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março 28, 2006
Para Conversar (considerações acerca de Souzousareda Geijutsuka), por Fabiola Tasca
Para Conversar (considerações acerca de Souzousareda Geijutsuka)
FABIOLA TASCA
Texto produzido para a exposição de Yuri Firmeza, série Artista Invasor do Museu de Arte Contemporânea do Ceará
Ouvi falar do trabalho de Yuri Firmeza. Inicialmente por intermédio de amigos, depois li alguma coisa na imprensa. Fui contatada pelo Jornal O Povo para escrever sobre arte contemporânea em função, justamente, dessa repercussão e, embora não tenha produzido nada naquele momento, o fato é que minhas disposições iniciais de leitura para a "invasão" de Firmeza me conduziam à qualificá-la como "tola"; apenas a conivência do Centro Dragão do Mar parecia constituir um elemento importante. Claro que tal conivência não se trata de um detalhe, e era a intenção de salientá-la que parecia conferir ao trabalho uma espessura e interesse capaz de desviá-lo da expressão "Muito barulho por nada" ou, ainda, das inúmeras sentenças (estranhamente entusiasmadas): "arte contemporânea é mesmo uma fraude". Pretendo aqui, então, apontar minha pretensão de leitura inicial para o trabalho e exibir como esta pretensão encontrou um certo endereçamento a partir da leitura de alguns apontamentos de Anne Cauquelin, bem como das repercussões da "situação".
Convidado da Curadoria do Museu de Arte Contemporânea do Ceará, para o projeto "Artista Invasor", Yuri Firmeza "produziu" um artista japonês de nome Souzousareda Geijutsuka (artista inventado), autor da mostra a ser inaugurada: Geijitsu Kakuu (arte e ficção). No dia previsto para a abertura, a galeria estava ocupada pelas matérias publicadas na imprensa local e mensagens de e-mail trocadas entre o artista e o sociólogo Tiago Themudo (de cuja existência, obviamente, duvido: um sociólogo chamado "O Mudo"?) A divulgação da exposição contou com a fabricação de biografia, currículo, obras, bem como uma assessoria de imprensa e, principalmente, com a parceria entre o artista e o Centro Dragão do Mar. É sobre tal parceria que gostaria de, num primeiro momento, discorrer. Acredito que essa relação pode nos auxiliar a qualificar alguns aspectos da expressão "arte contemporânea". Refiro-me aos laços entre artista e instituição como condições de possibilidade para a própria existência do trabalho. O importante é salientar que tais laços configuram uma certa especificidade do contemporâneo, ou seja: estamos há muito distantes da conhecida condição de exterioridade, típica do artista moderno. Condição cúmplice da idéia de arte em ruptura com o poder instituído (o artista contra o burguês, os valores da recusa, da revolta, o exilado da sociedade - apesar de algumas matérias da imprensa local insistirem em qualificar o artista de "revoltado", o trabalho como "protesto" ou "pichação", tais termos soam anacrônicos se ressaltarmos o engenho da ação e a cumplicidade da instituição).
Nessa perspectiva, o trabalho de Firmeza compartilha questões problemáticas com o trabalho Fortuna, da artista Carla Zaccagnini, realizado para/no Museu de Arte da Pampulha em Belo Horizonte, em 2002. Convidada pela instituição para realizar um projeto específico para aquele espaço, Zaccagnini convidou o leitor à montagem de uma espécie de puzzle para o qual dispôs como peças: registro via e-mail de conversas com a curadoria; fotografias de viagem; cotação de preços de passagens aéreas e de hospedagem; recibos e comprovantes de custos de viagem; termos que explicitavam relações de chancela e subvenção; antigos objetos de jogo utilizados pelo Cassino da Pampulha, compartilhando a "sala da memória" com depoimentos gravados em áudio (vozes falando sobre ganhar e perder no cassino, bem como sons provenientes de atividades de jogo); orçamentos para confecção de cartões postais que se encontravam expostos, e nos quais havia uma justaposição de imagens do atual Museu da Pampulha (antigo cassino) e do Casino Central, em Mar Del Plata. A partir da leitura das mensagens trocadas entre a artista e a curadoria, um leitor atento e interessado poderia conectar os elementos dispersos no espaço do Museu e conformar uma estrutura narrativa que configurava a experiência de uma viagem realizada pela artista para o Casino Central, na cidade de Mar Del Plata, em seu país natal. Tal leitor poderia também problematizar noções acerca de sua idéia de arte, em função dos papéis e lugares articulados pelo trabalho (artista-instituição e público). Percebemos assim, como as intenções do projeto foram se conformando pela interlocução entre estes lugares discursivos (artista e instituição), até constituir o trabalho "Fortuna".
Assim como em Fortuna, em Artista Inventado a cumplicidade entre artista e instituição é uma chave de leitura importante para o trabalho, também porque tal cumplicidade aponta para a condição do público de exclusão dessa relação. Em matéria de Dalwton Moura, no jornal Diário do Nordeste, no dia 11 de janeiro de 2006, Firmeza pontua: "Meu objetivo não é constranger o público, aliás, o público é uma das peças dessa engrenagem". Ambos os trabalhos sublinham um espaço de "jogo" ao qual o público pode aceder por um exercício de leitura (um exercício de conferir sentido às ações). Mas há inúmeras diferenças entre as propostas de Zaccagnini e Firmeza. Em Fortuna, a relação que o trabalho propõe com o leitor, convida-o a uma atitude detetivesca, recolhendo indícios e procurando conferir sentido a elementos aparentemente desconexos. A desconexão é apenas aparente, está tudo ali, exposto no Museu, bem às vistas do leitor, numa disposição cujo princípio parece emular o da famosa "carta roubada", de Poe". Em Artista Inventado o que salta aos olhos é um movimento que conduz o leitor a uma espécie de "sentimento de pegadinha" (sentimento esse expresso veementemente por algumas vozes da imprensa). O trabalho é a própria revelação de sua condição de engodo. Risos e resmungos à parte, o que interessa aqui é salientar algo de sua articulação e estratégia e procurar analisar seus efeitos. O protagonista da estratégia de Firmeza poderia ser descrito como o papel e lugar dos meios de comunicação na sociedade contemporânea (e o sistema da arte aí incluído).
Para compreender melhor esse propósito, Anne Cauquelin oferece alguns apontamentos úteis. A partir de uma distinção entre os regimes de funcionamento da arte moderna e da arte contemporânea, Cauquelin estabelece uma polarização entre regime de consumo e regime da comunicação. Diagnosticar ou apreender algo da qualidade do contemporâneo consistiria, então, em analisar o funcionamento da arte no regime da comunicação, este completamente distinto daquele regime de consumo que regulava a arte moderna. Nessa perspectiva, Cauquelin lança mão de algumas noções do campo da comunicação que servem de princípios tácitos ao funcionamento dessas práticas, para daí extrair ferramentas de leitura e entendimento da arte contemporânea.
A noção de rede é fundamental para a análise empreendida pela autora que a contrapõe à dinâmica do regime de consumo, no qual cresce o número de intermediários entre artista e consumidores. Mas, como Cauquelin pontua, "não é na progressão linear do regime de consumo que vão se encadear as características da arte contemporânea" . Nesse ponto, a noção de rede vem salientar o funcionamento do "regime de comunicação", que gere tanto a maneira como a arte circula (o mercado), como o "conteúdo" das obras. E, aqui, podemos encontrar como efeito da estratégia de Firmeza a demonstração de que "passar a informação, em uma rede de comunicação, é também fabricá-la" . Assim, não seria pertinente afirmar que os "criadores" do artista japonês seriam os próprios meios de comunicação? Mas, nessa perspectiva, a matéria de Regina Ribeiro, publicada no jornal O POVO, em 12 de janeiro, lança luzes mais esclarecedoras ao afirmar que Souzousareta existe, uma vez que "ele" aponta para a existência de "outras 'criações' políticas, bélicas, científicas que o jornalismo contemporâneo tem ajudado a tornar reais".
Mas o trabalho de Firmeza também equaciona alguns problemas específicos da arte contemporânea que são formulados por Cauquelin: "A realidade da arte contemporânea se constrói fora das qualidades próprias da obra, na imagem que ela suscita dentro dos circuitos de comunicação" . Nesse sentido, a afirmação de Firmeza, reproduzida ao final deste texto: "é preciso ver a exposição" ganha uma perspectiva menos evidente. Melhor seria dizer que tal imperativo dirigido à exposição de um trabalho que dispensa "questões propriamente estéticas" poderia ser entendido como um convite a ver, perceber, se dar conta do que fica "exposto" por intermédio do trabalho; seria preciso, então, ver através do trabalho. Ainda assim, não penso que os termos "denúncia", "desmascaramento", "protesto" e afins sejam os melhores conselheiros em uma jornada de leitura de Artista Inventado - mesmo que as próprias declarações de Firmeza, muitas vezes, conduzam a esse campo semântico.
No início deste texto afirmei meu interesse em tentar apreender algo da arte contemporânea a partir da leitura do trabalho de Firmeza. O que consegui concluir está expresso no título deste texto como resposta à questão enunciada pelo próprio Firmeza, que oferece algumas chaves de leitura para o trabalho: "Tudo está integrado a um exercício do simulacro, cujo objetivo é retirar os hábitos de seu estado de evidência. Inclusive hábitos estéticos, do tipo 'Por que gostamos de arte?' É preciso ver a exposição."
essa fabiola é um verdadeiro pé no saco e picareta
Posted by: paula at março 28, 2007 9:37 AM