|
maio 2, 2007
Viver juntos ou lutar juntos? Convivência e conflito nas estéticas contemporâneas, por Barbara Szaniecki
Viver juntos ou lutar juntos? Convivência e conflito nas estéticas contemporâneas
Réplica de Barbara Szaniecki à crítica de Lisette Lagnado, originalmente publicada na Folha de São Paulo, no dia 18 de março de 2007
A proposta de introduzir numa Bienal o instante fugaz em que a potência política se alia ao gesto estético é de uma pretensão à altura da incompreensão da natureza desses fenômenos acontecimentais. Quais são os dispositivos teóricos e práticos que permitem apreender o evento estético-político? Como abrir espaço e tempo para a criação estético-política? Como transformar a instituição de espetáculo em um terreno de experimentação? Em outros termos, como deixar acontecer? Não seria justo afirmar que na última Bienal o imprevisível não deu as caras. Pois ele aconteceu sim na relação de força entre os artistas convidados e a instituição: a censura aos bloqueadores de celulares de Marcelo Cidade, ao projeto do mexicano Hector Zamora, e ao Guaraná Power do Superflex foi o melhor que a Bienal produziu. O embate político liberou a criação artística.
No entanto, a incapacidade de perceber a possibilidade aberta no conflito que se instaurava levou a curadoria a uma posição equivocada. Refugiou-se atrás do presidente da instituição que, preocupado com os constrangimentos que toda censura acarreta, disse que a instituição "não é o palco adequado para discutir relações de caráter comercial" (UOL. 04/10/2006). Ora, instituições como Bienais não estão no epicentro das relações comerciais - materiais e imaterias - que permeiam o campo da Arte, dos artistas e dos discursos que os legitimam? Por que em vez de travestir a instituição em palco de falsa convivência - num viver juntos - não assumi-la como palco dos necessários conflitos que podem provocar o acontecimento criador?
O evento Foucault e Negri ou como juntar força conceitual com militância política
Após duas décadas de sonolência, o ativismo social encontrou novo fôlego num ciclo de lutas globais: manifestações contra o G8, a OMC, o FMI e, desde 2003, contra a invasão do Iraque. Desde Seattle em 1999, houve um renascimento dessas lutas inspiradas em maio de 68, período no qual os jovens da Europa e dos Estados Unidos iniciaram um processo que contagiou o mundo. Infelizmente, na nossa América Latina, frente à irrupção de potência daqueles anos, os poderes constituídos efetuaram o golpe que inaugurou o ciclo mais terrível de nossa história recente. Terrível, mas resistente: Oiticica parangoleia, Clark experimenta, gerando uma anti-Arte. Retornando à Europa: naqueles anos de "imaginação no poder", contrariando intelectuais que, nas clausuras das academias, preocupavam-se com universais que não davam conta da ebulição social, Foucault, na França, e Negri, na Itália, conjugaram em suas mentes e em seus corpos fertilidade intelectual com ativismo político. Militantes de todas as classes sociais alimentaram suas práticas com as inovações teóricas desses autores.
Algumas dessas práticas tinham efetivamente grande força estética, apesar da inexistência de pretensão Artística. Participar da liturgia dos museus não fazia parte de suas preocupações. Entre as manifestações iconográficas daquele momento, destaco os cartazes do Atelier Populaire de Paris: em maio de 68, estudantes e operários realizaram inúmeros cartazes de grande impacto visual. Em sua luta contra as instituições do poder e do saber, certamente não cogitavam outro lugar de exposição que não fosse a rua. Não se tratava de uma "anti-arte", mas de uma tática ambígua de um "nem Arte, nem Anti-arte". Uma produção inclassificável porque sempre em movimento: nômade. Inclassificável porque sempre heterogênea: monstruosa. Deleuze e Guattari também contribuíram dando a esses expressivos militantes o vigor teórico de que precisavam; eles retribuíram, dando a força estética que esses autores desejavam. Estetização da política (não aquela promovida pelo fascismo e denunciada por Benjamim, mas uma estética produzida por muitos e reproduzível para muitos) e politização da arte avançaram juntos em 68.
Foucault morreu em 1984, mas sua "artilharia" teórica - forjada nas suas lutas públicas e privadas - continua disponível a todos que pretendem compreender os mecanismos de poder e resistência nos discursos. Negri reconhece a influência de Foucault que deve ser incluído entre os autores que traçam a linha "maldita" de seu pensamento, pensamento que é hoje referência para os movimentos globais e locais, sejam eles artísticos ou não. Em última instância, são esses movimentos (e não os vassalos das instituições) que poderão confirmar se essa artilharia teórica é potente ou não.
Nem Foucault e nem Negri debruçaram-se demoradamente sobre a Arte. Contudo, sua teoria e sua prática política prestam-se à análise da constituição desse campo específico. O simples dizer "o que é" e "o que não é Arte" é disciplinamento e controle do espaço e do tempo dessa curiosa forma de conhecimento. Seleção da área e do momento de exposição, seleção dos artistas, das obras e de seus suportes e, finalmente, seleção dos discursos que legitimam a todos. Como evitar uma construção autoritária? Como evitar, por exemplo, a delimitação eugênica de um campo que reduz a "jargão" toda teoria julgada inconveniente pela crítica despótica e arrogante? É evidente que o problema não pertence unicamente às Artes. Ocorre também no design. Pois a constituição de todo campo se dá através do exercício dos podres poderes constituídos, cuja característica fundamental é a redução da multiplicidade de discursos a um só discurso legitimado. É possível escapar a esse estéril exercício? Manter o campo aberto à relação com outros campos é um começo. Manter o campo aberto à relação com outros movimentos sociais, artísticos ou não, é uma boa continuação. Em todas e entre todas essas situações, a pluralidade de experimentações preparou o terreno para o possível acontecimento do novo: novos saberes, novos discursos, novas imagens, novos olhares.
Estética da multidão
Em Estética da Multidão, analisei processos que, por serem muitos, são avessos a toda forma de classificação e que, por estarem sempre em mutação, são avessos a toda forma de captura. O avesso do avesso do avesso do avesso: subversões, inversões, carnavalizações e semiofagizações propostas pelas lutas sociais globais no império contemporâneo. Mimetizando seus movimentos, transitei da teoria política às práticas estéticas experimentando, para além das aparências acadêmicas, um tateamento despretensioso dos terrenos estético e político que me permitiu evitar as certezas totalitárias de cada campo específico. Ao final do livro, baseando-me em Poder Constituinte de Negri (ou seja, a partir de um "fora" do campo constituído das Artes), abordei a subversão de um espetáculo midiático (a legitimação da guerra do Iraque pelas imagens catódicas da queda da estátua de Saddam em Bagdá) em evento multitudinário (a crítica da guerra através do irreverente tombamento de uma falsa estátua de Bush em Londres). Do ritual ao inesperado: procurei o léxico adequado para dizer o que até então era indizível ou mal-dito.
Nem "Arte social engajada", nem "Arte-ativismo" e nem "práticas Artísticas colaborativas" satisfaziam, na medida em que "aquilo", para mim, não era necessariamente Arte, nem necessariamente anti-Arte. Simplesmente essa questão não me interessava. O até então indizível foi designado como o ansiado acoplamento entre uma expressão estética e uma potência política, como o imprevisível encontro da estetização da política (mais uma vez, não se trata daquela que angustiava Benjamin, ou seja, de uma fonte única, totalitária e manipuladora de massas) com a politização da arte: uma estética de potência para além da representação do poder, uma estética da multidão.
Ora, essa estética constituinte, por ser um excesso sempre em mutação - um monstro, no maravilhoso vocabulário negriano - felizmente não "cabe" num livro. E ainda menos numa Bienal, pois o problema da última edição em São Paulo não foi certamente a quantidade de espaço disponível, mas a falta de qualidade na relação entre teoria praticável e prática teorizável. Coletivos de Artistas são eventualmente cooptáveis e cooptados, mas seus monstruosos processos de cooperação e o comum que deles resulta resistem vivamente na polis real e virtual. Esse monstro é a própria vida que não "cabe" nem mesmo dentro de um enorme pavilhão, orientado por duas interessantes linhas oiticicanas e sob um título espetacularmente sedutor. O projeto é louvavelmente ambicioso, os recursos são poderosos, no entanto o evento vital escapa por todos os lados pois não é possível reduzir as práticas sociais dos muitos para muitos a uma Arte de poucos para poucos. A vida resiste nos conflitos políticos dos quais procurei apreender as livres expressões estéticas nas ruas das cidades e nas páginas da internet. Nesses espaços comuns, a questão que se coloca à multidão contemporânea não é um "como viver juntos", mas um "como lutar juntos". Para conseguir abordá-la, só assumindo abertamente o conflito em vez de camuflá-lo numa hipócrita convivência.
Excelente abordagem.
Há 3 dias atrás eu e amigos discutíamos as questões: 'aquele trabalho é arte ou design?',' o que é arte?', e diversas questões subjacentes à essas, que foram muito bem traduzidas no sexto parágrafo.
Também é um prazer perceber que minhas opiniões (assim como as da autora) a respeito destes temas tem um DNA de Foucault. Não li suas passagens sobre arte, mas devido a ter bebido na sua poderosa 'artilharia conceitual' percebo inumeros temas por uma optica já inconscientemente focaultina. O que é excelente.
A síntese sobre o que se viu na Bienal é o ponto central da questão; Pena que registraram de maneira muito difusa este 'vitae' que escapou entre os dedos da Bienal.
Posted by: Adriano França at julho 26, 2007 2:48 AM