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março 14, 2018
Pinturas de Fresnel por Felipe Scovino
Pinturas de Fresnel
FELIPE SCOVINO
No começo do século XIX, o físico francês Augustin-Jean Fresnel inventou uma nova lente que acabou recebendo o seu sobrenome. Criada originalmente para uso em faróis para situações de sinalização marítima, sua configuração e dinâmica mudaram os parâmetros da navegação. Seu desenho possibilitou a construção de lentes de grande abertura e curta distância focal, descartando o peso e o volume das lentes convencionais, usadas até aquele momento. As lentes de Fresnel eram mais finas e passaram a permitir a passagem de mais luz, fazendo com que a luz do farol pudesse ser visível a distâncias bem maiores. As lentes foram industrializadas em sete tamanhos padrão, cada uma com diferente distância focal e acabaram tornando-se usuais pela navegação seja em oceanos, mares ou rios.
Esse preâmbulo é o motivo condutor para essa exposição que revela uma das mais recentes pesquisas de Alexandre Vogler, as Pinturas de Fresnel (2014-18). Postas lado, elas constituem uma força irradiadora de luz e energia que transforma a sala e o corpo do espectador em massas vibráteis. Nas palavras do artista, “a pesquisa, embora sustentada pela física-ótica (de referência newtoniana), aponta para a criação de estruturas condensadoras de energia, de ordem metafísica e pretensões espirituais”. A ideia de um núcleo de energia em expansão sendo produzido por artistas remonta também às descobertas da física moderna no início do século XX. A relação entre os estudos de física quântica e a teoria da relatividade têm diálogo com as pesquisas dos orfistas Delaunay, Kupka, Picabia e Léger. Mudanças na vida moderna levaram esses artistas a conceber o mundo composto por forças mais dinâmicas do que por objetos estáveis em uma representação estável do espaço-tempo. Acreditavam que essa mudança era acompanhada de uma nova consciência, “a qual também era por eles concebida como dinâmica – como expansiva e universalmente abrangente, ou como imersiva e autoconcentrada” [1]. Importante para esse contexto são os estudos a respeito da hipnose feitos por Charcot no final do século XIX e depois resgatados pelo seu mais conhecido discípulo, Freud, poucas décadas depois. Sem dúvida, essa conexão entre arte, física e espiritualidade sempre interessou a Vogler, mas volto a esse tópico mais à frente. A imagem de um objeto reconhecível mas decomposto em estruturas dinâmicas não-naturalistas está no seio das experiências orfistas, como é o caso da pintura Sol, Lua. Simultâneo (1913) de Delaunay. O artista acreditava que a geração circular de luz era o princípio fundamental de todo o ser, e em termos concretos essa afirmação provavelmente vinha pela influência que deve ter tido do uso “que faziam os poetas da estação de rádio instalada no topo da Torre Eiffel, emitindo ondas invisíveis ao redor do mundo, como uma metáfora para a expansão infinita da consciência” [2].
Se nos voltarmos para uma perspectiva brasileira, a relação entre vanguarda no campo das artes visuais e experiências de ordem de expansão da consciência, a discussão se torna mais rarefeita. Por mais que, por exemplo, as linguagens construtivas no país tenham elaborado a profusão o conceito de expansão da forma para além do plano, os interesses dessas pesquisas invariavelmente se mantiveram no campo formalista. Exceções foram Lygia Clark que através da geometria chegou a um tipo de xamanismo ao final de sua vida ao tecer relações muito próprias entre psicanálise e arte, e Rubem Valentim, cujos arquétipos construídos por meio da linguagem geométrica tinham claro interesse e comprometimento com as religiões afro-brasileiras. No caso desse último podemos também associar, guardadas as suas devidas especificidades, os símbolos representados em seus trabalhos com os cultos de origem afro-brasileira e a sua capacidade imersiva e de alteração da consciência. Nesses dois artistas, contudo, percebemos uma potência implícita nos trabalhos – percebam a pulsação nos Objetos relacionais de Clark assim como nas pinturas e objetos de Valentim e o quanto esses feixes vibráteis são completamente distintos de uma pintura Op ou uma escultura cinética – travestida em energia pulsante ou num arquétipo de corpo em permanente vibração. Estas características também são perceptíveis na pulsação de luz e condensação de energia existentes nessa exposição. Escrevo o texto dessa forma para evidenciar, mesmo que de maneira incipiente, um interesse legítimo dos artistas em refletir através de suas obras, sob as mais diversas estratégias e em maior ou menor grau, o fenômeno de uma condensação muito própria de energia que pode levar à ampliação da consciência e a relação da arte com o espiritual [3].
A exposição em questão fica na fronteira entre ser ao mesmo tempo um conjunto de pinturas e uma instalação imersiva. Esta característica de mergulho do corpo em meio a uma profusão massiva de luz amarela, sendo o espectador banhado e irradiado por uma potência energética mesmo que estejamos falando de obras sobre papel, é uma experiência que transcende o caráter formalista de uma obra. Esse trabalho em grande escala promove uma recriação artificial de fenômenos naturais, reexaminando nossa percepção sobre a luz, o tempo, a gravidade e o movimento, com uso de materiais próprios do meio artístico mas extremamente elaborados. Diferente de artistas como Olafur Eliasson e se aproximando mais de James Turrell e Robert Irwin, Vogler não se rende ao lúdico nem ao prazer hedonista que esse tipo de experiência pode se converter mas na capacidade de entender o corpo do público como algo simultaneamente reativo e desejoso em tomar contato com um experiência transcendental. Parece-me que a ideia imersiva no trabalho de Vogler é bastante clara: as serigrafias têm uma altura próxima à estatura mediana do espectador. Em algumas serigrafias, a figura que se confunde em ser o núcleo gerador das ondas vibráteis, irradia a luz e causa um forte impacto visual que remete ao conjunto de símbolos de matriz africana, já aqui citados, produzido na pesquisa de Rubem Valentim. Por outro lado, me parece que os tamanhos padrão que foram desenvolvidos industrialmente para a lente de Fresnel são evocados constantemente nas serigrafias. A sensação de moto contínuo no deslocamento de feixes produzindo um jogo óptico transfere ao espectador uma sensação de transe. Percorrendo a exposição presenciamos não só o efeito óptico, e por que não mágico, das “lentes” que vibram intensamente a partir de seu núcleo, causando a sensação de deslocamento das ondas sobre o papel, mas também um magnetismo proporcionado pela luz que “sequestra” o espectador: estamos invariavelmente submetidos a lógica interna e transcendental da obra.
É importante apontar que Pinturas de Fresnel dão continuidade ao interesse de Vogler em discutir a relação entre arte e o espiritual. Um dos cernes da sua pesquisa – haja visto trabalhos como Fumacê do Descarrego e Gira ou mesmo o Tridente de Nova Iguaçu - o espiritual me parece ser colocado em sua obra como um estado de provocação. Em um momento de intensa produção da lógica do capital e em que a arte parece não dar conta da velocidade anormal de prisões, delações e desvios de verba pública, Vogler – sem deixar de ser político, até porque isso é algo que deveria ser imanente à arte – se volta para o corpo. Induzir o sujeito a atingir níveis de compreensão de si, do espaço e do tempo para além da matéria, do real ou da vida concreta é sem dúvida alguma um dos mais potentes discursos políticos sobre a sociedade. Este estado de invenção, por assim dizer, é uma contribuição única da arte à construção de subjetividade e mesmo à vida em forma coletiva.
NOTAS
1 SPATE, Virgina. Orfismo. STANGOS, Nikos. Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 67.
2 Idem, ibidem.
3 Para além dos artistas citados, lembro ainda as pesquisas de Kandinsky e Joseph Beyus que cada um a seu modo ativaram em suas obras essa ligação com o espiritual.