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maio 11, 2010
Léon e Mira - oposição e contato por Fábio Tremonte
Léon e Mira - oposição e contato
Fábio Tremonte
Especial para o Canal Contemporâneo
Ao longe podemos avistar o prédio construído pelo arquiteto português Álvaro Siza que se ergue às margens do Rio Guaíba na capital gaúcha e onde está sediada a Fundação Iberê Camargo, local escolhido para abrigar a exposição “Alfabeto Enfurecido”, com curadoria de Luis Pérez-Oramas, que celebra o feliz encontro da produção dos artistas Léon Ferrari e Mira Schendel.
Após passar por Nova York [MoMA] e Madri [Museu Reina Sofia], a exposição ganha sua terceira versão, agora em solo brasileiro. Dois grandes nomes das artes plásticas latino-americana têm em comum ser estrangeiros que viveram partes de suas vidas no Brasil e, segundo Oramas, uma produção onde a linguagem se desenvolve como tema central.
Léon, argentino, e Mira, suíça, migraram para o Brasil, 1976 e 1949 respectivamente e aqui se estabeleceram. Em 1991, Ferrari retorna a Argentina, onde vive até hoje. Schendel morre em São Paulo, em 1988.
A exposição ocupa o térreo do edifício, onde encontramos uma instalação de Mira Schendel, e o primeiro e segundo andares da Fundação, onde as obras de ambos os artistas são colocadas lado a lado, hora gerando confusão em relação a autoria, hora uma tensão muito grande por conta das diferenças que surgem.
Em uma das salas, o curador optou por fazer uma outra conexão. Obras do início de carreira de Mira e Léon, produzidas na Itália - outro aspecto em comum entre ambos - são colocadas juntas. Cerâmicas de Ferrari e pinturas de Schendel. As formas criadas pelos dois artistas lembram garrafas, vasilhas. São, nos dois casos, obras de formação. Nos outros espaços expositivos, podemos perceber claramente o caminho que cada um dos artistas trilhou. Algo que une as duas produções é o uso da palavra escrita, do texto. Em Mira, um texto mais solto, leve, o suporte [papel arroz] pode indicar essa leveza, mas o gesto da escrita também deixa perceber isso. Léon tem uma escrita mais dura, rígida, desenha com as letras.
Os temas também se diferem. Léon intitulada um de seus desenhos de "Carta a um general", aqui parece escrever uma carta intrincada, as palavras se amontoam, se encolhem e se expandem tornando a leitura um processo tortuoso, mas a escrita tampouco é fácil. Léon atacará a religião em diversos de seus trabalhos, um ataque que parece mais direcionado a um tipo de poder opressor, próprio a instituições como a igreja ou o exército. Instituições que visam o controle, não apenas das mentes, mas dos corpos. Aqui a escritura e a leitura estão postas como produtos de gestos corporais que passam a ser percebidos como tal na medida da perda de sua fluidez, de sua transparência.
Por outro caminho passa a escrita na obra de Schendel. Leve, fluida e fragmentar se assemelha a pequenas notações que acabam por formar uma espécie de código particular. Uma linguagem que é partilhada por um lado, mas também é cifrada. O limite da legibilidade é posto por Mira diversamente daquele colocado por León: é como se o texto fosse, pouco a pouco evaporando, esmaecendo para o vazio ganhar força, como acontece em Un Coup de Dés de Stéphane Mallarmé. Nela o espaço onde a escrita transcorre é que é corporificado até o ponto de tornar-se escultura (como é o caso de sua série Droguinhas, 1964-66).
Oramas disse, em entrevista concedida ao Canal Contemporâneo, que um dos grandes desafios dessa montagem era como lidar com o edifício, que conta com galerias abertas e que é uma arquitetura feita para dispor (obras e a própria arquitetura) ao olhar, simultaneamente. Na FIC, a montagem se aproxima mais daquela feita no MoMA, onde as obras dos dois artistas conviviam no mesmo ambiente, criando conexões, diálogos e fricções (às vezes sob forma de um contato áspero). São pelas diferenças que surgem os pontos de contato entre as obras de Léon e Mira, o que nos dá a ver o singular e o irreconciliável que habita o espaço entre elas.