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maio 21, 2017
Barrão por Felipe Scovino
Barrão
FELIPE SCOVINO
O trabalho de Barrão nasce em meio a uma nova conjuntura política do país. No início dos anos 1980, o Brasil estava imerso numa atmosfera de expectativa e esperança com a redemocratização. Nesse ínterim, a cultura assiste à chegada do rock, da new wave, dos grandes festivais de rock, da poesia marginal fruto da geração mimeógrafo e em especial, no Rio de Janeiro, à criação do Circo Voador e do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, duas importantes referências para o trabalho de Barrão, assim como de Luiz Zerbini. Eram duas oportunidades de trocas com artistas de todos os segmentos (teatro, música, artes plásticas, design) que criaram uma pulsão viva e marcante na cidade. Todos esses campos estéticos fizeram parte da formação de Barrão, um artista autodidata que chegou a frequentar algumas aulas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no final dos anos 1970. Aliás, este espaço sediou uma das mais icônicas exposições daquela década, Como Vai Você, Geração 80?, da qual Barrão também participou. Observando de forma retrospectiva, a participação do artista nesta exposição é importante para desmistificarmos a ideia de que foi uma mostra puramente de pintura, já que a obra que exibiu era formada por duas televisões que, colocadas uma defronte à outra, como o artista mesmo diz, “conversavam” tendo as suas telas pintadas em algumas partes para que uma determinada área ficasse “livre” de tinta e o público pudesse visualizar a ação que ali se realizava. Esta obra é índice de algo que o acompanhará ao longo de sua trajetória: o interesse por separar áreas, unir partes de diferentes fontes e elaborar uma obra composta por fragmentos.
Barrão claramente faz uso de objetos da cultura de massa (televisões, rádios, lavadoras, geladeiras, fogões, entre outros utensílios da vida moderna), especialmente nos primeiros vinte anos de sua trajetória, mas, ao contrário dos artistas da Pop Art, ele não tem interesse em explorar um acento dramático ou político desse contexto. Não interessa ao artista explorar uma crítica ao consumo ou ao mercado, mas demarcar um campo muito próprio, o da irreverência e do humor.
Sua carreira artística se dividiu em projetos colaborativos seja com outros artistas plásticos (é o caso do extinto Seis Mãos – em parceria com Alexandre Dacosta e Ricardo Basbaum, cujas atividades se deram ao longo dos anos 1980 – e, desde 1995, o grupo musical e performático Chelpa Ferro, encaminhando-se em 2017 para o sétimo disco), seja em trabalhos como designer, desenvolvendo capas de disco e livro (Barrão desenhou capas para discos dos Paralamas do Sucesso, Lenine, Herbert Vianna, entre outros, e realizou projeto gráfico para livros, como foi o caso de Letra elétrika, publicado em 1994 por Chacal, um dos expoentes da geração mimeógrafo). Já a sua produção artística foi marcada até o final da década de 1990 por um uso bastante acentuado de aparelhos tecnológicos e objetos domésticos e, no começo dos anos 2000, pela série de obras tendo a louça como material e meio de produção. Percebam que, em todas essas etapas, o artista sempre fez uso de uma colagem, seja na colaboração com outros artistas; na concepção estética de seus projetos voltados para o design nos quais a união de fragmentos dispersos ou encontros (aparentemente) aleatórios de imagens se fundiam, realizando um trabalho coeso e direto para aquele projeto musical ou literário; ou, sobretudo, a colagem ou hibridismo que se acentuam em seu trabalho com os objetos tridimensionais.
Há em todo esse universo de Barrão uma exposição do excesso, do cômico, mas também de um equilíbrio precário ou uma instabilidade provisória. É o caso de Árvore do viajante (2017), um dos novos projetos apresentados nesta mostra. Um pequeno tronco sustenta, em todas as suas ramificações, recipientes, com exceção de um desses galhos, onde se encontra uma penca de gorilas presos uns aos outros. É de se destacar que a cerâmica nessa exposição deu lugar ao molde em gesso para se chegar à resina epóxi, material que tem sido utilizado pelo artista há cerca de três anos, e eventualmente ao esmalte sintético. A forma como distribui o peso nessa obra nos leva a acreditar que tudo está por desmoronar. Esperamos por um desastre iminente. E é esse contraste – entre uma coesão dessas formas múltiplas, advindas das mais diversas origens, histórias, materiais e culturas, e um estilhaçamento a qualquer minuto por meio de uma queda ou partilha dessa imbricada construção – a maior força do trabalho. Em Mesa (2017), o empilhamento de um pequeno barril, um vaso, a figura de um anão, um galho, uma luminária, entre outros materiais em resina, colocados sobre uma mesa, da qual um dos pés também é “substituído” pelo calço feito por uma caixa de som que se apoia em um elefante ornamental, observamos a continuidade dessa pesquisa cuidadosa e atenta do artista. A obra não é simplesmente um acúmulo de partes fraturadas provenientes dos mais distintos objetos. Barrão, como um arqueólogo, frequenta feiras, antiquários, lojas especializadas, bazares, sempre à procura daquela peça que falta, a que se encaixará perfeitamente na composição que está criando. Vemos, portanto, esse interesse de Barrão muito próximo ao do escultor, que tem o volume, a escala e o espaço como meios de elaboração e experimenta os mais diversos materiais em busca de uma linguagem precisa que emita os regimes de discursividade que procura, ou do pintor, preocupado com questões como cor, plano, perspectiva e textura.
Para além da camada cômica, da exposição de uma estrutura formada por falhas e com a sensação de desabar, há um método e tempo próprios para a elaboração de suas obras. Em muitos casos, a obra nasce por meio de desenhos que ordenam o tipo de material, o seu formato, a maneira como cada peça se conectará a outra e as dimensões. Contudo, é no fazer que esse projeto ganha outra visibilidade, pois muitas vezes o arremate final da peça dependerá de uma louça ainda a ser encontrada. Aparecem desvios e caminhos próprios que não foram elaborados previamente pelo artista. A intuição e o improviso se fazem com muito mais força do que a decisão antecipada. Outro ponto que me chama a atenção no seu trabalho é uma completa falta de hierarquia quanto à origem dessas peças. Lado a lado, coladas umas às outras, estão origens das mais diversas fontes econômicas e culturais. Uma caneca de cerveja encontrada em um mercado popular passa a fazer parte do mesmo corpo que já contém parte de um elefante encontrado em alguma loja fora do país, que tem um preço relativamente maior. Passam a viver juntos, convivendo com suas diferenças, até porque agora já se tornaram outra coisa.
Em Coluna de pneus (1990/2017), Barrão concebe um empreendimento escultórico ao dispor de forma verticalizada três pneus de trator em resina. Tem-se uma imagem que se assemelha ao estado de atenção de um castelo de cartas, pois os nossos sentidos são colocados em alerta devido à qualidade transitória ou impermanente de sustentação para essa estrutura. Ademais, essa obra se transforma em impedimento ao corpo, mas não ao olhar. Ela incomoda, não permite que o espectador atravesse o espaço confortavelmente, pois um elemento de tensão é colocado diante de nós. É preciso circundá-la atentamente. Percebam que o elemento vazado dos pneus expõe o “esqueleto” da escultura. O seu volume passa a ser o ar ou o entorno que é capturado para dentro da sua estrutura. Esta obra expõe uma particularidade. Numa entrevista, Tunga pergunta a Barrão sobre a questão do avesso em sua obra, a estrutura interna e não visível, o “momento quando a forma se fecha, ou do momento em que ela deve ficar aberta para você ver dentro”. E Barrão responde que “no interior da escultura tem uma estrutura de metal que ajuda na sustentação dela e várias sobras das peças de louça que acabam ficando para dentro (...) [A estrutura] se forma de maneira acidental (...). É como se fosse a alma do trabalho. Uma vez eu levei algumas esculturas para serem radiografadas. Fiquei curioso pelo que tinha sido construído lá dentro”. [1] Coluna de pneus traz essa circunstância de uma maneira bem pontual e revela no tempo presente esse interesse tardio do artista em revelar a parte interna ou o organismo de suas obras.
Rádio território e Urca (ambos de 2016), entre outros objetos recentemente produzidos pelo artista, estão dispostos pelo espaço do Santander.
Este conjunto de obras realça o caráter especial de Barrão em classificar e reclassificar as ordens, usos e visões de um mundo cartesiano. O caráter de improviso, mesmo laboratorial, no encaixe dos objetos que comporão a obra, nas partes que são descartadas para que o corpo escolhido seja anexado, colado, justaposto a outro, tem um dado substancial de sadismo e ludismo. Os cortes, quebras e rupturas dos quais lança mão se assemelham às pesquisas sobre som, música e ruído que o Chelpa Ferro produz. Ao sobrepor faixas de diferentes músicas, fazer uso de ruídos de objetos domésticos nas músicas que criam e ter um caráter totalmente de improviso nas suas apresentações ao vivo, sem perder a linha conceitual de trabalho, Chelpa e o trabalho solo de Barrão se misturam indefinidamente. Rádio território é um exemplo claro dessa presença. Mesmo “desligado”, o aparelho transmissor de sons que dá título à obra continua emitindo imagens associativas, constituindo territórios, ou melhor, um rizoma, isto é, uma raiz com crescimento diferenciado, horizontalizado, polimorfo. Uma rede de sentidos que não possui direção clara ou definida. Suas linhas de fuga escapam da tentativa totalizadora e fazem contato com outras raízes, seguem outras direções. Não é uma forma fechada, não há ligação definitiva. São apenas linhas de intensidade.
Aqui (2016) continua exaltando essa atmosfera extrovertida do trabalho. A obra é composta por engradados, recipientes, vasos e outros suportes empilhados tendo no cume uma bandeira perfurada. Eis o território de Barrão. Um lugar ficcional, construído por detalhes, minúcias, partes que compõem um todo. A experiência de adentrar esse mundo se dá de forma vagarosa, pois é preciso ver, analisar, sentir, esmiuçar um pensamento que demanda concentração e tempo. Não é possível perceber as obras numa olhadela rápida, mas compreender no seu próprio ritmo, na construção, portanto, de um tempo-duração subjetivo, o que está diante de nossos olhos. Esse tempo nos leva a decodificar os fragmentos, acessar as nossas memórias de modo a criar estratégias de compreensão e identificar e reconhecer nossas próprias percepções em relação a essas obras.
Barrão subverte a função de sua coleção de objetos. Não se tem mais o uso que fazíamos daquele objeto; agora, ele pertence ao mundo da fabricação de utopias, fabulações e devaneios. A atmosfera kitsch do anão de jardim ou da caneca decorada de um time de futebol ganha uma nova escala, dimensão e sentido na obra de Barrão. Culturas, memórias e histórias são criadas e mixadas a partir da junção e colagem de objetos que possuem as mais diversas origens. As funções utilitárias e de decoração desses objetos são apagadas em detrimento de uma atmosfera que reverbera contradições, fraturas e incentiva uma constante transformação do nosso olhar frente a um mundo ordenado e cada vez menos afeito às diferenças.
1 BARRÃO (org.). Barrão. Rio de Janeiro: Automatica, 2015. p. 107.
Zerbini, Barrão, Albano no Santander Cultural, Porto Alegre, RS - 24/05/2017 a 16/07/2017:
Barrão, curadoria Felipe Scovino
Albano Afonso, curadoria Douglas de Freitas
Luiz Zerbini, curadoria Marcelo Campos