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junho 17, 2016
Dimensões por Agnaldo Farias
Dimensões
AGNALDO FARIAS
As fotografias de Masao Yamamoto têm pequenas dimensões, a maioria delas, como declara o artista, cabe na palma da mão, como um pequeno objeto que recolhemos e olhamos com cuidado, como um pássaro que agarramos com surpresa e ternura, desejando acalmar o ritmo frenético do seu coração, aplacar seu medo e ânsia de fugir da prisão momentânea dos nossos dedos cingidos sobre seu corpo, como se lhe fosse possível entender a curiosidade e o amor que nos impele reter sua beleza delicada. Yamamoto acerta no alvo realizando fotos de escala reduzida, algumas delas frágeis, com as bordas rasgadas, a maior parte passível de ser apanhada pelas pontas dos dedos ou depositada na mão, relembrando-nos que dedos e palmas são a mesa de contemplação das coisas pequenas, dos objetos trazidos para perto dos olhos, para serem melhor vistos, apalpados e cheirados. Haverá possibilidade maior de contato entre nós e tudo aquilo que a mão traz para o nível do olhar? É difícil, ao menos do ponto de vista onde o afeto funde-se à vontade de conhecer. Contemplamos o mundo à distância, desde o alto de nossas cabeças, encastelados num corpo que, em geral, não cessa de se movimentar. Quase nunca paramos e mesmo quando paramos nunca estamos. Há em cada um de nós uma nostalgia da permanência, do simples exercício de ficar e olhar em volta. Olhar calmamente atento ao que está acontecendo ao redor do nosso corpo.
A escala das fotos de Masao Yamamoto, por si só, convida a esse modo de estar no mundo. Gatos, cachorros, pássaros, árvores, galhos, pedras, montanhas, praias, água, neve, grama, vasos, flores, pessoas, nus, a maioria dos assuntos parece resultar de seus passeios munido de câmera e atenção.
E a atenção, ensina o artista, nunca é passiva. Em um determinado momento do vídeo intitulado O espaço entre flores, vemo-lo fotografando um grupo de pombas. Câmara na mão esquerda, comida sendo jogada aos punhados aos pássaros pela outra, abruptamente um grupo de crianças espanta-as com seu alarido. Elas voam desorganizadas enquanto ele as vai fotografando como um caçador abatendo a esmo um bando em revoada. Em seguida, de volta ao chão, os pássaros vão comendo os grãos, enquanto alguns, mais ousados, bicam dentro da concha da mão. A mão da câmara acelera seu trabalho, coordenando-o com o da direita. Esta, com um único pássaro nela empoleirado, vai se elevando, prossegue com o artista se erguendo, até colocar o pombo no alto, contra o fundo claro do céu. Na sequência o vídeo dá-nos algumas imagens obtidas da confusão branca e cinza de asas e corpos.
Como é comum em suas fotos, o objeto da atenção do fotógrafo reage aos seus gestos, as suas ações no espaço. Neste caso em particular, como em alguns outros casos, o objeto da atenção do fotógrafo está ao alcance e pousado em sua mão. Como as dimensões da foto que ele realizará a partir de situações como essa.
O que se olha, revela cada uma das imagens produzidas por Masao Yamamoto, e que ele expõe diretamente sobre a parede, como um enxame esgarçado de imagens, ou flutuando no centro de um grande quadrilátero de papel, depende de como se olha, tanto quanto depende da luz que, banhando-o, inventa-o.
Luz
“A captura da luz é a essência da fotografia. Estou mais do que nunca convencido de que a fotografia foi criada quando os humanos desejaram capturar a luz”. Essa declaração de Masao Yamamoto explica a predominância do preto e branco em suas fotografias, conquanto um exame atencioso delas, um impulso natural decorrente de suas pequenas dimensões, algumas delas efetivamente minúsculas, revelará que a polaridade entre essas duas cores é na verdade calibrada pela adição calculada de cores esmaecidas, como os planos claros realizados em tonalidades rebaixadas de creme e amarelo, turvados aqui e ali por pontos escuros, como papéis envelhecidos ou fotos descoradas pela ação do tempo em associação com a luz; como os planos tingidos de preto profundo, aveludado, insaciável ao sorver a luz mais próxima.
O trabalho iniciado nas caminhadas pela natureza observando as minúcias de cenas e objetos que passam despercebidos, ou os acurados estudos efetuados dentro do estúdio, expressos em naturezas mortas e sucessões de ângulos de um mesmo objeto, prolonga-se nos processos de impressão e ampliação, no controle paciente e obsessivo da luz que se irradia do alto da lâmpada da ampliadora até o chão do papel fotossensível. A fotografia, segundo Masao Yamamoto, não se resolve no simples registro do visível, mas na produção de uma imagem que, como tal, nasce do equilíbrio tenso entre o fotógrafo e o fragmento do mundo; um fragmento do visível que ele torna seu, que, por apropriação, só pode ser seu, um visível a sua maneira. E é sob esse prisma, pela consciência de que cabe a ele, através da luz, fazer com que as parcelas selecionadas do mundo floresçam como imagens, que ele a realça como instância fecundadora, capaz de resgatar as coisas do eclipsamento ao qual nossa desatenção condena.
Em suas imagens as regiões iluminadas opõem-se as tomadas pelas trevas, como acontece naquela dividida em dois planos empilhados, uma paisagem em que sobre o chão silencioso e obscuro, estende-se o céu claro ainda que suavemente ensombrecido. Entre ambos, funcionando simultaneamente como limite e invasão de um plano no outro, os pilares claros de uma trave de futebol fendem verticalmente o solo enquanto a terceira linha roliça parece retificar a do horizonte. Em outra imagem a luz vem do alto dos dois renques espessos de vegetação para escorrer pela fenda aberta entre elas, fazendo brilhar o caminho por onde transitam duas pequenas silhuetas humanas. O mesmo raciocínio vale para o portal irregular, inclinado, esculpido na pedra, por onde jorra a luz que desenha na tona d’água, em solução difusa, o desenho de suas bordas rígidas. E o quê dizer da lua, minguante? crescente? tornada imensa por ser o centro iridescente que se apoia sob o vértice sombrio da cobertura da casa, imantando a noite com seu halo?
Masao Yamamoto parece dizer que cada homem define um círculo iluminado, uma região que lhe serve de abrigo em oposição aquilo que ele desconhece e que o desafia. Conhecer é, por sua vez, lançar luz sobre a escuridão, como a luz que redesenha o peito do gato, o olhar vítreo do cachorro, tornando enigmático, profundo e transcendente, o que se supunha familiar e doméstico. A dialética proposta por Yamamoto entre a luz e as coisas, por simples, familiares que estas sejam, vai ao encontro do belo aforismo de George Braque: “O mistério brilha à luz do dia; o misterioso se confunde com a obscuridade.
Pontos de vista
A imagem, já referida anteriormente,é de uma paisagem dotada de um horizonte retilíneo, dividindo o campo retangular da foto em dois planos empilhados, um escuro, o chão, o outro, um pouco maior e claro, o céu. Uma paisagem simples, despojada, sem acidentes, salvo uma trave de futebol situada bem no meio, cujo travessão coincide rigorosamente com a linha do horizonte. Essa informação é suficiente para que a identifiquemos como a vista parcial de um campo de futebol que, não se sabe, acontece para a direita ou para a esquerda. Detalhe de resto irrelevante, posto que o que atrai nossa atenção é a deformação imposta à moldura do gol. Apesar do paralelismo do travessão com o solo, certeza que se confirma pela coincidência com a borda reta da paisagem, as traves verticais são muito dessemelhantes, a da esquerda bem maior que a da direita. Uma deformação que não haveria se o fotógrafo tivesse limitado os ângulos de visão aos possíveis de serem obtidos de pé sobre o chão, mas explicável se imagina que ele subiu em algo, por exemplo uma escada, com a finalidade de criar uma coincidência.
Situado quase no centro, levemente deslocado para a esquerda da fotografia de formato vertical, com o tom sépia típico das que eram acondicionadas em velhos álbuns, efeito acentuado pela lateral levemente rasgada e pelo resguardo de uma espécie de fina moldura formada pelos limites do papel, um gato preto sentado. Sua silhueta escura e aveludada está circundada por florações vagas e esparsas e pelo dorso de uma pedra. Do seu corpo curvilíneo como uma pera, escapa, à direita, seu rabo preto. Entre as orelhas em riste, coroando sua impassível e silenciosa presença, luzem as lanternas amendoadas de seus olhinhos. Ele, o gato, está no chão, já o fotógrafo, aqui no alto. Aqui, isto é, onde nós que nesse momento contemplamos esta foto, estamos; o lugar que o fotógrafo nos obriga a estar. Visto de cima, pequeno, Yamamoto, graças ao ponto de vista escolhido, reitera: a majestade do gato reside em sua pose;e em seu porte, sua cor e suas luzes, todo o mistério.
O formato da foto é horizontal como uma paisagem mas, no entanto, ela traz, capturado à queima roupa, ocupando todo sua extremidade esquerda, contrastando com a claridade creme do resto através de gradações em direção ao preto, parte do perfil de um rosto com os olhos fechados, a boca entreaberta. A esfericidade das pálpebras trai a proveniência oriental da pessoa retratada, esfericidade enunciada pela luminosidade que suavemente vai se alastrando na pele sedosa, sem rugas ou comissuras, cinzelando, além dos olhos, a maçã da face, o lóbulo da narina, repercutindo na ínfima parcela visível da fileira superior de dentes, a curva abaixo do lábio inferior, a passagem do queixo para o pescoço. O desenho sinuoso do perfil, debuxado pela luz, interrompe-se no formato retangular da foto que recorta a figura. Um rosto escuro face a um plano cuja cor pálida, pintalgada por pequeninos pontos, o acaricia. A boca entreaberta estará expirando? aspirando? Como saber? O que é certo é que, sorvendo ou recebendo o impacto do claro, é a luminosidade que faz nascer um rosto do interior da sombra, que o puxa de dentro dela.
Corrigindo o escrito antes, Masao Yamamoto não se ocupa de situações objetos e seres familiares,apenas. Ocupa-se também da relação entre eles, da intrincada relação entre eles e a luz, entre eles e os formatos escolhidos para as fotos, entre eles e sua relação com seus pontos de vista inquietos, cambiantes, surpreendentes.
Agnaldo Farias, crítico e curador, professor da FAU-USP