|
março 23, 2010
Cosmococas e Objetos Relacionais: a participação na encruzilhada entre o público e o privado por Lais Myrrha
“(...) a maioria criou um academicismo dessa relação ou da idéia de participação do espectador, a ponto de me deixar em dúvida sobre a própria idéia.” (Hélio Oiticica)
Sei do risco de recair em possível redundância ao escrever mais algumas páginas sobre esse ou aquele aspecto das obras de Lygia Clark e Hélio Oiticica. Entretanto arvoro-me a fazê-lo. Menos com o propósito de constituir uma “nova” concepção do que para organizar algumas das minhas impressões e reflexões sobre as noções relativas à participação, à interação, à convivência e ao relacional nos trabalhos desses artistas.
Tomando como ponto de partida “o fim” de suas respectivas trajetórias (os Objetos Relacionais de Lygia e as Cosmoscocas de Hélio e Neville D’Almeida), minha hipótese geral é de que ambos os artistas transformam profundamente as noções de espectador/participador/público — e assim daquilo que é chamado de objeto da arte ou arte — ao negarem, de certa forma, suas invenções (para utilizar um termo de Oiticica) à esfera pública. Talvez, fosse melhor dizer que ambos recolheram suas invenções à esfera privada e creio que por motivos distintos e até em prol da esfera pública.
A noção de arte ou estética relacional que Nicolas Bourriaud atribui a uma fatia (para ele a mais importante) da produção artística da década de 1990 e que crê ser distinta da arte participativa dos anos de 1960, já está plenamente desenvolvida e madura nas obras de Lygia e Hélio; arrisco-me a dizer que de forma ainda mais radical e anárquica do que ele (Bourriaud) conseguiu conceber no seu Estética Relacional. Nesse livro o autor cria uma série de falsas oposições e “novidades” que só podem ser aceitas à custa de se aceitar um reducionismo eurocêntrico que coloca todas as experiências artísticas, européias e norte-americanas, dos anos 1960 e 70 no mesmo bojo e, ao mesmo tempo, desconsidera aquelas realizadas no hemisfério sul.
Grosso modo, o que ele diz ser a principal diferença entre a arte (participativa) produzida nos anos de 1960 e da arte (relacional) dos anos de 1990 é que a primeira estava comprometida em definir, ampliar, testar e tencionar os limites da arte, ou seja, convidava a uma subversão pela linguagem ; enquanto a segunda, a arte relacional dos anos 1990, privilegiava as relações externas de uma cultura eclética, na qual a obra de arte resiste ao rolo compressor da “sociedade do espetáculo” e estaria voltada sobretudo à criação de novos modelos de sociabilidade.
Aqui vale a pena mencionar que meu objetivo não é refutar os argumentos de Bourriaud e sua estética relacional (embora esteja tentada a fazê-lo). Entretanto como este livro tem sido amplamente utilizado como referência teórica tanto por curadores e quanto por artistas aqui no Brasil, penso que vale a pena trazê-lo à baila a partir dos dois pontos citados no parágrafo anterior, e confrontá-lo, demonstrando como o relacional e a problemática do(s) outro(s) (seja este outro o crítico, o historiador, o co-autor, o espectador, o leitor, o participador ou o público), já eram preocupações arraigadas e aprofundadas na produção de Oiticica e Clark, tendo sido uma das linhas de força propulsoras de suas pesquisas artísticas. Começando pela relação entre Hélio e Lygia que, em 1986, ela mesma assim define:
Hélio era o lado de fora de uma luva, a ligação com o mundo exterior. Eu, era a parte de dentro. Nós dois existíamos a partir do momento que há uma mão que calce a luva.
Afora as imagens dicotômicas que Lygia usa e que nos podem soar ultrapassadas, o mais importante desse depoimento é a dimensão do diálogo, da relação. O que ela marca é como a sua produção (e a de Hélio), dependiam desse diálogo, dessa relação e da relação com o outro, com o mundo exterior e esse mundo exterior não era restrito ao mundo da arte, mas estava intimamente relacionado à idéia de uma esfera pública, compartilhada e não homogênea.
Principalmente nas Cosmococas de Hélio e Neville e nos objetos relacionais de Lygia, suas preocupações não se limitavam a redefinir o campo, domínio ou linguagem da arte. Para eles a questão da esfera pública e da presença da arte na constituição e significação dessa esfera, deveria se dar através de processos dinâmicos que envolvessem negociações, jogos, confrontos, protestos, fricções.
Por isso, a partir do momento que, aqui no Brasil, essas possibilidades foram restringidas, tolhidas, e a liberdade de expressão cerceada em função da ditadura militar que instituiu o AI5 nos fins de 1968, Hélio, conscientemente, se retrai. Literalmente, declara sua retirada de cena. Em carta de vinte e três de dezembro de 1969 à Lygia, Hélio diz: No Brasil não quero aparecer nem fazer coisas públicas, pois seria uma compactuação com o regime; além disso, se eu não ficar quieto prendem-me.
Aqui fica claro que para Hélio a arte não deveria estar simplesmente situada na esfera pública, mas participar mesmo da sua constituição. Por isso, a partir do momento em que essa esfera foi colocada sob o controle repressivo e violento de um governo militar golpista, Hélio sai de cena. Graças a bolsa Guggenhein que recebeu em 1970, passa quase todo os anos dessa década em Nova York (retorna ao Brasil só em 1978). Nesse período envolveu-se com experiências em torno da expansão da linguagem cinematográfica que para ele deveria ser não-narrativa e com a construção de uma ambiência anárquica. De certa forma é uma expansão dos penetráveis e ambientes onde as pessoas poderiam se dedicar ao delírio-deleite (ao crelazer), ao play-papo.
Uma diferença que merece ser remarcada entre as Cosmococas, os penetráveis e os demais ambientes criados por Oiticica (incluindo ai o seu Éden) é que as experiências CC que foram realizadas, o foram em sessões privadas, no apartamento do próprio artista em Nova York. Depois que retornou ao Brasil nunca chegou a mostrá-las.
Durante os anos de 1978 e 1980 (quando morreu), Oiticica atua em alguns filmes, constrói um de seus penetráveis para servir de cenário para um filme, participa do evento Mitos Vadios (São Paulo) para o qual realiza a performance Delirium Ambulatorium e escreve texto homônimo. Promove o evento Caju-Kleemania, proposta para participação coletiva no que denominou acontecimento poético-urbano.
Esse evento realizado no Bairro do Caju no Rio de Janeiro também foi definido pelo artista, da mesma forma que as Cosmococas, como programa in progress.
Paulo Herkenhoff argumenta que as experiência CC de Hélio são uma crítica à sociedade de consumo (e do espetáculo) norte-americana, e que no Bólide Cara de Cavalo a critica é remetida à sociedade brasileira , e na base de ambas as obras subjaz a questão do crime. Numa o crime é duplo: a imagem do temido bandido Cara de Cavalo (que já seria a imagem do criminoso e assim a encarnação do crime) e, de outro lado, o seu assassinato pela polícia que também era um outro tipo de ação criminosa. Já as Cosmococas, segundo Herkenhoff, atuam como provas materiais de um crime. As fotos projetadas mostrando, as Mancoquilagens desenhos feitos por “carreiras” de cocaína — que funcionavam como uma espécie de maquiagem sobre retratos de celebridades (Merlin Monroe, Jimi Hendrix, Buñuel) para serem consumidos. Os slides (momentos-frames), não mostram o ato, a inalação, mas toda a parte material envolvida onde a ação ocorreu. Em algumas imagens chega a aparecer uma mão fazendo (ou retocando) o desenho.
Enquanto isso Lygia Clark desenvolve em Paris suas experiências sensoriais coletivas com grupo de alunos ou outros interessados: Baba Antropofágica, Cabeça Coletiva, etc. O que mais irá interessar aqui é no que essas experiências culminaram: nos Objetos Relacionais, com os quais Lygia irá trabalhar entre 1976 até sua morte em 1988 como elementos nas suas sessões de Estruturação do Self. Durante esse período a artista afirma categoricamente que o que está fazendo não é arte, mas uma prática terapêutica. Não há mais aqui espectador ou participador, há simples e puramente a relação, ela e seu cliente, não há terceira pessoa, não há testemunha, apenas duas versões, a dela e a do “cliente”.
Não há mais mercado da arte, ela cobra o tempo de uma sessão terapêutica, não há mais coleção, museu, exposição. Adentrar o campo da psicoterapia de certa maneira é (re)fazer a torção e o corte contínuo que ela propõem com seu Caminhando de 1963. Ela “entra” para arte em função de uma crise deflagrada após o nascimento de seu terceiro filho em 1947 e “sai” da arte para continuar revertendo, não mais só as suas, mas as crises do(s) outro(s). Ela está caminhando sobre uma fita de Moebius onde não se tem um dentro e um fora. O que passa a interessar à Lygia nessa nova volta pela fita de Moebius é a reinvenção do sujeito, é inventar uma nova maneira de estar no mundo, de relacionar-se.
Assim podemos concluir que o recolhimento a um domínio privado nas obras de Hélio e de Clark não nascem de uma necessidade de criar um espaço autônomo para suas práticas, ao contrário, vêm de uma necessidade de terem suas obras consumidas, tragadas pelo mundo, pela vida, pelo outro, pois desejam de alguma forma serem canibalizados, devorados porque, ao mesmo tempo, em que repudiam a estetização da participação não se sentem mais como detentores da potência engendrada pelas suas proposições. Nas palavras de Hélio: O que acho é que o lado formal do problema (da participação) foi superado, há muito, pelo da “relação nela mesma”, dinâmica pela incorporação de todas as vivências do precário, do não-formulado, e às vezes o que parece participação é apenas um detalhe dela, porque na verdade o artista não pode medir essa participação, já que cada pessoa vivencia de um modo.
É justo essa relação nela mesma que vai gerar a radicalidade, tanto das Cosmococas quanto dos Objetos Relacionais. A relação nela mesma, o acontecimento, o imponderável e imaterial da obra é que pode estender-se pelo mundo e modificá-lo, mesmo que em pequena parcela. É dessa parte imaterial, daquilo que não está lá, é que nascem os relatos, que se dá a criação do outro sobre qualquer proposição artística. “Não basta o factual: isso e aquilo; as palavras e a escolha dos termos e a construção (como num poema) é que dão a dimensão ao relato da coisa ” é o que recria, modifica ou destrói a coisa. Mas, à Hélio, incomodava a emergência de uma cultura da participação, ou melhor, que um maneirismo participativo deixasse a “descoberta/invenção do artista ser reduzida às mesquinharias idiossincráticas do espectador que não existe mais. Quem vive o que você (Lygia) propõe e dá ou vive ou não vive, mas nunca fica na posição de “assistir” como de fora! Voyeurs da arte!” .
Esse espectador que não existe mais foi eliminado definitivamente da obra de Lygia que o transformou em cliente ou em nada/ninguém, no qualquer; naquele a quem desafiou com sua prova do real. Com um seixo colocado entre a sua mão e a do outro construiu uma ponte , a única na qual ainda acreditava que pudesse caminhar.
Bibliografia
BATTCOCK, Gregory (Org.).A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1968. Debates)
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional; (trad.) Denis Bottmann. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CLARK, Lygia e OITICICA, Hélio. Cartas 1964-74 (org.) Luciano Figueiredo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.
Hélio Oiticia e Neville D’Almeida. Cosmococa programa in progress. (Catálogo)
Lygia Clark: da obra ao acontecimento. Somos o molde a você cabe o sopro. Exposição organizada pelo Musée des Baux-Arts de Nantes, França e pela Pinacoteca do estado de São Paulo. Curadoria: Suely Rolnik e Corinne Deserens.( Catálogo da exposição).
PEDROSA, Mário. Mundo, Homem, Arte em crise (org.) Aracy Amaral. São Paulo: Perspectiva,1986. (Debates)