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março 4, 2010
Verdade e blefe na arte contemporânea por Rafael Campos Rocha
Crônica de uma viagem ao Rio
A. é cheia dos mais diversos preconceitos camuflados nas mais diversas formas do argumento liberal pequeno-burguês (uma classe extinta, mas que sobrevive como Espírito). Todos conhecem alguém como A. no mundo da Arte. Ela vem não sabemos de onde, papagueia piratas até o ponto de tornar-se contramestre e, por fim, abre alguma iniciativa de Arte altamente complexa, conceitualmente inextricável, ou simplesmente uma galeria de baixo-calibre e repercussão cultural nula. Foi para conversar com A. que fui ao Rio de Janeiro e, como as pessoas nunca surpreendem, fui incrivelmente embrulhado e colocado na soleira da porta do artista Afonso Tostes, célebre boa-cepa das montanhas mineiras albergado perenemente na Baía de Guanabara. Nesse momento termina minha viagem-blefe e começo a trabalhar. Afinal, todos sabemos que a especialização do crítico é ver o que ninguém vê em um lugar onde todos estão olhando. De preferência um lugar branco, higienizado de gente pobre e feia (e, portanto incapaz de comprar arte). O cubo branco é o cachorro morto querido da arte contemporânea. Como a falsa-consciência da falsa esquerda, todo mundo chuta da boca pra fora para ansiar entre quatro paredes estar dentro de suas quatro paredes. Por isso quando ouço alguém gritar contra a institucionalização da arte escuto: “Papai do Céu, se você me colocar na Bienal de São Paulo prometo parar de urinar no crucifixo, porque o Senhor me disse que era plágio“.
Mas se tem uma coisa que a crítica institucional tem razão é que ela tem razão. Trabalhos no estúdio ganham a alma e a vida que vendem aos curadores (sob a pena de nunca venderem a Carne para ninguém) que naturalmente perdem na higiene do museu e da galeria. O trabalho de Tostes, que é o trabalho de um artesão desempregado num mundo tecnológico tem justamente o desinteresse da artesania em um mundo que não mais necessita dela. Assim, ao polir suas tíbias e sua sensacional caveira com coluna vertebral, Toste atinge as ressonâncias místicas das contas de madeira tibetanas, buriladas infinitamente com o objetivo (objetivo é uma palavra contraditória nessa situação) de elevação da alma do comezinho do mundo, justamente por um mergulho nesse comezinho, assim como Bataille, Genet e Sade transcendem a necessidade material pelo mergulho na necessidade material.
Dessa forma, e ainda que meu argumento seja um pouco old-fashion (ou será que o século XVIII voltou à moda? Preciso me informar) a verdade do trabalho de Tostes vem justamente do seu desinteresse de inserção institucional por meio dos grandes temas político-artísticos em prol de um fazer infinito de uma peça que, ao acabar como objeto, deixa somente o detrito da atividade para o “mundo da arte”. É, cá pra nós, o que o artista lega às exposições é realmente o detrito de sua atividade como artista. A não ser que seja um blefe. Um fazedor de objetos tão reificado quanto os mesmos. Um não-pensador livre, alienado de sua obra e de si mesmo e adestrado pela engrenagem da venda de obras de arte. Como quer A., nossa heroína inicial.
Evidentemente, a donzela daria o argumento que o objeto de arte é sempre desinteressado, porque serve ao olhar contemplativo do burguês esclarecido (outra classe desaparecida que sobrevive como Fantasma). Isso se ele conseguir desviar os olhos do home theater por um segundo e ver as belas alternâncias de cores do pintor M ou S.
Mas o que A não sabe é que o artista autêntico sequer faz as coisas para a contemplação. Ele somente faz. Essa atividade démodé no mundo da delegação digital. E é essa instância artesenal, algo heideggeriana, que habita um artista como Tostes. Não um fazer propriamente manual, mas um fazer cujo objetivo é fazer. Por isso mesmo, uma peça pode manter a arte sendo utilitária, como o sensacional calço de alumínio que Tostes fundiu, usando uma cunha de madeira como modelo. Fundir aqui constitui esse ato desinteressado de experiência intelectual que caracteriza a atividade artística, transformando o calço de tostes (assim como várias peças utilitárias de Duchamp) em uma obra como as infindáveis variações formais da pintura de Sean Sculli não conseguem ser. O genial Gabriel Sierra pode confirmar o que estou dizendo sem abrir a boca, apesar da reificação (não-intencionada, é bem verdade) de sua obra na última Bienal.
Minha visita teve outro momento marcante que gostaria de compartilhar. Ao conhecer o apartamento de um célebre pintor, deparei com sua coleção, que ratifica o que tenho dito: também no ato de colecionar, o artista-intelectual não necessita da chancela do mundo da arte para escolher suas peças. Afinal, um artista renomado poderia alardear seu apoio á outros artistas e, pior ainda, comprar somente peças que ratificariam sua própria obra, como fazem alguns professores de pintura em São Paulo. Mas ali não, pelo contrário. O artista-colecionador parecia nutrir uma curiosidade sincera e indomável pela Diferença, o que mostra, de mais a mais, a sabedoria de quem sabe que o Outro não passa do Si Mesmo. E muitas vezes melhorado. A modéstia do artista-colecionador contrasta com a soberba do colecionador-capitalista, que acredita comprar o artista por meio da obra, para depois armazená-lo em seu arquivo de coisas-pessoas e pessoas-coisas.
Pois bem, naquela coleção vi uma obra notável de um artista que cada vez me agrada mais: Rodrigo Matheus. Suas peças de escritório desfuncionalizadas fazem não somente a crítica à produção como a crítica a efetividade dessa crítica, deixando mesmo pouco espaço para a interpretação a posteriore. A peça em questão era um desses avisos de feltro, protegidos por um vidro, em que se pregam avisos com alfinetes coloridos. O quadro não continha avisos, como para confirmar a teoria de Lorenzo Mammi de que muito a melhor arte contemporânea trata da sua própria impossibilidade de dar significado para os eventos maiores da vida contemporânea. O trabalho de Rodrigo Matheus espantou esse pobre crítico, num primeiro momento, pela sua dessemelhança para com a produção do pintor-colecionador. Ingenuidade minha. Ao apontar a Diferença como mera ideologia, o artista-como-colecionador ensinava mais uma vez uma pessoa a ver e preferir à verdade ao blefe. Ainda que ambos sejam relativos e tenham a vida curta das coisas do homem.
p.s- A. nunca mais foi vista no Brasil. Parece que perambula pelas ruas de Paris perguntando pela “cultura séria” e “profunda” e somente esbarra horrorizada nos sorrisos enormes e na pele negra dos novos donos da cidade. Mas isso são somente boatos de gente maldosa que não consegue espaço em sua agenda imaginária.
Rafael, é mais um esclarecimento do que um comentário. Concordo com seu comentário sobre a obra de Rodrigo Mateus. Ele já era muito bom quando expos no CCSP e Maria Antonia e está ficando cada vez mais refinado e potente com seus trabalhos mais recentes. Não entendi direito a referência ao Lorenzo, algo sobre a ligação entre arte e vida contemporânea. Na sequência, a conclusão que você faz a partir da relação entre verdade e blefe que você faz no trecho final:
"Ao apontar a Diferença como mera ideologia, o artista-como-colecionador ensinava mais uma vez uma pessoa a ver e preferir à verdade ao blefe"
Tom e tema oportunos e com a ironia que é sua marca crítica. abs, Tania
Posted by: Tania at março 8, 2010 4:55 PMai, ai, ai, sinto o cheiro da "Verdade", bem menos complexa daquilo que representaria.
Posted by: Caco at março 8, 2010 8:11 PMacido e rasteiro! e, é claro, erudito :)
Posted by: renata at março 9, 2010 5:10 AMpois não Tânia!me refiro ao texto que li de mammi na revista dardo, espanhola. era uma crítica justamente à teoria de imanencia da arte de arthur danto, dando exemplo de artistas que tratam justamente sobre a impossibilidade da obra contemporânea de conseguir significar perante o mundo sem, com isso, deixarem de ser grandes obras de arte. bom, pelo menos foi o que eu entendi no texto. com relação ao cheiro da verdade, Caco, acho que é por aí mesmo. e obrigado pelo erudito Renata. foi bondade sua.
Posted by: rafael campos rocha at março 9, 2010 10:06 AM