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junho 13, 2012
Cores, palavras e cruzes por Glória Ferreira
Cores, palavras e cruzes
Texto da curadora Glória Ferreira para a mostra Karin Lambrecht - Cores, Palavras e Cruzes, Galeria Nara Roesler, São Paulo, SP - 17/06/2012 a 21/07/2012
“Não existe, afinal, um critério comum reconhecido para o que é uma cor, a menos que seja uma das nossas cores”, afirma Wittgenstein. O conjunto de telas que Karin Lambrecht ora apresenta resulta de intenso trabalho com cores, dissonantes, às vezes, como em um acorde musical, impregnando sua pintura de colorações que lhe são próprias. Como diz a artista, o fazer pictórico assemelha-se ao de um bailarino que, apesar do corpo treinado, nunca chega ao controle total, sempre enfrentando desafios. Desafios levados a cabo por ela, por exemplo, de ver a junção das cores ao criar dobras na tela, como espécies de calhas, que fazem passar cores distintas de um lado ao outro do quadro, estabelecendo marcas, meio sem controle, que se juntam às várias camadas de tinta.
Sem nunca ter deixado de pintar, de certa maneira o fato de Karin introduzir cores nunca antes utilizadas é uma espécie de retomada, após os Registros de sangue, realizados nos anos 2000. A esse processo emocionalmente forte, somaram-se situações de sua vida particular que lhe acentuaram a reflexão sobre a relação de vida e morte, passagem do tempo e separação ‒ “Pois breve é toda vida”, lembra-nos Fernando Pessoa. Assim é em Legendas para Bergman, trabalho constituído por frases do depoimento intimista do cineasta, aos 88 anos, sobre sua vida, infância, casamentos, filmes e sobre Fårö, em A ilha de Bergman. Sobre papel de seda, as legendas, compostas com letras recortadas, têm os Ts em papel de prata, o que, em alusão à cruz, remete ao mesmo pensamento melancólico: “Não houve um dia em minha vida em que não tivesse pensado na morte”, diz o diretor sueco, cuja história guarda traços da própria história familiar de Karin.
Suas preocupações estéticas e éticas se voltam para um possível poder curativo das cores, sem pretensão científica, contudo, ou a vulgatas da cromoterapia, mas pela liberdade de cada pessoa agir com suas próprias cores em função dos potenciais que elas têm ‒ a cor como equivalente plástico do pensamento e da emoção, podendo ser utilizada para fins sensoriais, morais e estéticos. A ideia de cura está no centro do objeto Cruz elementar, em papel e madeira, de forma meio triangular, com textos manuscritos ou marcados por carimbos e cruzes. Os desenhos Something, por sua vez, referem-se ao futuro da natureza intelectualizada no mundo natural. São aldeias, com pequenas cabanas, que giram em torno de São Mateus e de Maria ‒ testemunhas da Ressurreição e da Ascensão. Um dos desenhos traz a criação do mundo pendurada. São desenhos sobre desenhos, como contas ainda não pagas ‒ devedoras, talvez, em relação à condição humana…
A pintura, porém, é pura pintura, sem as interferências anteriores – como terra de seu jardim –, mantendo sempre as palavras e as cruzes. Palavras que às vezes se dissolvem sob as várias camadas de tinta ou se transmutam, como em “teia” para “veia”, tendo, contudo, sempre o T, evocando ainda uma vez a cruz, a morte, a cura, a doença.
Confeccionadas pela artista, as tintas, com pigmentos de várias origens, interagem com o cádmio verde, misturado, que vem juntar-se ao ultramarinho-rosa; o azul-paris mais o cobalto-turquesa, mais cádmio vermelho; ou ainda o lápis-lazúli e cores terrosas. Todas abstratas, com formas geométricas e pinceladas expressionistas e largas, as telas são de diversos tamanhos. As quatro grandes, feitas ao longo de vários meses, os pincéis parecendo querer voar pela necessidade de expansão, transmitem sensação de liberdade; nas pequenas, de processo mais rápido, mais sob seu controle, somam-se tinta, pastéis secos, carvão, com mudanças de tonalidades de uma para outra. Há algumas, de dimensões intermediárias, cujo tratamento pictórico remete igualmente à cor como matéria espiritualizada com suas polaridades e interações, garantindo a alta voltagem de sua pintura.