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maio 11, 2016
Reempregos da visibilidade por Cayo Honorato
Reempregos da visibilidade
CAYO HONORATO
O projeto em obra (2012-2016), da artista Fabíola Tasca, é claro em seus propósitos: conferir certas “condições de visibilidade” para “afazeres idiossincráticos”, a partir da celebração de um contrato – mediante a assinatura de um termo de compromisso – entre artista e participante. A cada edição do projeto, oito camisetas são ofertadas pela artista, em troca da adesão dos participantes a certos protocolos: vestir a camiseta escolhida, enviar para a artista um relato das ações de uso da camiseta, mencionar o tempo consumido nessas ações. Em cada camiseta a artista pintou um título ocupacional, extraído como tal – em alguns casos, com pequenas “manipulações” – da Classificação Brasileira de Ocupações – uma espécie de enciclopédia das ocupações profissionais no Brasil, organizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
Note-se que as condições de visibilidade seriam garantidas pela artista, enquanto os afazeres, pelo participante. Por certo, o trabalho da artista perpassa tais afazeres. Portanto, haveria nisso uma certa reciprocidade, a consumação de uma troca, mas também uma forma de contratação, que segundo a artista “substitui ironicamente a participação pelo trabalho”. Sem dúvida, o projeto se insere num legado de práticas participativas ou relacionais, mas sua ênfase nas relações entre arte e trabalho, para além da formalidade contratual, parece convocar outra problemática. Temos aí uma exploração da participação alheia – tal como sugere um cartaz de 1968, do Atelier Populaire, com os dizeres: “je participe, tu participes... ils profitent”? De que forma os participantes estariam sendo remunerados?
Segundo a artista, as camisetas não são brindes, mas “bilhetes de acesso”. Elas permitem acessar um espaço simbólico, a princípio, de relações intersubjetivas, mas que, eventualmente, assume uma dimensão institucional ou social – na medida em que empresta significados ao circuito e à história da arte. Mais do que as camisetas, são as condições de visibilidade que parecem “remunerar” os participantes. Com isso, a artista parece inverter, provocativamente, um conhecido raciocínio de Rancière (2005: 65), segundo o qual a prática artística não é uma exceção ao trabalho, mas sua “forma de visibilidade deslocada”. Para o autor, no decorrer do século XIX, formou-se a ideia de que as práticas artísticas conferem ao princípio “privado” do trabalho – àquilo que ocupa um espaço-tempo privado, excluído da visibilidade e da palavra comuns –, uma cena pública, o “tempo” de participar como um cidadão deliberante, no espaço das discussões públicas; reconfigurando assim a partilha desses espaços. Mas o que o projeto em obra desloca/visibiliza?
Não são as ocupações das camisetas que estão sendo visibilizadas – muito embora, quem saberia da existência, por exemplo, de um instalador de lodo para sondagem? –, mas sim afazeres idiossincráticos, as ações de uso das camisetas: conversas casuais, uma deriva particular, uma aula na autoescola, etc. De fato, não necessariamente os participantes desempenham – real ou ficcionalmente – esta ou aquela ocupação. Alguns querem mostrar seu próprio trabalho de artista, como se não fosse o caso referir-se à ocupação escolhida. A própria artista justifica a manipulação de alguns títulos, para que fomentassem “o potencial imaginativo do eventual usuário da camiseta” – o que também é válido para os observadores do projeto. Alguns relatos, por certo, nos fazem imaginar possíveis relações entre um desmembrador de mocotó e imagens de endoscopia, entre um selecionador de castanha de caju e a escalada de uma montanha. Contudo, desta vez, são essas ocupações que, de certo modo, na sua invisibilidade, aparecem como símbolo da arte.
Curiosamente, o artista (artes visuais) e o artista plástico, assim como o crítico de artes plásticas, também são ocupações registradas na mesma Classificação. Mas talvez elas só favoreçam idiossincrasias. Como então conferir-lhes relevância pública? Parece ter chegado ao fim a ideia, caracteristicamente romântica, de que a arte simboliza o trabalho não alienado, a participação de qualquer um nas decisões que dizem respeito à comunidade. A propósito, parece haver dois sentidos para aquelas “condições” de visibilidade: a artista (ou as práticas artísticas) providencia uma visibilidade aos relatos (às ocupações/afazeres), mas ela também define seus limites. O que vemos são os relatos da artista, não dos participantes. Neles, chama a atenção um incômodo recorrente em relação à ideia de liberdade. No momento em que o próprio capitalismo se tornou artista (Lipovetsky & Serroy, 2015), é significativa a inversão que a artista propõe. Também no momento em que – são dados de fevereiro de 2016 – a taxa de desemprego no Brasil, segundo o IBGE, é de 8,2%, a maior taxa desde maio de 2009.
Referências
LIPOVETSKY, Gilles & SEROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista; tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Cia. das Letras, 2015.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política; tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org., Ed. 34, 2005.