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janeiro 26, 2011
Arquitetura e Ocupação por Marisa Flórido
Arquitetura e Ocupação
Marisa Flórido
‘Bastidor’ e ‘Projeto para o Palácio Capanema’ Ana Holck e Eduardo Coimbra
Exposições interferem no espaço expositivo apresentando novas possibilidades de percepção.
Poderíamos pensar um projeto qualquer — de arquitetura ou de arte, de vida ou utópico — como um desenho do futuro, de algo que ainda não está. Desenhando-se na ausência, por uma imaginação prospectiva ou como um constructo fantasmático, projetar é também explicitar potencialidades, é existir ao menos como desejo. Como então preservar a potência do desejo que esboça horizontes, sem sucumbir à asfixia totalitária do controle, sem reduzi-lo a um único ponto de vista e fuga?
Duas mostras distintas, “Projeto para o Palácio Capanema” de Eduardo Coimbra, e “Bastidor”, de Ana Holck, no CCBB, realizam interferências na arquitetura do espaço expositivo. São ocupações que, se colocam em evidência o campo de inscrição das obras em suas várias molduras — físicas e culturais, perceptivas e discursivas, políticas e ideológicas —, também repensam, de algum modo, a noção de projeto na atualidade.
“Projeto para o Palácio Capanema”, de Coimbra, interfere no mezanino do marco da arquitetura moderna brasileira. Projetado por Niemeyer, Lúcio Costa, entre outros, o edifício segue os preceitos de Le Corbusier. Lá estão seus célebres “Cinco pontos da nova arquitetura”: a planta livre, a fachada livre, os pilotis, o terraço-jardim e a janela em fita. Se a estrutura independente de vigas e pilares proporcionava a flexibilidade dos espaços internos, o edifício suspenso sobre pilotis transcendia a superfície da terra. Liberava-se do plano que relacionava e distinguia o baixo e o alto, o interior e o exterior, a gravidade da matéria e as emanações do espírito. A janela de vidro rasgava a fachada livre, para que a luz lavasse e dissolvesse sombras e dúvidas, o inesperado e o acidental. Se a fachada era a pele transparente e vítrea, o espaço era a dimensão idealizada, extensão fluida e ilimitada que a tudo atravessava para acolher/construir o homem-tipo em um universo-tipo. A finalidade da arquitetura moderna era a redenção do mundo e da Humanidade em um horizonte único e comum. Ao homem projetado e tipificado, desprovido de singularidades, destinava-se o acesso e o abrigo absolutos, a reconciliação dos contrários, o domínio sobre os acasos, a exclusão do arbitrário. Como todo desejo de totalidade, como toda utopia do século que passou, era um desígnio tão grandioso como aterrorizado, tão generoso quanto despótico, sem ocasião e lugar para a alteridade, desvios e diferenças.
Eduardo Coimbra reproduz as esquadrias das janelas e as instala no interior do prédio. Multiplica seu módulo e introjeta o espaço sobre si mesmo, em um labirinto de repetições e espelhamentos. Fragmenta sua extensão, turva sua percepção. Estrutura e aparência, esqueleto e pele confundem-se. O tênue limite da “janela em fita”, que reconciliaria o dentro e o fora, torna-se o esqueleto arqueológico de uma promessa que não se cumpriu. O espaço como campo neutro e homogêneo da grelha ideal é confrontado à sua própria ilusão, as estruturas ortogonais reproduzem-se sem desígnios. Se desenha algo é sua ausência. Se projeta algo é sua fantasmática. Se deseja algo, é proliferar as janelas para que horizontes se lancem livres e potentes.
Se Coimbra se apropria e desloca um elemento arquitetônico do edifício, as esquadrias, Ana Holck desloca para o espaço institucional um elemento arquitetônico das ruas: o bloco hexagonal de concreto que reveste as calçadas da cidade. Em ambos, podemos perceber a utilização de uma unidade industrial e repetida, o deslocamento de seus contextos usuais, os desvios de sua função. Não por acaso, a artista, arquiteta de formação, interferiu, em 2004, nas janelas do mesmo palácio cobrindo-as com películas de vinil adesivo de controle de luz solar (“Fuga”). Em ambos, são revolvidas as muitas camadas de sentido que noções como espaço ou lugar encerram: a filosofia e a física, a arquitetura e a arte reformulariam continuamente aquilo que o senso comum e o hábito convencionaram chamar de espaço ou lugar como algo familiar e já dado. Ou seja, a arte contemporânea trataria de explicitá-los cada vez mais como uma trama complexa e ampla de enunciações e percepções: arquitetônicas, ideológicas, culturais, políticas, etc. — limites móveis, no interior dos quais, muitas vezes, a obra se constitui e se debate.
Peso versus leveza
Em “Bastidor”, os blocos de concreto adquirem massa e volume escultóricos. Desenterrados das ruas e empilhados na galeria, a aspereza e o peso de sua materialidade contrastam com a leveza branca do policarbonato aveolar. Material utilizado em vedações, ali ele é recortado, dobrado, vazado. Ora se ergue pelo espaço obstruindo o acesso visual e corpóreo, ora abre-se em tramas de hexágonos vazados, projetando na parede a sombra de seu desenho, de seu projeto, de seu desejo.
Interrogações que insistem: entre a idealização dos projetos e a contingência das percepções, entre a precisão do cálculo e a inflexão das circunstâncias, haveria brechas por onde desejos e horizontes pudessem se mover e respirar? Como evitar que a tensão desejante, que ativa as mudanças, converta-se em delírios de ordem? Como pensar o porvir sem a rigidez dos desígnios? Como acolher a incerteza de um talvez?