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abril 29, 2008

SParte e desamparo cultural, por Juliana Monachesi

mario_sequeira1.jpg mario_sequeira2.jpg Os artistas Amanda Melo e Bruno Faria discutem o trabalho de arte digital da espanhola Ruth Gómez exposto com destaque no estande da galeria portuguesa Mário Sequeira


SParte e desamparo cultural

JULIANA MONACHESI

Uma pena que um evento do porte e relevância da SParte, que chega neste ano à quarta edição, possa ficar marcado pela falta de discernimento de alguns visitantes da feira de arte. Refiro-me à apresentação da obra Fantasia de compensação, do artista Rodrigo Braga, no estande da galeria Amparo 60, e à "mobilização" histérica e sem qualquer tipo de fundamento que se seguiu. O trabalho de 2004, resultado de bolsa de pesquisa e criação com que o artista foi premiado no 45º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco -com duração de dez meses, concedida pela Secretaria de Educação e Cultura do Estado/Fundarpe-, é uma das pesquisas mais coerentes e críticas no campo da manipulação digital e das transformações biogenéticas, temas que cada vez mais são de extrema urgência na reflexão de todo profissional que lida em seu cotidiano com, no primeiro caso, o estatuto da imagem e, no segundo, com os desafios éticos apresentados pela revolução tecnocientífica.

Vítima constante de mal-entendidos, apesar da vasta bibliografia disponível a respeito do trabalho [confira alguns links ao final deste texto], Fantasia de compensação voltou a ser barateada em discussões que levam em conta apenas a camada mais óbvia e superficial de leitura da obra, ou seja, o uso supostamente cruel e inconseqüente de um animal na elaboração de um trabalho de arte. Ok, vamos aos fatos -de conhecimento público e notório, mas aparentemente muito distantes do alcance de pessoas fúteis que dedicam seu tempo a julgar os outros da maneira mais irresponsável possível, ou seja, sem saber do que estão falando. Os fatos são, resumidamente, os seguintes: para desenvolver a pesquisa que resultou na série de fotografias intitulada Fantasia de compensação, Rodrigo Braga negociou, durante dois meses, com veterinários particulares, com as universidades Rural e Federal de Pernambuco e com o Centro de Vigilância Ambiental da Prefeitura do Recife para obter as documentações e autorizações necessárias para realizar, sob a supervisão de um veterinário cirurgião, a simulação de um processo cirúrgico por meio do qual fragmentos da carcaça de um cachorro -que seria eutanasiado no dia seguinte em um procedimento rotineiro do centro de controle de zoonoses- foram enxertados em sua cabeça com o intuito de criar um auto-retrato zoomórfico em que o artista se auto-representa como um homem-rottweiler.

Fantasia de compensação é dos trabalhos mais poderosos que já vi em anos recentes; meu primeiro contato com a obra foi na exposição O corpo na arte contemporânea brasileira, em 2005, realizada pelo Itaú Cultural e assinada pelos curadores Fernando Cocchiarale e Viviane Matesco. Vista no contexto de obras que datavam do início dos anos 1960 até a atualidade, a série fotográfica de Rodrigo Braga se destacava pela proposição de um corpo híbrido e contaminado pela vida urbana dos anos 2000. Ali estava um artista a lidar com a fragilidade da condição humana nos dias de hoje, ou seja, com a realidade de uma quase extinção das noções de sujeito da modernidade. Em texto de apresentação da mostra, reproduzido do site da instituição, os curadores afirmam: "Ao longo desse período [de 1960 a 2005] a compreensão do papel do corpo na arte passou por uma revolução radical em relação àquela do passado idealizado da arte clássica e da licença formal em que foi tratado no modernismo. (...) Os artistas passam a explorar sua temporalidade, contingência e instabilidade e a compreender sua importância na busca de novas formas de liberdade e no questionamento de convenções artísticas e sociais".

Aparentemente, "novas formas de liberdade" não são bem aceitas pelo público. Não de imediato, ao menos, e a história da arte aí está para comprovar. O curioso é acompanhar, três anos depois, na mesma cidade, a repercussão ensandecida à mesma obra do artista. Em meio ao bom e velho processo de perguntar "por que será?", me ocorre o caso recente da exposição de Guillermo "Habacuc" Vargas em uma galeria na Nicarágua (agosto de 2007) e o retorno do repúdio a suas propostas estéticas por ocasião do convite ao artista para representar a Costa Rica na Bienal Centroamericana Honduras de 2008. Aos que estiveram fora do planeta nos últimos meses, Habacuc tornou-se celebridade na internet depois de apresentar em sua mostra individual na galeria Códice um cachorro de rua amarrado a uma corda como forma de homenagear um imigrante nicaragüense chamado Natividad Canda, que morreu atacado por dois rottweilers em Cartago, cidade da Costa Rica onde o artista reside. Afirmações de Habacuc: "Me reservo decir si es cierto o no que el perro murió. Lo importante para mí era la hipocresía de la gente: un animal así se convierte en foco de atención cuando lo pongo en un lugar blanco donde la gente va a ver arte pero no cuando está en la calle muerto de hambre. Igual pasó con Natividad Canda, la gente se sensibilizó con él hasta que se lo comieron los perros"; "Nadie llegó a liberar al perro ni le dio comida o llamó a la policía. Nadie hizo nada"; "Recojo lo que miro... El perro está más vivo que nunca porque sigue dando qué hablar". Sobre a polêmica internacional que a exposição gerou, é taxativo: "Delirante. Y de algún modo es reflejo de un malestar social que seguramente tiene otras razones y aflora en episodios como este".

O mal-estar social a que Habacuc se refere ilustra bem o desamparo cultural que a sociedade contemporânea vive quando decide se voltar violentamente contra artistas sem querer enxergar seu próprio reflexo nas obras destes artistas.

FANTASIA DE COMPENSAÇÃO - NOTA DE ESCLARECIMENTO

A série Fantasia de compensação foi realizada há quatro anos, utilizando procedimentos que mesclam produção plástica (real) e manipulação digital (virtual), não causando sofrimento e morte ao animal em questão, cujo corpo foi obtido mediante autorização formal (documento por escrito), concedida pelo Centro de Vigilância Ambiental da Prefeitura do Recife, visando utilização exclusiva para fins artísticos –tal qual são concedidas autorizações para fins científicos.

O animal –que antes esteve em quarentena no aguardo de seus proprietários ou possível interesse de adoção– foi eutanasiado como procedimento padrão e final do processo legal, considerado necessário pelas autoridades sanitárias no controle de doenças transmissíveis a populações urbanas. Portanto, o cão não foi eutanasiado pelo artista, mas pelas autoridades responsáveis. O artista também não teve qualquer influência sobre os procedimentos adotados pelo centro municipal de controle de zoonozes. Ao invés de seguir para a cremação (como todos os outros animais recolhidos nas ruas e submetidos à eutanásia), o cão foi utilizado pelo artista seguindo cuidados higiênicos, legais e éticos.

Neste mesmo site, o texto Dos bastidores de um auto-retrato esclarece o processo de realização da obra, ressaltando a relação de respeito que tem o artista em relação às questões éticas problematizadas pela sua obra.

Rodrigo Braga no projeto Portfólio
Fantasia de compensação, por Clarissa Diniz
Análise estética de Fantasia de Compensação
Dos bastidores de um auto-retrato
Rodrigo Braga: Fotosite, MAM, Itaú Cultural...
Entrevista com Rodrigo Braga, por Alexandre Belém

Posted by Juliana Monachesi at 7:33 AM | Comentários(1)
Comments

Acredito que os dois casos são bem diferentes, o de Rodrigo Braga e de Habacuc, eticamente falando. O primeiro, afinal, fez uso de um animal já morto, o que não muito diferente de usar um acessório de couro ou comer uma bisteca de carne. A diferença tá mesmo só na questão da imagem, da forma como ele faz isso mesmo. Mas o caso do cachorro do Habacuc seria bem diferente: ele colocou o animal vivo no local, com a intenção de que ele morresse a míngua. Ok, o público tem sim sua parcela de culpa no acontecido, ele poderia sim ter intervido, mas não foi o público em si o causador da morte. Isso porque não foi ele que propões a situação, e mesmo podendo mudá-la, teria que dispensar um esforço razoável: a instituição museu , querendo ou não, ainda pesa muito e é o suficiente para inibir muitos dos visitantes a tentar qualquer intervenção à qual eles não sejam ostensivamente convidados. por mais que movimentos dentro da arte procurem configurar uma outra postura, essa é ainda a que prevalece.

Acho que nesse sentido é muito mais interesasante, por exemplo, uma instalação como a do dinamarquês Marco Evaristti, quando ele colocou liquidificadores com peixes dourados dentro à disposição do público. Apertar ou não o botão do aparelho era o suficiente para decidir entre a morte ou não do peixinho. Várias pessoas ligaram o liquidificador. A responsabilidade, dessa forma sim, é totalmente do público, e não deixa de ser um dilema ético tão forte quanto o de Habacuc.

Agora uma coisa que me preocupa tanto ou mais do que essas questões é o fênomeno de repercurssão desse último artista na internet. Minha principal desconfiança é se a instalação era realmente como é descrita, e se o cachorro efetivamente morreu de fome. Isso porque só encontrei até hoje referências à situação em blogs e listas de e-mails, tratando-se quase sempre do mesmo texto. Não encontrei nenhuma referência à instalação em nenhum site de arte, essa agora foi aliás a primeira vez. Mas mesmo assim, queria tirar uma dúvida: não se trataria isso de um evento virtual, criado ou mitificado pelo burburinho da internet?

Posted by: bruno reis at maio 13, 2008 1:07 AM
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