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setembro 15, 2004
Conversa entre Ana Holck e o curador Guilherme Bueno
Ana Holck mostra vídeos atualmente no Cinemac no MAC-Niterói.
Guilherme Bueno: Você poderia começar falando sobre a questão do registro em vídeo. Como você vê e pensa este processo de passagem de uma experiência efêmera para um outro "suporte"?
Ana Holck: Vejo os registros de trabalhos em vídeo como uma forma de prolongar um pouco a vida destes trabalhos efêmeros e site-specific, e que por isso são únicos, não repetíveis. Deste modo, registrando o trabalho da forma mais completa possível, revelando ao máximo a relação que ele estabelece com o espaço e com o espectador, posso ter um registro mais fiel da obra, uma vez que esta não poderá ser vista novamente. Creio, porém, que a passagem para outro suporte de fato não ocorre: o vídeo possui características próprias que por vezes potencializam a obra, mas tenho dúvidas quanto à possibilidade de um trabalho de arte pensado para uma determinada situação poder existir em outro suporte. Por outro lado, e talvez seja o lado mais rico da experiência de filmar, o vídeo também devolve um novo olhar sobre o trabalho, pois o olho da câmera seleciona de tal modo a experiência que acaba trazendo novas possibilidades para o trabalho, por vezes até mesmo apontando outras direções para o artista.
GB: Esta passagem para uma outra linguagem traz ainda outra questão, que é a de uma mudança nas relações de espaço, tempo e percepção, um problema emblemático nas artes plásticas. Neste caso, sobretudo se considerarmos a questão do espectador e sua "postura" junto à obra, pois em cada um destes casos o seu embate é bastante diferente. Quer dizer, a instalação e o vídeo registram tempos, espaços e modos de percepção organizados segundo códigos diferenciados. Ele não provocaria no espectador uma relação de especificidade com a obra (ou uma nova especificidade da obra), ainda que diferenciada?
AH: O registro em movimento é sem dúvida um extraordinário recurso, que nos permite uma quase-experiência, mas que no caso dos trabalhos espaciais acaba por aumentar ainda mais a necessidade e o desejo de travarmos um embate com a obra propriamente dita. Deste modo, eu diria que qualquer registro é insatisfatório quando buscamos a experiência do todo.
São dois modos de percepção muito distintos: tanto no contato travado com o trabalho quanto na percepção passiva de um registro filmado, você acaba tendo como elementos a mais as características dos suportes - o espaço e a imagem - respectivamente. No caso da filmagem como "suporte", teremos a presença da linguagem cinematográfica como um dado a mais do problema. E se por um lado, como vínhamos dizendo, isso pode contribuir para o trabalho, por outro também temos a presença de elementos exteriores a ele, que aproximam esta experiência do cinema, suprimindo o contato direto com o trabalho.
Finalmente podemos constatar que o registro filmado te apresenta um olhar pronto, não deixa que você mesmo experiencie o trabalho e de certa forma acaba tornando-o algo a ser contemplado e não vivenciado. Esta é uma experiência diametralmente oposta à experiência de descobrirmos as coisas com nossos próprios olhos.
GB: Insistindo ainda um pouco nesta questão do registro e do site-specific, você comenta que o registro de um trabalho em vídeo não tem um estatuto artístico, mas mesmo assim eu o vejo como um elemento interessante dentro do processo do seu trabalho, pois de algum modo ele passa a ser incorporado na existência do mesmo. Digo isto pensando particularmente no caso do Robert Smithson e do Matta-Clark, em que acabam se absorvendo dentro do universo de uma "situação" (o "trabalho em si") estes vários desdobramentos. Como você vê este dado no seu trabalho, pois, se o vídeo não equivale jamais à experiência objetiva, ele de certo modo se torna o índice dela, isto é, uma possibilidade de sua percepção. Uma percepção, acrescento, quase fantasmática, na medida em que você se relaciona em "tempo real" com algo que não existe mais materialmente, apenas sob forma de imagem.
AH: Assistir a um filme é uma experiência passiva, em que você não tem opção de escolha, não experimenta a coisa propriamente dita; deste modo, eu diria que há realmente essa percepção fantasmática a que você se refere, uma vez que não se tem um embate com o trabalho. Não é você que está ali, mas sim a câmera, e mesmo assim você pode perceber e sentir inúmeras coisas através do registro. De certa forma, o valor da documentação em movimento está no fato dele te trazer algo que possivelmente você não fosse perceber se estivesse percorrendo o trabalho propriamente dito, pois as percepções de cada um são muito diferentes. Entretanto, estas informações estão sendo dadas a você, pois ao deparar com o trabalho certamente você teria sensações muito diversas das suscitadas pela filmagem, que não te ocorreriam sem que você tivesse visto o trabalho propriamente dito.
GB: Sobre esta questão da "migração" de linguagens, poderíamos dizer que no caso do vídeo sobre a instalação Rotatória, apresentada na exposição INSOLA(R)ÇÕES, ele procura reconstituir uma experiência de espaço específica, mas em outro sistema visual?
AH: Por vezes a filmagem consegue potencializar sensações e percepções apenas indicadas no trabalho. A fotografia, seja ela em movimento ou em still, pode ajudar a destacar determinados aspectos do trabalho, uma vez que o olho da câmera é muito seletivo. Podemos assim eliminar qualquer interferência existente no local e focalizar nas principais características do trabalho, naquilo que queremos de fato que os outros percebam. Neste sentido, eu diria que o registro da Rotatória é muito bem-sucedido, pois enriquece a percepção do trabalho. Se por um lado podemos ressaltar e filtrar apenas aquilo que nos interessa, por outro, no registro fotográfico e mesmo na filmagem - onde temos o movimento -, perdemos a referência do todo, inclusive as interferências e imperfeições que qualquer objeto inserido no mundo possui. No caso de um trabalho que lida primordialmente com o espaço, isto também se torna um defeito muito grave destas mídias. O registro em vídeo se revela ambíguo, pois nos dá a ilusão de que vemos o trabalho por completo, com todo o seu dinamismo e espacialidade registrados, mas jamais teremos a experiência do real, isso apenas a presença humana poderá garantir. Deste modo, a câmera acaba por se tornar um recurso ilusionístico, uma vez que automaticamente descarta as informações aparentemente sem relevância. Então voltamos ao ponto em que podemos afirmar que nada substitui o real embate com o trabalho; nesta experiência podemos ter a noção de escala colocada pelo trabalho e de fato sentir a emoção de pertencermos a um mundo real e palpável.
Agosto 2004