedras que não consegue escalar a montanha. Laguna tomou motivos clássicos, a janela, a paisagem, e conseguiu fazê-los rimar com o seu tempo, não deixou a tradição engessar o seu passo. Essa é a chave para a contemporaneidade dessas telas: sua cumplicidade para com o presente, sua busca por encontrar algo a ser pintado ainda hoje, seu interesse intenso em assimilar o que está fora e se dedicar, com o mesmo entusiasmo, à engenharia interna da tela e seus espaços, tempos, cores, densidades, ou seja, à sua forma.
“O mundo é o que se vê de onde se está”, não à toa Lucia Laguna toma emprestada a passagem do geógrafo Milton Santos (1926 - 2001) para dar título à sua mostra. Santos foi um grande pensador da sua disciplina e um grande humanista, sempre vinculado às urgências do presente. Não há pensamento vivo sem esse motor. A grandeza da pintura de Lucia Laguna está em colocar em obra um jogo de idas e vindas entre uma absorção do mundo em que vive (sem por isso realizar um trabalho de caráter íntimo, longe disso), do que está fora, do que é do outro, pegar para si esse repertório e transfigurá-lo no espaço do quadro. É somente nesse movimento entre dentro e fora que se torna possível fazer com que o fluxo não pare, que a realidade primeira não tome conta, paralisando assim a imaginação e a capacidade de criar, por meio da linguagem, uma outra realidade em cima dessa já dada.
Isso se chama transformação, sublimação. Se o mundo é aquele que se vê de onde se está, através das pinturas de Lucia Laguna somos lembrados da possibilidade, sempre aberta, de olhar de forma diversa o mesmo, o que está ali, logo a nossa frente, na nossa janela, diariamente. Possibilidade de fazer do cotidiano que nos atravessa não aquele bicho sorrateiro que embota os órgãos, mas sim um mar de possibilidades insuspeitadas. A pintura de Lucia Laguna tem um papel de resistência, “resistir a que o ato delicado de girar a maçaneta, esse ato pelo qual tudo poderia se transformar, possa cumprir-se com a fria eficácia de um reflexo cotidiano” (Trecho de Julio Cortázar em “Histórias de Cronópios e de Famas”). Esse mundo que vemos de onde estamos pode vir a ser outro: a obra de Lucia Laguna nos endereça essa preciosa e necessária lembrança.