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junho 8, 2009
O áudio visual por Ana Maria Maia
Sobre O lugar dissonante, curadoria de Clarissa Diniz e Lucas Bambozzi para o 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco
ANA MARIA MAIA
especial para o Canal Contemporâneo
Imagem
Uma sala hermeticamente fechada e, por isso, escura. Sua escuridão total inviabiliza qualquer possibilidade de localização. Seria ela grande? Quantas pessoas estariam nela além de mim? Estaria sozinha? A procura por certezas sobre a experiência naquele lugar demanda mínimos movimentos, um recosto, a atenção das pupilas dilatadas, mesmo que este gesto resulte inútil.
“Alô?”
Ouve-se uma emissão que parece estar à esquerda, no alto. É o canal aberto de uma ligação telefônica feita de orelhão perto dali, no pátio da Torre. O lugar da até então incapacidade perceptiva torna-se oportunidade de escuta expandida, em tempo real, de outros lugares, situações e intimidades. A escuta sobrepõe-se, aliás, em diversas vozes acionadas de oito -e não apenas um- telefones públicos habilitados para este circuito. Oito instâncias (ou 16, se considerarmos os agentes de fala e escuta envolvidos) que, naquela câmara de sentidos, coordenam uma única voz interior.
Subtítulo
Fui a Recife a convite do 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, para acompanhar e relatar aqui no Canal Contemporâneo a abertura da exposição O lugar dissonante, com curadoria de Lucas Bambozzi e Clarissa Diniz e trabalhos de Fernando Velázquez (Uruguai/SP), Lourival Batista e Hrönir (PE), Giselle Beiguelman e Maurício Fleury (SP), Paulo Nenflídio (SP) e Ricardo Carioba (RJ). Levei comigo e li no caminho a recém lançada versão brasileira do Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo, de Nicolas Bourriaud e, inevitavelmente, revivi vários dos conceitos do que o autor chama de “formas de saber geradas pelo surgimento da rede” a partir do que podia ver montado e em uso naquela Torre Malakoff.
O grifo na expressão “em uso” justifica-se pelo traçado de percursos próprios e não mais de obras individualmente fundadoras para o que se tem por contemporâneo nas artes visuais. Ali, onde cinco artistas exibiam dispositivos para interação, ou melhor, participação (por uma maior horizontalidade nesta hierarquia de ações, talvez) do fluxo de visitantes a quem se dirigiam, a autoria (ou a “micropirataria”, como prefere chamar Bourriaud) passa pela procura de coerências geográficas e históricas para nosso espaço-tempo de acúmulos, nosso caos cultural.
Prefiro entender: se criamos, então, uma reunião de vídeo-instalação, net-art, mobile-tech e instalação sonora, é porque estas mídias abrem chaves de entendimento das operações por que passamos na vida contemporânea. As permutas de intimidade por serviços online; as simultaneidades e saturações da convivência globalizada; as decodificações de linguagens cifradas e o analfabetismo de quem não as lê; a experiência em tempo real e as escolhas e especificidades para/sobre documentá-la. Prefiro mapear aplicações a categorizar O lugar dissonante pela técnica, como uma exposição de arte e tecnologia. Isso porque a problemática que ali se encontra, acredito e reforço, deixa de dizer respeito apenas à invenção de interfaces; já pertencem à ordem do utilitário e de seus possíveis descondicionamentos pelas vias da liberdade e da reflexão. Assim sendo, a opção pelas tecnologias presentes em nosso cotidiano, portanto, torna-se um pressuposto de qualquer comentário empreendido pelos artistas participantes.
Dissonâncias
A imagem textual que abre este relato trata da obra Ouvidoria, de Lourival Batista e Hrönir, inédita e única comissionada pelo Salão. Recorro à mesma para abrir meu itinerário por O lugar dissonante dado à didática que encontro nela para entender a figura de dissonância sobre a qual fala a curadoria. A dissonância de Ouvidoria passa primeiro por sua Babel de pronúncias e sotaques desarmônicos e depois pela dissociação das esferas de ação e contemplação que inviabiliza a paisagem total do espaço. Ou se liga gratuitamente dos aparelhos instalados no térreo, ou se escuta a transmissão ao vivo no ambiente escuro.
Em ambos os casos, o virtual se inscreve como um dado de leitura e as coordenadas sonoras completam as lacunas de imagens e representações. O audível sugere o visível; a interpretação devolve à prática um caráter aberto e propositivo. No escuro, os olhos descansam e são evocadas novas medidas de sociabilidade e de contextualização cronológica para as narrativas individuais.
A volta ao som como elemento de narração é também encontrada em Suíte 4 Mobile Tags, de Giselle Beigelman e Maurício Fleury. Em gráficos simples, na verdade códigos de barras chamados QR-Codes, a obra, já exibida no File 2009, embute números de telefones dispostos lado a lado. O espectador, munido de seu próprio aparelho de celular, é capaz de acessar esses dados e acionar o toque de cada um deles. Silenciosa, a obra designa pela justaposição de significante e significado. Em atividade, intenciona criar uma orquestra de timbres, um “ready-made musical”, nas palavras de Fleury.
Por obra da expografia, entra como elemento desta orquestra uma parte exterior a ela, a instalação Teia, de Paulo Nenflídio, vizinha e mais barulhenta. O espalhado emaranhado de fios condutores de um circuito sonoro pendurado por fios de náilon faz ressonarem captadores eletrônicos à medida que se aproxima a mão de quem o observa e com ele interage. Uma apropriação da engenharia de uma pequena célula de toque em favor de usos mais plásticos e espaciais. Aqui, assim como em Suíte 4 e, arrisco-me a dizer, na contramão do enredo de Ouvidoria, o audível retorna ao visível (em Suíte 4, o visível são os QR-Codes e os aparelhos; em Teia, é o diagrama da célula de toque e a instalação como um todo) e revela nossos próprios vínculos com esquemas de localização e atuação mimetizados por imagens. Este parece mesmo ser o território para a praxis.
Mas continuamos buscando novos lugares, novos termos de uso, zonas de negociação do áudio-visual como esquema de complementaridades. Ricardo Carioba aborda as possibilidades de encontro e simultaneidade entre as partes deste esquema na videoinstalação inédita Abra. Na obra, o audível nem sugere nem retorna ao visível, mas o submete às regras da grade temporal que surge a partir da transposição de ruídos e imperfeições de uma gravação analógica para a plataforma de edição digital. Em cima desta grade, faces de cubos planificados projetados em escala humana desconstroem possibilidades de espelhamentos cenográficos e comprovam a tese do artista: “o lugar é o momento em que as coisas fazem sentido”.
A temporalização do espaço sugerida por Carioba acaba por introduz uma questão cara ao trabalho de Fernando Velázquez, Your Life, Our Movie: o fluxo contínuo da experiência em rede. Através de três terminais conectados ao álbum de imagens Flickr e dispostos em talões lado a lado, o público dispara roteiros de resgate e exibição de conteúdo online. O que os determina é a combinação entre palavras-chave digitadas pelo público e tags relacionados às imagens no ato de sua publicação. O resultado dessa combinação aleatória e passageira é uma criação coletiva entre autores do dispositivo (o artista), dos conteúdos (os usuários do Flickr) e das edições (os visitantes da exposição).
Pós-produção
Bourriaud falava da inviabilidade do ponto final da obra, agora prolongada no universo de leituras e citações que a circunscreve. Falava da dissolução de fronteiras entre consumo e produção e do dado como campo original para o trabalho artístico. Falava da programação, da discotecagem e da bricolagem como estratégias para o artista pós-produtor.
Um artista que “utiliza a sociedade como um repertório de formas”, talvez como Velázquez propusera no estabelecimento de uma rede. Que “habita estilos e formas historicizadas”, como Carioba em sua referência ao cubo como núcleo de significação da arte dentro da instituição. Que “reprograma obras existentes”, como Lourival em menção não proposital ao Surveillance (1969-1970), dissociação da experiência do espectador em vídeo, de Bruce Nauman.
Gosto do otimismo e da coragem de Bourriaud em correr riscos e redefinir campos sempre que a falta de perspectiva parece próxima. Acredito nesta porção de suas hipóteses para o artista e para a arte desde início do século. Por isso termino minha visita ainda com ele em mente, pensando nas funções e nos usos do que vi em O lugar dissonante. Procurando junto com aqueles que dela fazem parte minhas próprias escutas, observações e participações no mundo. Na impossibilidade de qualquer prescrição, a ausência de uma fotografia que traga para o espaço deste texto a sensação de estar em Ouvidoria talvez seja uma resposta. Isso porque para estar lá, retomo, são necessárias as dúvidas, o recosto, a atenção das pupilas dilatadas, mesmo que este gesto resulte inútil.
Excelente leitura das obras e da mostra. Impoortante diálogo da Pos-produção de Bourriaud com os dispositivos propostos e experiências desencadeadas junto ao público participante / interator. Fiquei muito curiosa de além das imagens, poder tocar as paisagens sonoras e por elas ser afetada. Devemos lançar o livro Interterritorialidade no contexto do 47o. salão, Lucas e Giselle figuram entre os autores, entre os quais me incluo e também o organizo junto com Ana Mae Barbosa.
Posted by: Lilian Amaral at junho 9, 2009 6:36 PM