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agosto 3, 2007
Textos críticos: Alice Shintani e Renata Tassinari na Virgilio
Textos críticos: Alice Shintani e Renata Tassinari na Virgilio
Alice Shintani - Quimera, de Guy Amado
Pinturas - Renata Tassinari, de Taísa Helena P. Palhares
GUY AMADO
A um primeiro olhar, é difícil ou improvável pensar que a experiência de imersão promovida por Quimera no espaço expositivo da Virgílio possa ter sido gerada a partir de uma situação relativamente tensa, de um impasse que Alice Shintani experimenta em sua produção. Ou, mais especificamente, na relação com sua produção a partir das demandas - expositivas, institucionais, de mercado, etc. - a que esta começa a ter que responder. Nada muito extraordinário na trajetória de uma jovem artista, mas que o alto grau de rigor de Alice para com o próprio trabalho impõe uma série de reflexões mais cuidadas. E nesse sentido o título pode ser de certa forma emblemático - embora não explicativo - das pulsões que alimentaram essa mostra.
Realizada - quase "aplicada" - diretamente sobre o piso e paredes da galeria, a, digamos, pintura-instalação que dá nome à exposição distancia-se daquela fisionomia mais silenciosa e "agradável" característica da produção com que a artista vem ganhando visibilidade de tempos para cá. Envolvendo o ambiente num registro ambíguo, quase alegre mas amortecido pela paleta cromática áspera, a pintura ainda assim vibrante de "células-escamas" - livremente derivadas de gravuras japonesas - não induz a uma leitura clara a respeito de sua existência, embora a intensidade de tal presença pareça conter algo de afirmativo em seu bojo.
Nessa desconcertante e algo anódina padronagem de matizes orgânicos que reveste e contamina o espaço, a mencionada origem turbulenta da proposta se revela aos poucos. A natureza incerta do trabalho conduz a uma experiência de estranhamento. De que diabos se trata essa "pintura-ocupação"? Seria ela imbuída de alguma pretensão na linha da site-specificity, ou quem sabe visa aludir a certa tradição ornamental? É pintura de fato? Talvez uma pintura que não é... O estranhamento é deliberado, sem dúvida: mais que isso, apresenta-se como elemento estrutural na prática da artista, tomada que ela está de um ímpeto em investigar e repensar certos aspectos definidores do estatuto pictórico na contemporaneidade, problematizando no próprio trabalho a "verdade" canônica de algumas convenções.
Interessa a Alice desestabilizar algumas certezas e reducionismos em torno da linguagem pictórica. De como a pintura pode ser instrumentalizada por discursos e leituras esquemáticos, numa chave interpretativa que não raro compromete ou esvazia a natureza de sua própria razão de ser.
A opção por recorrer agora a uma nova solução plástica fala um bocado do processual da artista. A escala expandida inédita, a tinta aplicada diretamente sobre a arquitetura e certa "vontade ambiental" convergem para aspectos, ou anseios, já percebidos em sua pintura "convencional": o raciocínio instalativo, o modo de pensar a relação de seus quadros com o espaço, a boa e velha tinta suvinil, a convocação do público ao exame mais atento do que se passa em suas telas, para além dos "confortos da forma" que se delineiam indolente e ardilosamente em suas superfícies, bem como da suposta "vocação moderna" das mesmas - como uma apressada leitura formal pode sugerir. Está tudo ali, subjazendo àquela espécie de epiderme estranha, embora certamente em registro mais velado.
Todo esse jogo de [falsas] aparências e contrapontos ganha aqui uma nova escala, e não apenas do ponto de vista literal. Por outro lado, a proposta imersiva em curso com Quimera não pretende oferecer uma leitura fechada, objetivamente coesa e ilustrativa de tais pulsões. O projeto se apresenta mais como fruto de uma inquietação pontual, podendo ou não sinalizar novas possibilidades na práxis da artista. A conjunção de momento e local propícios só fez potencializar a empreitada. Realizado em um modus operandi não de todo dominado por Alice, como tal o trabalho se oferece mais ao risco; o que é sempre um fator estimulante, indicativo de frescor.
TAÍSA HELENA P. PALHARES
Elemento fundamental de sua pintura, a cor no trabalho de Renata Tassinari sempre teve uma fisicalidade marcante. Ela tem corpo e é matéria que se revela dos modos os mais diversos: na aglutinação de diferentes materiais, na exploração de superfícies rugosas, nas pinceladas marcadas, na sobreposição de cores, na colocação lado a lado de determinados tons e, mais recentemente, pela estruturação do trabalho em módulos. Ela nunca foi enfocada apenas como acontecimento visual. Na verdade, suas pinturas se movimentam nesse espaço, tão rico para arte moderna, entre o objeto e a pintura, ou seja, evidenciam o caráter objetual desta, seu fazer enquanto coisa que em si não carrega nenhuma distinção a priori dos outros objetos do mundo. A seu modo, elas respondem a sempre problemática indagação: o que significa dizer que algo é um objeto de arte?
Nestes novos trabalhos, a regularidade e exatidão de formas e cores remetem, juntamente com uma certa padronização e repetição de estruturas básicas, ao universo dos objetos manufaturados, de eletrodomésticos a peças de design. Contribui para essa aproximação a utilização de placas de diversos padrões de mdf e molduras acrílicas que são explorados enquanto tais, ou seja, estão presentes nas pinturas lado a lado da tinta a óleo como elementos pictóricos fundamentais. As cores vêm fortes, em contraste. Determinados tons de rosa, verde, vermelho, amarelo e azul, cuja presença marcante se dá por aquilo que elas têm de ordinário e característico, unem-se às tonalidades artificiais da madeira industrializada ou são filtradas pela superfície acrílica.
Por outro lado, ao utilizar esses materiais também como elementos estruturais, as pinturas tangenciam o espaço arquitetônico. Em trabalhos como Quadrado Amarelo (2007) e Quadrado Rosa (2006) a linha formada pela moldura de acrílico branca ao mesmo tempo contém e expande o espaço, do mesmo modo que o jogo entre opacidade e reflexão da luz na superfície sugere um vai-e-vem no qual os limites físicos das pinturas são constantemente recolocados. As bordas da moldura de acrílico ora são pintadas por fora ora na parte exterior, sugerindo uma dialética sutil entre a exterioridade e a interioridade das pinturas. Na série de Fachadas, a caixa de acrílico funciona simultaneamente como um meio de contenção e ampliação, produzindo mediante o deslocamento espacial uma arritmia inesperada. Ao mesmo tempo, a transparência do material propõe uma integração da superfície da parede no jogo visual desencadeado pelo trabalho, procedimento inédito na produção da artista.
A meu ver, o interesse na fisicalidade enfática dessas pinturas, que não escondem como e do que são feitas, reside naquilo em que se apresentam como atuais, pertencentes a um espaço e tempo que é deste mundo e não de um além. Sua força vive nessa espécie de dupla instantaneidade: reconhecemos prontamente aquilo que vemos, seja pela familiaridade com os materiais que afinal fazem parte do mundo cotidiano, seja pela proximidade espacial das pinturas na medida em que estas se projetam para fora, ao encontro do espaço do espectador.