|
fevereiro 17, 2020
Mariana Palma - Lumina por Priscyla Gomes
Mariana Palma - Lumina
PRISCYLA GOMES
Das muitas narrativas e interpretações na história da literatura, da música e das artes visuais, o mito de Orfeu é sem dúvida um dos mais presentes e revisitados. Sua origem na tradição clássica é narrada como um exímio poeta e cantor cuja destreza seria o ponto chave de seu encanto.
Os poetas latinos, Virgílio e Ovídio, dedicaram-se a narrar a história de Orfeu em seu périplo pela salvação de sua amada, a ninfa Eurídice. O encontro dos amantes acabou fadado a um sombrio desfecho: no dia de seu casamento, a ninfa morre ao receber uma picada de serpente. Atônito, Orfeu lançou-se numa busca pela esposa nas mais sombrias regiões. Sua descida às trevas de Hades, o reino dos mortos, resultou no resgate da amada que, como exigência dos deuses, só se daria com o cumprimento de um acordo: Orfeu a levaria consigo desde que não pudesse voltar-se para trás a fim de avistá-la.
Os amantes percorrem um território escuro, de difícil transposição, repleto de uma densa fumaça e do mais profundo silêncio. Em vias de concluir a transição definitiva para o mundo dos vivos, a missão de ambos falha. Diante da súplica de Eurídice por um sinal e uma resposta ao seu amor, Orfeu sucumbe e volta-se para trás. Ao encará-la, perde-a definitivamente.
Os trechos do poema Metamorfoses de Ovídio (8 d.C.) que narram o instante desse triste desfecho referem-se ao termo lumina como a síntese do instante em que os amantes ficam cara a cara. Trata-se da luz dos olhos de Orfeu, que no momento que se direciona a Eurídice emite um raio em sua direção.
No poema, a leitura do mito de Orfeu e Eurídice abre-nos uma possibilidade de interpretação para seus destinos. A fraqueza do herói que não aguenta a espera para finalmente estar frente a frente com sua amada teria peso equivalente à impaciência de Eurídice para a confirmação do seu amor. A síntese de lumina traz consigo uma dubiedade: remete-se ao tão esperado encontro do casal, mas faz desse encontro um destino fatídico à separação desses corpos.
A presente exposição Lumina vale-se da narrativa deste mito para conduzir um percurso pela produção da artista paulistana Mariana Palma. Como uma série de atos, tal qual uma ópera adaptada, o visitante percorre diversos momentos de seu trabalho tendo como nortes suas usuais referências imagéticas e compositivas. Explorando elementos provenientes da botânica, de estampas, organismos marítimos e fragmentos arquitetônicos, Palma aborda a interpenetração de corpos, destaca alternâncias entre instantes de tensão e expansão, e compõe infindáveis universos frutos da exploração de luz e sombra.
Já no primeiro ato que abre o percurso pelo espaço expositivo, uma série de aquarelas, pinturas e fotografias corroboram com a mitologia desses amantes. Com o caráter claramente labiríntico, a sucessão de salas narra junto à produção da artista, desde o enamoramento de Orfeu e Eurídice ao instante em que voltam a se deparar cara a cara. O encontro, que associa o clímax de uma possível fusão de corpos à desagregação inevitável do destino, é materializado por uma instalação em que frutos de palmeiras, tal qual duas cascatas, vertem-se em uma bandeja de líquido viscoso. Palma constrói por intermédio do jorro das plantas uma metáfora pujante do possível encontro desses corpos fatidicamente cindidos.
Os demais atos buscam explorar a atmosfera da busca de Orfeu por Eurídice. O reino de Hades e a possibilidade de uma fértil união do casal contrapõem-se em duas salas marcadas por pinturas de diferentes momentos da produção de Palma. O umbral e sua obscuridade, o renascimento e sua fertilidade, são fios condutores à aproximação dos trabalhos. Esses dois pólos explorados são determinantes à compreensão da multiplicidade do léxico da artista. Embora a profusão de elementos, aliada à intensidade do uso da cor, salte aos olhos no primeiro fitar das obras de Palma, a sutileza e rigor com que a artista articula cada camada sucessiva de tinta desvela um processo lento e meticuloso somente evidente quando nos debruçamos sobre a superfície planar de suas pinturas.
A noção de lumina de que se vale Ovídio parece permear diversos momentos da trajetória de Palma. A retrospectiva aqui proposta demonstra a recorrência com que a artista refere-se à ideia de integração de partes e de superfícies que se tocam e atritam dando forma a um novo corpo. A complementaridade entre masculino e feminino norteia nosso percurso. Valendo-se de inúmeros suportes, Palma associa a gramática da pintura barroca a colagens e registros digitais. Tal qual a lumina que define os mais pujantes encontros, nosso deparar com a produção da artista não resulta esquivo. Somos imersos numa poética sedutora ansiando pelo desvelar de suas camadas.
Priscyla Gomes
curadora