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Relatos Rumos 18 – Diário de bordo: Rio de Janeiro

 
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Guy A



Registrado em: Terça-Feira, 15 de Fevereiro de 2005
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MensagemEnviada: Qua Jun 18, 2008 2:06 am    Assunto: Relatos Rumos 18 – Diário de bordo: Rio de Janeiro Responder com Citação

Dia 18 – Rio de Janeiro [15/05]

"O Rio de janeiro continua lindo", etc. Até por isso não será o caso de gastar linhas aqui com o "momento-cidade"; centrarei minhas energias na descrição do evento. Mais digno de nota, sem dúvida o ritual etílico-conversatório protagonizado por mim, Guilherme Bueno e Paulo Sergio Duarte, no apartamento deste último; uma noite memorável, de boa bebida e ótimas discussões. Passamos ao largo, felizmente, do surto epidêmico da dengue que assola a cidade [e várias outras localidades do país, diga-se de passagem].

Do evento

Paço Imperial, 18:00. À mesa comigo, Paulo Sergio Duarte e Paulo Reis, com Valéria Tolói pelo Itaú Cultural. Apesar do horário complicado – em pleno rush carioca - o auditório está cheio; quase 100 pessoas lotam a sala.

Paulo Sergio abre lembrando afetuosamente de sua passagem pelo Paço [como diretor], e de como aquela casa lhe é cara. Comenta a "flexibilidade" de suas falas, e a dificuldade que sente em falar justamente ali no Rio, sua cidade; fala também de sua dificuldade em "mudar de temas", o que só faz "de 10 em 10 anos". Risos. A partir daí comenta as mudanças na relação do homem com o mundo e a natureza na contemporaneidade, tempos de "pós-humano", clonagem, etc; explana sobre as diferenças entre arte contemporânea e "arte atual", e história e historicidade na AC: da não-premissa, em ambas, em "inaugurar" nada, mas como inevitavelmente carregadas de historicidade; emenda na "invenção da humanidade" como atrelada ao momento em que esta "inventa a arte" [Bataille]; e estende-se em outros tópicos, por meio dos quais PSD vai contextualizando a produção contemporânea.

Salta então para a arte moderna e as diferenças entre o sujeito moderno e o contemporâneo; fala do fauvismo e do cubismo como casos em que havia uma comunidade diversa de indivíduos movidos por uma pulsão comum, as afinidades eletivas, e desta dinâmica como um modelo de atividade que duraria até o pop e, mais pontualmente, na arte povera. A seu ver, ocorre ali um rompimento dessa linha, pela característica de individualização entre artistas que todavia compartilham de algum modo um dado ou elemento "poético", e de como na produção contemporânea ocorreria o inverso: mesmo dentro da obra de um só artista pode-se detectar diversas linhas de abordagem e procedimentos; e das dificuldades aí inerentes para a atuação de críticos e teóricos. Estende-se nessa linha de raciocínio pela dificuldade em se localizar "mainstreams" na arte contemporânea [por conta da diversidade/pluralismo]. Aí entra nas duas polarizações que o vêm interessando há algum tempo – e já comentadas anteriormente –, a do espetáculo e a da delicadeza. Tratar-se-ia de "obras que se apresentam com contundência", onde o espetacular não é necessariamente imbuído de negatividade; depende de como este se apresenta na obra. E da delicadeza como "entrando em atrito com o mundo", por uma solicitação temporal diferenciada em sua contemplação, contrapondo-se ao estado de aceleração que caracteriza a contemporaneidade. Ressente-se ainda da falta de certo "atrito" na produção artística de hoje, ponto já assinalado em algumas falas anteriores, embora não se alongue em exercícios contextualizatórios acerca do que o definiria na atualidade.

Retoma aqui a ataraxia, noção que define a suspensão do juízo e das certezas, e método que PSD vê como cada vez mais necessário no contato com a arte nos dias atuais. Encerra discorrendo sobre o vazio e suas possibilidades de restauração na experiência contemporânea; cita o ceticismo de Descartes, a angústia e a dúvida metódica como mecanismo de "fabricação de certezas".

Por sua vez, Paulo Reis também apresenta mudanças estruturais em sua fala: altera seu mote anterior, em torno da gênese e mudanças de estatuto de espaços expositivos através dos tempos para um recorte mais atual, focando em modelos de práticas artísticas que lidam com ou se apropriam dessa noção. Faz também uma distinção entre as noções de "crítica institucional" e "crise institucional", comentando a atuação de artistas que operam "nas frestas", em contextos em que não há um cenário institucional conformado [como no Brasil]. Pincela tendências como a ascensão do entretenimento e da "velocidade" que dita o modo de vida nos dias atuais, parafraseando Ivo Mesquita e sua expressão "museu como lugar do retardo" como contraponto; cita Thomas Crow e Brian O'Doherty - e seu seminal No interior do cubo branco como referência.

Faz em seguida uma fala resumida da genealogia que apresentara até então; seu ponto agora é a exposição como estatégia do artista"; lembra de Debret, responsável por organizar a primeira exposição no Brasil, ele próprio também artista; cita o evento Propostas 66 [São Paulo, 1966] como "mostra que esvazia a dicotomia abstração/figuração".

Passa então a apresentar grupos de imagens que comenta consecutivamente; na primeira série estão registros de eventos e ações de grupos como Moto Contínuo [grupo de artistas paranaense atuante nos anos 70/80] e 3Nós3 [grupo paulistano da mesma época, especializado em intervenções urbanas – ou Interversões, como eles mesmos nominavam algumas ações]; a seguir, num módulo intitulado "O espaço-entre" surgem imagens de Nelson Leirner, Hudinilson Jr e de projetos curatoriais-expositivos "impressos", como Premonitor, de Mario Ramiro e Love, de Regina Melim; na seqüência temos o conjunto "Espaço de conhecimento e reflexão", onde Paulo retoma sua leitura de exposições como espaço possível de aprendizado; e finalmente vem o módulo "Ficcionalização de um sujeito colecionador/artista", onde apresenta projetos como "O colecionador" [1996-2008], work in progress de Mabe Bethonico, a "Coleção Duda Miranda" [2005-06], de Marilá Dardot e Matheus Rocha Pitta, e o Gonper Museum, de Fabiano Gonper – todos mais ou menos convergindo em plataformas de ação a partir de construções fictícias. Menciona também nesse bloco trabalhos de Carla Zaccagnini e de Cristina Ribas, que operam a partir de acervos de instituições e de operações de arquivamento [como outros citados acima].

Debate / Participação do público

Após alguns instantes do proverbial silêncio que costuma pontuar o início da participação da platéia, surge a primeira pergunta, e ela é "para a mesa". Uma estudante quer saber sobre "o atrito [captado da fala de Paulo Sergio] que o artista promove no público leigo [sic]", e "quem seria leigo no quê" afinal; e se não haveria aí alguma pretensão, etc.

PSD partilha um pouco de sua [vasta] experiência na área de educação pública, onde ele diz ter visto professores/as que se relacionavam com seus alunos de uma maneira que considera ingênua e imprópria, no que chama de "resistência em compreender o outro". Afirma que o que ele chamou de "leigo" se deve em boa medida ao fenômeno de consumo massificado de imagens [faz um aparte sobre a Rede Globo], que colabora na geração de um "olhar embrutecido" [outro bordão seu], não preparado para ver arte; se estende na potência cognitiva de certas obras e da experiência da repetição [de contato com a arte] como determinante para uma compreensão ou fruição adequada da obra de arte. Aí emenda numa crítica àqueles que diz "usarem o metro [enquanto instrumento de medição] errado, do modernismo", para "medir arte contemporânea"; algo surpreendentemente, passa a criticar abertamente a figura de Ferreira Gullar, a propósito deste mote [discretos risos catárticos em off em toda a sala; a mesa vibra]; cita a "estupidez" daquele ao comentar desdenhosamente, na imprensa, trabalho de Tunga que sequer chegou a ver [Lâmina das Almas]. Retorna então ao atrito ou fricção: a fricção vem da potência poética do trabalho e de sua condição de inadequação ao mundo [sempre imanente e involuntária]; cita trabalhos de Cildo e Barrio [dos anos 60/70] como exemplos mais candentes desta linha de abordagem [e talvez um tanto literais, a meu ver; embora ótimos, seria interessante ter exemplos mais "atualizados" para ilustrar as possibilidades deste atrito hoje].

A seguir, mais uma pergunta sobre educação, arte e escola para Paulo Sergio. Ele afirma que nosso sistema educacional é péssimo, "só não perde para o Haiti"; e que a única forma de fazer a arte entrar na escola é sendo incorporada na construção das próprias metodologias de ensino, de modo mais estrutural; e não "virar recreio", como parece ser a tônica no enfoque da aula de "artes" de modo geral. Do atual modelo, acha que "vai do nada a lugar nenhum"; é bem veemente, falando do alto de seus anos de experiência na Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro; reforça a necessidade de um modelo de mentalidade que veja na educação não uma "despesa", mas um investimento.

Guilherme Bueno, assistente-curatorial deste Rumos, está na platéia e faz um aparte comentando a historicização da arte [na fala de PSD], citando Tassinari e seu postulado segundo o qual ainda estaríamos "numa segunda modernidade". Emenda em Rimbaud e a "necessidade absoluta de ser moderno", ao que agrega a necessidade de "recolocação do que é história e o que é historicidade", embutindo a ataraxia nesta proposição. Neste ponto, Guilherme se estende em sua intervenção de modo cada vez mais prolixo [e longo], a ponto de eu não ser mais capaz de captar seu enunciado com a clareza [e rapidez] necessária, pelo que me desculpo com os leitores; ao final, eu e a platéia não estamos certos se Bueno fez uma pergunta ou tratou-se de uma colocação, embora certamente muito articulada e repleta de pontos instigantes [não é ironia, atenção].

Paulo Sergio então responde [?] comentando o ponto da "persistência da modernidade", discorrendo sobre a impossibilidade de ser moderno hoje [em contraponto ao que seria isso no século 19] e um "excesso de crises" que o incomoda: do sujeito, da representação, etc. Diz "ver crises" em todo lado, dando vários exemplos; "o modus vivendi do ser moderno subentende um estado ou condição de crise"; mas houve inúmeras alterações nessa relação durante o século 20 até o advento da contemporaneidade, naturalmente. Foca na questão trabalho/forças produtivas, apontando exemplos da perversa sofisticação que se dá nesse âmbito na era contemporânea, enfatizando a indústria bélica; tem-se então um horizonte muito mais amplo do que aquele que fundou a modernidade. Comenta a mudança também na produção de valor, da ciência e das conquistas civis e transformações epistêmicas; fala da "Fábrica" ["Factory"] de Warhol, "reafirmando a produção de arte em escala industrial", ao que acrescenta a consciência do desaparecimento do sujeito e de sua permanência. Toma fôlego e resgata Argan e seu bordão "a arte é uma cultura sem progresso", a partir do qual Paulo Sergio estabelece um paralelo com a ciência [essa sim uma área onde cabe a noção de progresso ou "evolução"]. Ufa. Falou por quase 40 minutos, ininterruptamente.

Encerrando a noite, Felipe Scovino [instado por PSD] indaga a mesa sobre o trabalho no Rumos, a dinâmica de mapeamento e quais as possibilidades curatoriais naquele formato. PSD afirma que a "principal diferença é não ter diferença", dizendo ter mantido certa continuidade no modelo [em relação a edições anteriores] e que acha bom o novo limite de 45 portfolios [ao invés dos mais de 70 da última edição] podendo ser inscritos. Estende-se comentando critérios de seleção, defendendo "a qualidade acima de tudo". Paulo Reis complementa na mesma linha, falando de sua experiência anterior no Rumos e da importância que vê no dado da pesquisa; fala também de um componente "bourdieusiano" [referindo-se à linha de pesquisa de Pierre Bourdieu] neste processo, embora sem maiores especificações; aproveito a deixa para comentar, a partir da referência a Bourdieu, as espinhosas questões envolvendo identidades culturais, "regionalismos", leituras esquemáticas e dominações simbólicas num projeto como o Rumos – discussão recorrente nestas viagens mas nunca suficientemente aprofundada, a meu ver.

Aí nos damos conta de que ultrapassamos em muito o tempo previsto para o evento, e decidimos encerrar. Foi uma noite ótima. Agora só falta mais uma escala – Salvador...
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