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outubro 10, 2020
Dirnei Prates - Filme-fátuo por Mario Gioia
Filme-fátuo
MARIO GIOIA
As imagens que formam o conjunto de Filme-fátuo, primeira individual de Dirnei Prates em São Paulo e a quarta edição do projeto Perímetros, traçam, entre a aguda urgência e o exercício contemplativo, um percurso vigoroso, não linear e permeável ao risco. O caráter multidisciplinar de sua obra faz com que filmes, vídeos, fotografias, instalações, livros de artista e objetos, entre outros, transitem atualmente por meio de estratégias conectadas a um espírito de tempo mais combativo, de um agora algo perplexo, ou focadas nas transformações mínimas e cotidianas pelas quais todos passamos e que usualmente nos escapam de visadas mais atentas.
Nessa jornada construída em Filme-fátuo certamente há pedidos de socorro estridentes, átimos-passagens de desespero, contudo o recorte também se apresenta por procedimentos, abordagens e corpus de obra menos ostensivos, em que a reflexão sobre as peças reunidas e observadas coletivamente nos dão um certo amargor, uma sensação de finitude, um sentido de preservação frente a um desastre futuro ou à porta do nosso hoje. O público se situa entre perda e permanência, vestígio e completude, grafismos de cavernas e bombardeios virtuais. Ao selecionar, ver, ler e sentir os trabalhos, trocar ideias, debruçar-se sobre a escrita, me vieram instantes de variadas linguagens e configurações - desde um formigueiro em close por Kiarostami, a Quarta-Feira de Cinzas de Cao Guimarães e Rivane Neuenschwander, um chuveiro aterrorizante a mesclar Martin Arnold e Hitchcock, a poética analógica de Tacita Dean, os experimentos amadores-mágicos de um cinema ainda a florescer, um epílogo de Spike Lee, polaróides de Tarkovski, fotografias em chamas de Hollis Frampton, produções em menor escala de Cildo.
E o título. Neologismo que se refere a fogo-fátuo, obviamente. O fenômeno que possibilita ver luzes originárias de material orgânico em decomposição provocou tal criação etimológica. Fortalece o aspecto material da utilização de filme - matéria-prima, lembre-se, que possibilitou a emergência do cinema industrial e que hoje vem sendo abandonado pela prevalência do paradigma digital -, tão bem escolhido, manipulado e reinventado na produção do artista gaúcho. E o fogo do termo original que hoje invade e arrasa, não apenas no plano simbólico, a nossa psique. Pantanal, Amazônia, Museu Nacional. Não faz muito tempo, MAM Rio. E que perturba qualquer profissional ligado ao audiovisual frente à desalentadora situação da Cinemateca Brasileira, com seus negativos, rolos, nitratos etc em triste desamparo.
Inicialmente, há um vídeo na entrada do espaço expositivo do Adelina, Pipare, cujo significado em iorubá se refere a apagamento. Formigas saem de cena em um plano fixo que ganha trilha de violência, com sons de tiros, bombas, tapas. Dialoga com Frátria, que se fundamenta em fotografias de imigrantes angolanos dispostas em espaços comuns do instituto, esvaziadas por ação de fita adesiva e que resultam em silhuetas despidas de identidade a personificar a invisibilidade social. Já em A luz não se fez, os diminutos rótulos de caixas de fósforo representando uma árvore, colocados em linha, terminam por desenhar uma paisagem calcinada (novamente a figura do fogo).
Uma das paredes da sala expositiva principal se ancora em uma perspectiva de fragmento, em que há desde um corpo prenhe de desejo (as fotografias que estiveram em mostra anterior do artista, A noite barroca, na Galeria Ecarta, Porto Alegre, 2016) até uma aparição disforme ou do reino do onírico (Peixe de três olhos), uma irônica mirada sobre a ordenação e a normatização, entre outros âmbitos (Zoológico), sem esquecer a face da rebeldia (Revolta) e da submissão (Delilah). Nesses últimos, há uma apropriação dupla de fotogramas cinematográficos (de Encouraçado Potemkin, 1925, e Imitação da Vida, 1934) que, ao serem retrabalhados, distendidos e esgarçados pelo artista, nos aproximam de uma leitura sobre poder, visibilidade e apagamento, entre outros vetores. Pensando no fotográfico como um conceito que transborda o meio e o suporte, o pensador francês François Soulages nos sintetiza: “(...) Em razão de sua própria natureza, a fotografia pertence à esfera de uma estética do fragmento, do dividido e do parcelar, de uma estética do kairós e de uma estética do ponto de vista, do particular e do singular: então, o irreversível e a finitude a governam” [1].
Dois trabalhos deste 2020 exemplificam a habilidade de Dirnei em tratar inquietos estados de espírito, pontuados por incômodos mais subjetivos e psicológicos ou por danos mais concretos do dia a dia, em trabalhos com distintas formalizações e mesmo poder de impacto. Abismo é uma instalação em que a catalogação de seres vivos que vivem nas regiões abissais marítimas ganha um curto-circuito entre iconografias e significados que, por meio de pequenos e fugazes instantes de luz, acompanhados de possíveis leituras, nos lançam em uma rede ruidosa, inútil e distante de qualquer precisão. O filme convertido para vídeo Ontem eu salvei um peixe traz imagens precárias e fugidias, que podem remeter a memórias e reminiscências, conectadas a narrações de episódios banais. Por fim, o tom de melancolia e algum mal-estar se estabelece, não sem levar-nos a rir nervosamente ou a pensamentos de empatia e (falta de) compaixão ou a algo longe disso. Uma espécie de teaser da obra do artista, que foge do previsível e opta por uma poética longe do simplismo, da facilidade e do estrito.
Mario Gioia, setembro de 2020
[1] SOULAGES, François. Estética da Fotografia – Perda e Permanência. São Paulo, Senac SP, 2010, p. 347.