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dezembro 16, 2010
Sergio Martins entrevista Ana Holck
Sergio Martins: Você se formou em arquitetura. É uma disciplina que traz consigo toda uma história da noção de espaço e cuja participação no modernismo brasileiro é particularmente marcante. Mas a relação entre arquitetura e arte é também repleta de atritos e desconfianças – pensando, por exemplo, num Bataille ou num Gordon Matta-Clark. Como você vê a participação do instrumental técnico e teórico proveniente da sua formação em seu processo de trabalho? Você encontra ou coloca resistências ao defrontar-se com essa concepção de espaço em sua prática artística?
Ana Holck: Eu procuro desconstruir a arquitetura nos meus trabalhos, permitir uma nova leitura do espaço em que ele muitas vezes deixa de existir como antes. Procuro fazer com que as pessoas passem a enxergá-lo e imaginá-lo de outra maneira. Torna-se necessário mobilizar esse espaço, mexer na sua estrutura e romper com o modo como o apreendemos. Existem verdadeiras camadas de significados e diferentes modos de se perceber um espaço, seja através de suas dimensões, seus materiais, sua configuração, sua história. Todos são elementos que podem ser ressaltados ou não de acordo com a leitura que se quer fazer desse espaço.
Eu escolhi me graduar em arquitetura porque comecei a ter, no final da adolescência, um grande interesse em questões ligadas ao espaço, ao tridimensional. Mas também porque no Rio de Janeiro essa me pareceu a melhor formação para um artista que procurasse ter um diploma de curso superior, já que a escola de Belas Artes tinha ainda um currículo muito acadêmico. Mas eu não contava que o curso seria tão técnico e pouco ligado a investigação do espaço. Tive uma relação de amor e ódio com a arquitetura, e muita resistência com toda a parte técnica do curso, inclusive desenho técnico, computação, etc. Essa relação acabou se transformando numa fonte de questionamento sobre o que é o projeto e como ele se torna um dado complexo para o artista e mesmo para um arquiteto. Idealmente, eu queria poder chegar no espaço sem qualquer projeto prévio, sem um a priori, mas seria impossível na escala em que faço alguns trabalhos.
SM: Você vem ampliando seu repertório de materiais com blocos de concreto, policarbonato alveolar e metal, entre outros. Como se dá o seu interesse por um certo material? É uma decisão que vem do projeto ou uma investigação sobre as qualidades substantivas do próprio material?
AH: Ambos. Acho que vem de um interesse pelo material que por sua vez interessa ao trabalho e vice-versa. O uso de materiais industriais e da arquitetura é interessa a arte contemporânea há muito tempo, desde Duchamp. Procuro tirar o material do seu contexto e ao mesmo tempo evidenciar suas características. O vinil que usei em muitos trabalhos anteriores era estranho ao em três dimensões. Por sua espessura quase desprezível, é um material quase sempre usado a partir de recortes, para sinalização, e eu procurava sua materialidade criando uma tensão entre o bi e o tridimensional. O policarbonato alveolar toma de certa forma o caminho inverso: é um material usado para vedação e eu o recorto todo, dobro, ele se torna vazado, perdendo sua materialidade, sua capacidade de vedar. Os blocos de concreto trazem um pouco da rua para o interior dos espaços institucionais, eles estão fora do contexto e demandam uma nova atenção. Os tijolos de Contra-Muro, são filmados. Eles trazem um dado de virtualidade, são erguidos e depois desabam, gerando esta sensação de impotência, de sua imaterialidade e de surpresa, por não estarem sendo úteis, cumprindo sua função. São materiais que têm uma funcionalidade muito definida: sinalização, vedação, sustentação. E nos trabalhos essas funções são subvertidas, especialmente no caso dos tijolos de Contra-Muro, mas também no caso dos blocos de concreto, que deixam de ser o chão onde se pisa e adquirem uma individualidade, algo quase escultórico. Ou ainda no caso do vinil, que não está sinalizando a saída, por exemplo, mas obstruindo a passagem; ou o policarbonato, feito para vedar a entrada de água, mas que é todo vazado nas instalações.
SM: A repetição de uma unidade formal (como a faixa ou hexágono) é um dado recorrente em seu trabalho, e aponta para o minimalismo e o pós-minimalismo. Por outro lado, é difícil olhar para as formas vazadas em suas esculturas recentes e não pensar no Neoconcretismo. São duas tradições com fortes pontos de contato, como a ênfase na temporalidade da experiência, mas que também empreendem leituras bastante distintas do modernismo. Como você pensa suas filiações e afinidades na história da arte?
AH: Eu faço arte hoje, e apesar de ter a arte abstrata grosso modo como uma referência (especialmente o minimalismo), não me preocupo se estou citando um determinado artista. Alguns conceitos foram assimilados de forma mais contundente, acredito numa fusão daquilo que te toca. Minha percepção do espaço com base na temporalidade da experiência vem da arquitetura, de uma apreensão do espaço semelhante à do cinema, como a câmera que enquadra o olho da pessoa, fazendo-a percorrer o espaço de uma certa maneira ao “forçar” um determinado trajeto. Acaba que somos levados a ver coisas que sozinhos não perceberíamos. Tem algo físico nisso que identifico também com minha experiência de fazer dança contemporânea durante toda a infância. Eu procuro uma espacialidade física, quero um impacto no corpo das pessoas. Não é só o olho, o olho faz parte do corpo e o corpo também olha pras coisas. Me interessa também a repetição, e como quebrá-la. Ao fazer as faixas eu estava sob forte impacto da minimal, que havia sido meu objeto de estudo no mestrado em história da arte. A arquitetura moderna brasileira desponta na história da arte e da arquitetura mundiais, seria estranho não levá-la em consideração. Se a arte brasileira é tão reconhecida hoje, é porque houve uma trajetória anterior que semeou isso, com a arquitetura moderna e o Neoconcretismo. Acho que essa é uma herança que deve ser debatida dentro dos trabalhos de arte contemporânea.
SM: A maior parte de sua produção é de esculturas e/ou instalações. Mas há também incursões em outros meios, como fotografia e vídeo. Na série mais recente, por exemplo, há desenhos que correspondem aos hexágonos a serem recortados de folhas de policarbonato. Você diria que algum meio específico domina o seu pensamento artístico? Como se dá, no seu processo de trabalho, a relação entre esses diferentes meios?
AH: Acho que o pensamento espacial é dominante, está presente principalmente nas instalações. O desenho surge muito como uma forma de pensar, de projetar. Mas eu não acredito num meio único, acho que as questões que dominam o trabalho podem se materializar de formas diferentes, como no caso dos desenhos sobre as fotografias de canteiros de obras, as pontes que não são nem maquetes nem instalações em si, ou a vídeo instalação Contra-Muro. Na verdade eu gostaria de desenhar mais, acho que desenho é o corpo do trabalho da grande maioria dos artistas. Mesmo quando ele não se torna um trabalho independente, é um instrumento essencial de criação, é nele que muitas vezes um pensamento plástico primeiro aparece.