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agosto 12, 2016
A | pagar por Matias Monteiro
A | pagar
MATIAS MONTEIRO
Zip'Up: Iris Helena - Paraísos Fiscais, Zipper Galeria, São Paulo, SP - 15/08/2016 a 10/09/2016
[...] o olhar vertiginoso não precisa sequer de uma fissura explícita para se entregar.
Luciana Paiva, Precário, fragilidade e instabilidade na imagem.
Poderia essa dispersão de objetos, tão banais e precários, coadunar em uma inusitada constelação gráfica? Meros papéis (ou apenas suas imagens), ora ancorados sobre a parede, como esses pequenos abismos ordenados, ora emergindo impassíveis do solo, como insólitos objetos tectônicos; seja como for, a densidade não se dissipa: nada parece redimir esses recibos de sua condição de resto/rastro depreciado de uma transação comercial.
O registro da compra como uma adesão silenciosa que se faz inscrever: os tickets, vias do cliente, comprovantes de compra, emitidos pelos sistemas informatizados de débito e crédito bancário, reiteram a dimensão mercantil da experiência cotidiana. Via: dubiedade semântica entre a nota de registro e a visão pretérita/olhar obsoleto... talvez um percurso? À vista: modalidade de fatura imediata ou aquilo que adere ao campo escópico. Vivemos, desde já, esse esgarçamento, condição da memória como paisagem.
Que a artista opte por esse suporte, em sua qualidade de rastro urbano, não causa espanto; Íris Helena o vem explorando há anos em meio a suas investigações acerca das noções de construção, representação, registro e ressignificação da memória urbana como fenômeno afetivo e social. No entanto, aparentemente, aqui ela abdica da intervenção por meio dos processos de impressão. Onde antes havia o interesse pela trama da sobreposição de inscrições (série arquivo morto [2014]), pela imagem da cidade que vai habitar, de bom grado, todo o tipo de suporte provisório da escrita (o post-it, o marcador de página... o cupom) ou de escombros (séries casa pré-fabricada [2016]), agora afigura o fascínio pela supressão, pela estratigrafia da inscrição. Em todo caso, estamos entregues ao enlace da memória: eis nosso próprio bloco mágico, no qual se tramam e enervam as inscrições e no qual todo apagamento é vivenciado como um evento de superfície. Afinal, a efemeridade da inscrição no papel termossensível faz deste esvaecimento condição destes subprodutos; evidências de um regime comercial condicionadas pela fugacidade do registro, tendo a obsolescência por programa e a efemeridade como suposta garantia de segurança/sigilo (e, em última instância, de um ideal metropolitano de anonimato).
O amontoamento destes comprovantes se dá por causas incidentais e seu acúmulo sistemático, por finalidades comprobatórias. Mas aqui, não se trata de nenhum dos dois. O que justifica esse conjunto? Seriam as mesmas motivações misteriosas das coleções, impulsionadas por sua perpétua incompletude? Seria a conduta rigorosa da coleta laboratorial? Seria o ímpeto arquivístico, na constituição de um inusitado acervo de tickets, na qual toda a existência é vertida nessas diminutas ruínas do consumo? Podemos, ainda, impelidos pela inconsequência de nossos devaneios, sonhar em cardumes: pensar nos depósitos salinos das estalactites, na cumplicidade dos grãos de uma duna, na afinidade milenar das rochas irmanadas em uma montanha – enfim, recorrer a toda sorte de geologias de pequenas gramaturas. Afinal, a via do consumidor é também uma ocorrência cromática, com azuis atmosféricos, esmaecidos amarelos matinais e horizontes lilases-crepusculares, como curiosas auroras boreais ortogonais, expressão mecânica que sinaliza senão o fim da bitola.
A fugacidade das informações impressas contrasta com a persistência das informações institucionais/burocráticas, que teimam, ainda, em fazer-se inscrição. A fragilidade do suporte faz com que a simples manipulação ou acondicionamento imprudente produzam-lhe novas texturas, sugiram-lhe novas plasticidades (a dobra, o rasgo, o amassado, as fraturas fibrosas) ... e, assim, por artifício da artista, revelam-se as topografias do descarte, que convertem estes pequenos restos depreciados em sutis eventos poéticos, em acidentes geológicos, paisagens vertiginosas, arquiteturas obtidas pela improvável engenharia dos vincos e dobras. Sobre o rastro do consumo, sonha o geólogo de papéis, para o qual todo relevo é iminência de apagamento ou de obscurecimento completo na noite da palavra (como demonstra um dos objetos da série indícios); todo rumor tectônico insinua-se no confronto inexorável entre a textura do desgaste e a textualidade em estado de desaparição.
O abandono (uma poética não propriamente do detrito, mas da matéria em desamparo) converte-se em um sistema construtivo no qual a textura preenche toda a superfície, ocupa a vacância do texto e sugere-se como uma escritura do incessante. São essas paisagens indiciais (como sugere o título da série), essas arqueologias, mitologias, esses quadrantes, que constituem um universo de reminiscências, no qual a precariedade singela mobiliza-se e faz resistência contra a ávida fúria do bom funcionamento [SOUSA: 2007, p. 12].
Matias Monteiro
Brasília | 2016
COURTOISIE, Rafael. Estado Sólido. In: Jinetes del aire: poesía contemporánea de Latinoamérica y el Caribe. Santiago, Chile: Ed. RIL editores. 2011.
PINHEIRO, Luciana Paiva. Precário: fragilidade e instabilidade na imagem. Brasília: Universidade de Brasília, Instituto de Artes, 2010.
SOUSA, Edson Luiz André. Uma Invenção da Utopia. SP: Lumme Editor. 2007.