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Tema 2

Tensões de um corpo comum: alguns apontamentos sobre subjetividade, o ordinário e a moda

Carla Maria Camargos Mendonça
Tensões de um corpo comum: alguns apontamentos sobre subjetividade, o ordinário e a moda.
Carla Maria Camargos Mendonça[1]

Resumo

Este artigo pretende refletir sobre a vida comum, o homem ordinário e a subjetividade contemporânea. Pensando na interlocução entre os três pontos, há de se pensar na imagem do corpo comum, nas dinâmicas da aparência e de que forma elas são capazes de carregar consigo uma potência libertadora e criativa. Por se tratar de uma discussão ou de apontamentos sobre a vida do um qualquer, não trataremos aqui de um discurso do artista ou prioritariamente da arte, mas mais do que isso, do que pode o corpo que circula pela cidade, que sofre as mazelas do dia a dia, mas que transforma essa vida em algo diferente através de seu corpo, na forma como articula as peças de roupa sobre si.

As discussões sobre corpo e arte, mais precisamente sobre arte contemporânea, carregam para si autores de todas as ordens, pensamentos das mais variadas vertentes. No entanto, parece que antes de pensar as incursões desse corpo no campo das artes, há que discutir os movimentos de um corpo comum, ordinário, que habita todos os pontos do planeta, mas que não consegue chamar para si um olhar mais demorado. Não?

Antes mesmo de responder a pergunta ou apontar os olhares sobre este corpo, há se apontar um fenômeno que toma de assalto a mídia em geral: o corpo anoréxico. Há alguns meses, vimos emergir um debate no Brasil e no mundo: a magreza excessiva das modelos. Iniciado na Espanha há alguns meses, até a realização da respectiva Fashion Week do país, o assunto não possuía grande notoriedade na comunicação de massa, a não ser por pequenas notas em uma ou outra revista européia. No entanto, na época da realização do evento, as falas e discursos oficiais do mundo fashion e da saúde pública se acaloraram, o debate chegou à França, os grandes estilistas se pronunciaram e o caminho foi aberto: não mais a anorexia é o padrão de beleza mundial. Para completar, duas mortes recentemente documentadas no Brasil, em uma mesma semana, alertam para os perigos dos distúrbios alimentares.

Olhado nas coberturas de jornais, nos parece um debate, no mínimo, assustador. Sabemos de todos os problemas que o modelo doente de beleza pode causar, sabemos que o mundo da moda e seu gosto dominante são responsáveis pelos ditames das formas do corpo ordinário. No entanto, visto como discussão midiática, nos parece algo digno de ficção científica: daqui para frente uma nova forma de corpo. Certamente já passamos por várias dessas mudanças, mas nunca antes com um debate público tão amplo (há de se lembrar de discussões acaloradas na passagem do século XIX para o XX, em relação à indumentária, partiam de uma lógica parecida, mas obviamente o debate não se estendeu a nível mundial ou ganhou um caráter tão público. A anorexia ganhou uma certa notoriedade também na década de 90, em meio ao estilo heroína chique, mas o debate não ganhou maiores repercussões). O que nos chama atenção, então, sobre o debate contemporâneo se encontra no lugar do corpo anoréxico e na forma como outras tensões que não as da moda o afetam: é uma preocupação da ordem do cotidiano que levanta o debate, é a saúde, de forma mais específica, o discurso da saúde pública, que constrói uma tensão este corpo para uma mudança que o afeta no que tem de funcional – para além de ser belo, de se oferecer para o olhar e de receber as aprovações do outro, ele deve funcionar biologicamente, deve viver.

Assistir a essa publicização que deriva de reivindicações de ordem da vida ordinária causa algumas inquietações por fazer aparecer tensões resultantes de algo da ordem do comum. Se nos desfiles, revistas e vitrines os corpos devem receber uma nova formatação, qual será a influência dessas novas decisões, se assim podemos chamá-las, na vida do homem comum? Na verdade, acredito que é o momento de redirecionar a pergunta: a quem interessa, em termos de imagem, a vida comum? Seria relativamente tranqüilo mapear esse interesse em campos como o do documentário e até mesmo do jornalismo, das ficções de reality shows, do anonimato que ganha notoriedade no star system, mesmo que por tempos curtos e muito bem delimitados, através de imagens que teimam em nos chamar atenção diariamente. E são esses os campos que respondem a pergunta do início do texto. Esse corpo é, sim, interessante, para várias mídias e torna-se objeto de vários discursos. E é exatamente esse o problema: raríssimas vezes os donos destes corpos são sujeitos dos seus próprios discursos, na maioria delas são narrados.

Por esse motivo, há de se apontar o campo da moda como lugar privilegiado de aparecimento do corpo comum, principalmente levando em conta as questões suscitadas pelo debate da saúde. Pode parecer um tanto quanto ingênuo acreditar que o reino da aparência seria aquele da construção de uma narrativa particular, mas pensadas as subjetividades contemporâneas, o lugar da moda seria altamente libertador. Para entender este corpo que não ganha a arte ou a mídia como sujeito de seu próprio discurso, devem ser levantadas questões sobre a subjetividade contemporânea e de que forma ela redirecionas o pensamento sobre a idéia de sujeito, assim como cabe-se considerar a fabulação como potência dessa subjetividade.

Vida ordinária: prisão na ropua, prisão no corpo, prisão na moda?

Pelbart, tomando para si uma fala de Virilio, apresenta o paradoxo de não habitarmos um lugar, e sim uma velocidade, mas ao mesmo tempo nos a(man)termos presos às máquinas que proporcionam essa experiência. Um desses fenômenos é que somos reduzidos a uma espécie de egotismo tecnológico, já que a referência não é mais o território, ou os territórios existenciais, nem os eixos espaciais ou temporais do mundo ou da comunidade, mas nós mesmos nos concebemos como terminais, espécies de aleijados rodeados de próteses tecnológicas por todos os lados, paralíticos entubados em meio à velocidade generalizada[2]

Não só a tecnologia, mas todo o formato do social no contemporâneo concorre para a redefinição não somente do conceito de subjetividade, mas também de uma reestruturação da forma que olhamos (principalmente no campo dos próprios questionamentos que dirigimos) para ela. Recorremos, primeiramente, ao conceito de subjetividade a partir de Félix Guattari. Para o autor, ela é o conjunto de condições que torna possível que instâncias individuantes e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial em adjacência ou em relação com uma alteridade ela mesma subjetiva[3].

Pelbart aponta, também a partir de Guattari, que a compreensão da formação das subjetividades contemporâneas passa, invariavelmente, pela compreensão de sua relação com o capitalismo. Esse capitalismo, que tomou de assalto a subjetividade, teria a pretensão de submeter essa subjetividade às suas lógicas, em um processo de submissão. No entanto, esse projeto, como também podemos ver na contemporaneidade, não obtém completamente o êxito desejado, mas nos ajuda a perceber o esfacelamento do mito de uma subjetividade dada, mas moldada e automodulável[4]. Por esse motivo, recorremos a Guattari para compreender a subjetividade a partir de sua formação: para o autor é polifônica e não obedece, necessariamente, a sistemas tradicionais de determinação do tipo infra-estrutura material – superestrutura ideológica[5].

A partir dessa consideração, o autor aponta os componentes heterogêneos que concorrem para a produção da subjetividade, levando em consideração as máquinas sociais e as tecnológicas de informação, que operam em seu núcleo. Eles são os 1. componentes semiológicos significantes que se manifestam através da família, da educação, do meio ambiente, da religião, da arte, do esporte; 2. elementos fabricados pela indústria dos mídia, do cinema, etc. 3. dimensões semiológicas a-significantes colocando em jogo máquinas informacionais de signos, funcionando paralelamente ou independentemente, pelo fato de produzirem e veicularem significações e denotações que escapam então às axiomáticas propriamente linguísticas[6]

É na percepção desses componentes que vislumbramos, a partir de Pelbart, que apesar do capitalismo requerer uma plasticidade subjetiva sem precedentes, essa mesma plasticidade reinventa suas dobras e resistências, muda suas estratégias, produz incessantemente suas linhas de fuga, refaz suas margens[7]subjetividade é uma dobra do exterior. A autora cita Domènech. E, a partir dessa afirmação, somos impelidos a nos ater ao conceito de dobra (proposto por Deleuze) que, de acordo com Santaella, é a figuração-chave para pensarmos as novas formas de subjetividade. A autora explica que, para pensar esse conceito, deve-se abandonar as noções de identidade essencialista e interioridade absoluta e pensar que ambas possuem uma capacidade de transformação. Dessa forma, a em outras palavras, a dobra nos permite pensar os processos pelos quais o ser humano transborda e vai além de sua pele, sem recorrer à imagem do Sujeito autônomo, independente, cerrado, agente... Agora, o problema já não seria tanto perguntar-se sobre que tipo de sujeito é produzido, mas que pode fazer o ser humano, que capacidade de afectar e ser afectado tem em um dispositivo concreto. Essa capacidade não é tampouco uma propriedade da carne, do corpo, da psique ou da alma. É, simplesmente, algo variável, produto ou propriedade de uma cadeia de conexões entre humanos, artefatos técnicos, dispositivos de ação e de pensamento[8]

Por esse motivo, escapamos do dualismo de uma exterioridade absoluta e de uma interioridade unificada, uma vez que, a partir desse conceito, percebemos a subjetivação enquanto processo que constrói um dentro que é a dobra do fora. Não é mais uma oposição entre interior e exterior: a subjetivação como dobra concebe a transformação do ser humano em várias (e variadas) formas de sujeito – sujeitos de suas próprias práticas – mas sem abandonar as dimensões dos coletivos sociotécnicos ou da historicidade. A partir daí surgem as singularidades, uma vez que a noção reconhece possibilidades de criação, assim como transformação. Dessa forma, percebe-se o sujeito como obra em construção, numa reflexão que não polariza nem as tecnologias, nem os próprios sujeitos.

De acordo com Santaella, a partir da derrocada do conceito de sujeito na contemporaneidade, percebe-se uma emergência das questões que dizem respeito ao corpo. Esse sujeito, que a filosofia tanto tentou colocar no lugar de criaturas da razão, negando, na verdade, o que ele teria de “criatura”, aparece hoje ofuscado por uma gama de inquietações, como apresentamos acima, que têm por prioridade pensar a subjetividade em seu detrimento e, invariavelmente, o corpo. Para a autora, que cita nessa formulação, existem três sentidos do corpo nós somos nosso corpo pelo modo como a fenomenologia compreende nosso ser no mundo emotivo, perceptível e móvel. Esse é o primeiro sentido. No segundo, somos corpos no sentido social e cultural, algo que experienciamos a partir de valores relativos ao corpo que são culturalmente construídos. Atravessando tanto o primeiro quanto o segundo sentido, há uma terceira dimensão: a das relações tecnológicas, das simbioses entre o corpo e as tecnologias[9]

A autora alerta para o fato de que apesar do corpo se mostrar como esse território de tantas possibilidades, não devemos pensar que ele “voltou” para ocupar o lugar deixado pelo sujeito, e sim aparece como um problema e deve ser olhado como tal. Ao apontar os processos que tiveram início na Revolução Industrial, principalmente através das próteses mecânicas que transformaram o corpo, Santaella aponta para o fato de que nos deparamos até mesmo com questionamentos sobre a humanidade de nossa subjetividade, uma vez que nas hibridações homem-máquina, questionamos a matéria de que somos feitos.

O que pretendemos reafirmar aqui é que sabemos, parafraseando o título da obra-referência para os pesquisadores de moda, que existe um império do efêmero e que isso atinge as discussões que circundam o corpo. Já que entendemos império como aquele tipo de poder em rede que toma todo o espaço do mundo, nossas vidas, nossa inteligência, nossa aparência, genes e tudo mais que puder ser violado, entendemos também que a existência de mecanismos de modulação da existência, e a forma como, por nossos atos e vontades, optamos por caber nos modelos – da calça 38 ao rosto jovem – nos perdemos e nem mais conseguimos localizar onde está o poder e onde estamos nós. Mas, como citamos acima, na produção de linhas de fuga, é possível vislumbrar o que há de mais rico no mundo da vida: o homem comum. Sim, é da posse do ordinário a força da invenção. E Pelbart nos demonstra isso quando afirma que o capitalismo entende essa inventividade do comum quando manda olheiros para a rua para captar o estilo das pessoas que andam por ela. E isso é crucial para repensarmos os poderes de resistência: uma potência de vida, como nos afirma o autor, reside ali. É como se houvesse uma batalha entre o que invade e essa vitalidade, potência de vida indomável, chamada por Pelbart – e vários outros autores - de “biopotência”. Tomando as palavras do autor: “o império é apenas um vampiro. Sem o sangue da multidão, ele não é nada”. E por multidão, ele nos demonstra que devemos abandonar a idéia da falta de rosto ou de uma massa sem desejo, mas tomar a idéia de diversidade, de multiplicidade, é a construção do comum, no sentido de construir junto. O que pretendemos discutir aqui é que consome-se produtos imateriais oriundos de subjetividades e moldamos a nossa de acordo com tais produtos. Contudo, ainda assim, é possível a resistência.

Se o lugar da resistência é o que nos interessa mais de perto, acreditamos na possibilidade de tratar da fabulação como potência de vida. Tomamos a discussão de Deleuze, ao apresentar os regimes da imagem, e a proposta de um ponto que é o tempo e a crise da verdade. O autor afirma que não são as épocas que determinam o que é verdade e o que não é e sim a força pura do tempo que põe a verdade em crise[10]. Deleuze afirma que Leibniz propõe uma solução para a relação entre a crise da verdade e o tempo. Determinados acontecimentos podem existir (ou acontecer) em mundos diferentes, uma vez que esses mundos são possíveis e não compossíveis. A noção de incompossibilidade é explicada por Deleuze como diferente do impossível, é apenas o incompossível que procede do possível; e o passado pode ser verdadeiro sem ser, necessariamente, verdadeiro[11]

Desta relação proposta por Leibniz resulta um novo estatuto da narração. Ela se torna falsificante, deixa de aspirar à verdade. Não é uma pulverização da verdade na “verdade de cada um” e sim a percepção desses presentes incompossíveis simultâneos. Neste movimento, a noção do verdadeiro é substituída pela potência do falso. De acordo com Deleuze o homem verídico morre, todo modelo de verdade se desmorona, em favor da nova narração (...) é Nietzsche, que substituiu, sob o nome de “vontade da potência”, pela potência do falso a forma do verdadeiro, e resolve a crise da verdade, quer resolvê-la de uma vez por todas, mas em contraposição a Leibniz, em proveito do falso e de sua potência artística, criadora...[12]

O passado não necessita ser necessariamente verdadeiro na confecção das imagens. A narração não mais se desencadeia nos princípios sensório-motores. A descrição se torna seu próprio objeto ao mesmo tempo em que se torna atemporal e falsificante. A narração falsificante quebra o sistema de julgamento, pelo fato de os elementos pararem de mudar e não exercerem uma conexão linear ou lógica. O autor escreve que há uma razão profunda para esta nova situação: contrariamente à forma do verdadeiro que é unificante e tende à identificação de uma personagem (sua descoberta ou simplesmente sua coerência) a potência do falso não é separável de uma irredutível multiplicidade. Eu é outro substitui Eu=Eu[13].

Essa potência do falso só pode existir no contraponto de outra potências. Tanto os “inocentes”, quanto os investigadores e outros personagens participam desta mesma potência do falso, em diferentes graus e momentos. Outro ponto relevante sobre a potência do falso é que, diferente dos homens verídicos que pretendem julgar á luz de valores superiores, os falsários decidem julgar a vida pelos seus próprios valores, segundo eles mesmos. Segundo Deleuze, é preciso que a personagem seja primeiro real, para afirmar a ficção como potência e não como modelo: é preciso que ela comece a fabular para se afirmar ainda mais como real, e não como fictícia. A personagem está sempre se tornando outra, então é mais separável desse devir que se confunde com um povo[14]

No entanto, mais do que pensar a idéia de fabulação nos regimes da imagem, há de se pensar a perspectiva na vida comum. Acreditamos que a fabulação na moda, e sua inevitável relação com a subjetividade criadora, residem em todos os sujeitos (a função fabuladora) que, de acordo com Guimarães, dispõem de algum meio expressivo para se atualizar. O autor explica que a fabulação criadora, entretanto, não é privilégio de gênios ou artistas; ela não se atualiza exclusivamente nesses sujeitos, mas em todos aqueles que são ultrapassados pelas forças que excedem o vivido e que passam a dispor de algum meio expressivo – escrita, voz, pedra, tinta, corpo, imagem – que permita “liberar a vida lá onde ela é prisioneira”[15]

Mas quem é esse ordinário que fabula e porque o interesse por ele? Sabemos que a promoção do anônimo, apesar de se manifestar na moda a partir da década de sessenta do século passado, é um processo que Michel de Certeau aponta como há muito anunciado. Para o autor, o anúncio dessa movimentação de derrocada do extraordinário e singular em detrimento do ordinário está presente, principalmente, na literatura, quando este aponta que é ao mesmo tempo o pesadelo ou o sonho filosófico da ironia humanista e a semelhança de referencial (uma história comum) que dá credibilidade a uma escrita contando “a todo mundo” a sua ridícula desventura. Mas quando a escrita elitista utiliza o locutor “vulgar” como o travesti de uma metalinguagem sobre si mesma, deixa igualmente transparecer aquilo que a desloca de seu privilégio e a aspira fora de si: um Outro que não é mais um deus ou a musa, mas o anônimo. O extravio da escrita fora do seu lugar próprio é traçado por esse homem ordinário, metáfora e deriva da dúvida que a habita, fantasma de sua “vaidade”, figura enigmática da relação que ela mantém com todo o mundo, com a perda de sua isenção e com sua morte.[16]

Dessa forma, o discurso vulgar, que para o autor pode tornar-se uma forma de olhar, não encontra sua voz no perito ou no filósofo (uma vez que ele é indizível por ambos) e sim em uma outra forma de perceber a construção do conhecimento. De acordo com César Guimarães, desde há muito, a vida ordinária, comum a todos os homens, tem sofrido menosprezo – quando não o desprezo soberano – daqueles filósofos que nela enxergaram apenas o predomínio da opinião (doxa), guiados por um modelo de conhecimento que exige que a ascese e a ascensão do mundo enganoso das aparências sensíveis rumo ao universo imutável das idéias ou à abstração altaneira dos conceitos.[17]

Para Guimarães, a vida ordinária, por esse caráter inexperimentável, necessita de um deslocamento para que possamos tentar compreendê-la. Partindo do campo das ciências sociais e humanas, sugere que podemos fazer outra coisa, servindo-nos dos quadros conceituais e dos procedimentos metodológicos dessas mesmas ciências: procurar compreender como a experiência se apresenta no discurso das mídias – do jornalismo ao entretenimento – em sua ânsia de nos oferecer diariamente a crônica do atual, seja sob o modo de uma etnografia involuntária do insignificante (como em tantos programas dedicados ao seu comportamento e às preferências de qualquer um, eleito momentaneamente star do banal), seja sob o modo da exibição dos horrores e das crueldades de todas as ordens (das guerras aos crimes hediondos e comuns, dos atentados às catástrofes naturais...).[18]

Gostaríamos de pontuar, também, que a presença desse ordinário na mídia tem uma relação muito próxima com a estetização do cotidiano, que Lipovetsky (1989) relaciona com a moda. O autor diz que essa estetização afeta o comportamento do consumidor na medida que este não mais releva somente a funcionalidade do produto, mas também os símbolos que induzem à identificação e indicam o pertencimento a um grupo. Essa necessidade de pertencimento proporcionou (e também foi proporcionada por) uma novidade na moda, a partir, principalmente, dos anos 60: a rua, os movimentos juvenis, enfim, a efervescência do mundo da vida tornou-se a inspiração para a criação de tendências[19]De acordo com Featherstone, é possível apontar três sentidos para a estetização da vida cotidiana. O primeiro está ligado às subculturas artísticas do início do século XX e ao apagamento das fronteiras que separam a vida da obra de arte. Neste momento, acreditamos que é necessário pontuar um artista específico e sua relação intrínseca com a moda: Gustav Klimt. O pintor das mulheres preocupa-se com a “tríplice unidade”, união de arte, reforma e moda. E contribui mais ainda para a estetização do cotidiano: em 1906, quando fotografa Emilie Frogue ao ar livre, podendo ser considerado o primeiro fotógrafo de moda da história, antes mesmo de Adolphe de Meyer, que fotografa para Vogue e Vanity Fair somente em 1914. Já o segundo se encontra no projeto de transformar a vida em obra de arte através dessa estetização. De acordo com o autor, a procura de uma superioridade especial mediante a construção de um estilo de vida exemplar e sem concessões, no qual uma aristocracia de espírito se manifestava no desprezo às massas e na preocupação heróica com a realização da originalidade e superioridade no vestuário, na conduta, nos hábitos pessoais e até no mobiliário – o que chamamos agora de estilo de vida[i].

O terceiro sentido encontra-se, principalmente, nos fenômenos da contemporaneidade e é definido por Featherstone como o fluxo veloz de signos e imagens que saturam a trama da vida cotidiana na sociedade contemporânea[ii]. Essa saturação tem por princípio a construção e manutenção de desejos, seja ele por bens materiais, seja por simbólicos. E é exatamente nessas imagens criadoras de desejo que se encontram tanto o fenômeno da moda quanto o videoclipe como lugar de aparecimento privilegiado dessa estetização. Para Featherstone, o ritmo acelerado da moda intensifica nossa consciência temporal, e nosso prazer simultâneo com o novo e com o antiquado nos dá uma forte noção do tempo presente. As modas em mutação e as exposições mundiais assinalam a perturbadora pluralidade de estilos na vida moderna o olhar que pretendemos dar à questão diz respeito às essas referências da rua, quando esse ordinário vira objeto de desejo da moda. Poderíamos pensar na fabulação do estilista, quando cria mundos particulares e, através de seus dispositivos, cria mundos possíveis, NÃO EM UMA ASPIRAÇÃO DE VERDADE, MAS DE POTENCIALIDADE. Ou mesmo do consumidor, quando este, ao vestir a roupa e articular o discurso dessas peças com os discursos de seu corpo e ainda com a sua subjetividade e, ADENTRA MUNDOS AOS QUAIS , ATÉ ENTÃO, NÃO TINHA PERMISSÃO PARA ENTRAR. No entanto, o que nos chama atenção de uma forma particular é a possibilidade de fabulação dos sujeitos narrados nas coleções. Sabemos que, boa parte das vezes, eles não são ao menos escutados, mas, impelidos pelo seguinte questionamento de Guimarães o que acontece, porém, quando a “fabulação dos pobres” traz consigo não uma lenda ou um animal mítico, mas a vida cotidiana, com seus pequenos enfrentamentos, suas ambições e desejos, sua cota de invenção (mínima mas imprescindível) sua reserva de resistência em meio apenas não ao banal, mas à violência e crueldade desumanizantes?

Tentamos perceber a possibilidade de fabular o narrado no trabalho de um estilista em particular: Ronaldo Fraga. Acreditamos que, em relação às questões levantadas, o lugar de aparição privilegiada de possíveis cintilações para nossas inquietações é a moda produzida por esse estilista que, desde 1996, quando lançou a coleção intitulada “Eu amo coração de galinha”, propõe uma outra percepção das roupas.

Se olharmos para suas 20 coleções, podemos perceber que o ordinário ganha uma importância enorme. É claro que estamos falando de imagens estetizadas desse ordinário, mas que ganham uma estetização diferenciada daquela que estamos acostumados a consumir nas imagens da moda. Em primeiro lugar, podemos ressaltar o desafio proposto pelo estilista: dar alma a um produto. Sabemos, como pesquisadores e como consumidores, que boa parte das coleções, como dissemos anteriormente, são referenciadas em algum aspecto do cotidiano, mas que atingem um nível de estetização que quase impossibilita a compreensão daqueles elementos que se configuraram como inspiração (mas que, quando pensadas como fabulação do estilista, tornam-se o mundo possível criado por ele).

Para o estilista, a moda seria um dos vetores responsáveis na criação de um suposto “tom do século”. Como pudemos perceber ao longo da história, é, geralmente, nos primeiro vinte anos que ocorre uma tentativa desenfreada de propor uma nova cara para tudo, ao mesmo tempo em que não se sabe o que fazer com aquilo que passou. Nessa perspectiva, Fraga pensa em trazer de forma nova as velhas coisas. Esses dois pontos são férteis para pensarmos a moda: se ela pode refletir o zeigeist, na verdade, estetizá-lo, uma vez que ele não significa necessariamente, neste ponto do século XXI que nos encontramos, uma grande novidade e sim, e esse é o outro ponto, um amontoado de coisas ditas velhas. E que o seriam essas coisas velhas senão algo da nossa subjetividade, mas algo que compartilhamos com os outros, seja o lugar da família, seja a aflição em relação a tempos tão violentos?

Pensemos em duas coleções específicas: Cordeiro de Deus (verão 2002/2003) e Costela de Adão (verão 2003/2004). Na primeira, a inspiração era a visita, no dia de domingo, nas penitenciárias. A coleção foi bordada por detentos da penitenciária Geraldo Alckmin, localizada em Belo Horizonte. Já a segunda utiliza como temática a cerâmica do vale do Jequitinhonha. Em ambas, percebemos a presença do homem comum, ordinário, como tema central de inspiração. No entanto, esse comum, que transita pelo nosso cotidiano, não diz respeito exatamente às coisas que gostaríamos de enxergar e sim àqueles sujeitos que, apesar do telejornal escancará-lo, na forma de imagem, na nossa sala de estar, preferimos ter contato ou consumir somente como parte de um cabedal de tudo aquilo que se propõe, diariamente, à nossa retina. Como afirma Bauman, “na tele-cidade, os outros aparecem somente como objetos de gozo, sem que nenhum laço os prenda (podem ser eliminados da tela – e assim lançados para fora do mundo – quando pararem de divertir)”.[20] No entanto, quando nos deparamos com coleções desse tipo, tanto no lugar da produção, quanto do consumo, esse Outro, que aparece estetizado, ganha aí sua capacidade de fabular sobre seus mundos e suas verdades e, quando ganha os corpos dos consumidores, dá a permissão para adentramos em seu mundo. De acordo com Deleuze, a fabulação não é um mito impessoal, mas também não é ficção pessoal: é uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca pára de atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política, e produz, ela própria, enunciados coletivos[21].

Essa possibilidade de fabular, de acordo com o estilista, é dada a esse Outro durante o processo de pesquisa e produção e da produção da coleção. No caso da Costela de Adão, por exemplo, a imagem que constitui do Jequitinhonha surgiu do abandono da relação das cores que, a priori, nos remetem à pobreza do solo, para a transformação dessa escala do pantone, na sua mistura com cores mais abertas, em uma referência ao um universo não somente do artesanato do local, mas nas possibilidades de transformar o árido em fértil (nesse caso, a fabulação do estilista). Esse tratamento foi um pedido dos moradores do local, que cansaram de se ver associados à pobreza do vale. Esse é o momento da fabulação desse sujeito, que deseja criar ali, não somente um universo falso, mas uma leitura do próprio mundo no qual ele deseja ser sujeito e não somente objeto. O que está em jogo não é apenas a verdade de Fraga e as articulações de sua subjetividade e sim, como nos aponta Deleuze ao comentar o lugar da fabulação no documentário, é a função de fabulação dos pobres, na medida que dá ao falso a potência que faz deste uma memória, uma lenda, um monstro[22]. O que deve ser apreendido é exatamente este devir da personagem em detrimento de uma identidade (no caso, a identidade da dura exclusão social).

No caso da coleção Cordeiro de Deus, assim como em Costela de Adão, o universo criado pelo estilista também se difere completamente daquelas imagens estereotipadas, todos que conhecemos, dos presídios e presidiários. A personagem principal é um presidiário fictício, Jesus da Silva Santos, que habita um mundo possível dos pequenos detalhes do cotidiano da prisão, nesse caso humanizados (e sim, claro, estetizados), mas em uma tentativa de construir um universo que não correspondesse exatamente ao típico, mas ao olhar de quem, também durante o processo pesquisa, mostrou que também ali é um espaço de vida. A trilha, diferente do óbvio, foi composta de temas religiosos e os modelos desfilavam em um passo de quem não tem pressa, no tempo mesmo da prisão, aquele que não passa e se configura de uma forma bem diferente da qual estamos acostumados. Nas roupas, o rosa e o verde, nos tecidos rústicos e nobres, eram suporte para estampas (bordadas, como dissemos, pelos presidiários) que passavam de temas religiosos a números nas costa, assim como inscrições como “amor de mãe”. Aquilo que é árido, pela fabulação do estilista, ganhou contornos de luxo . No entanto, não devemos, nem podemos, esquecer que a fabulação de Fraga nasce da fabulação do próprio detento sobre seu mundo, sua realidade.

Sabemos que essa aparição em um universo como o da moda, em nada contribui para a retirada dessas pessoas da aridez do Jequitinhonha ou traz esperança para os detentos de um sistema carcerário mais justo. No entanto, nos mundos possíveis que estas pessoas constroem, ao deixar-se estilizar e ao dar-se de uma forma diferenciada ao olhar daquele que tem sobre ele um discurso tão pré-fabricado, tão cheio de certezas, abre espaço para a humanização daquilo que conhecemos em uma de suas possibilidade e, como nos aponta César Guimarães, deixa ver o maravilhoso no ordinário.

Finalmente, o corpo do consumidor

Além de abrir espaço para a fabulação (nas suas várias possibilidades), a moda, como já comentamos, pode ser pensada como possibilidade de materializar os vários vetores que constituem a subjetividade contemporânea. A afirmação pode soar simplista, ou até mesmo óbvia, mas gostaríamos de ressaltar que, nessa materialização, podemos adentrar mundos aos quais não teríamos, antes, possibilidade. Uma vez que a moda trabalha com jogos de aparência, e esses jogos têm como lugar o corpo, as potencialidades da subjetividade e os desejos referentes ao que se gostaria de ser encontram ali seu território privilegiado de aparecimento. É nas vaidades que ensaiamos o nosso lugar dentro daquilo que nos escorrega pelos dedos, na vastidão das imagens. É aparência de hoje, que diz respeito a um, a de amanhã, que carrega o outro, que, nas suas semelhanças e diferenças, nos dá uma pequena idéia de pertencimento, de possibilidade, de conhecedor, de quem vai, pelo duro e cinza da cidade, entornando o pouco de poesia que nos resta no chão.

Bibliografia

BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
DELEUZE, Gilles. A imagem tempo. Brasília: Ed. Brasiliense 1990
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Livros Studio Nobel, 1995.
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Livros Studio Nobel, 1995
GUATTARI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: 34, 1992
GUIMARÃES, César. O rosto do outro in Catálogo forumdoc.bh..2000
LIPOVETSKY, Gilles e ROUX, Elyette. O luxo eterno da idade do sagrado ao tempo das marcas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
PELBART, Peter Pal. A Vertigem por um Fio: Políticas da Subjetividade Contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2000.
SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação: sintoma da cultura. São Paulo: Paulus, 2004


[1] Mestre e doutoranda pelo Programa de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
[2]PELBART, Peter Pal. A Vertigem por um Fio: Políticas da Subjetividade Contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2000. p. 15
[3] GUATTARI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. p. 19
[4] PELBART, 12
[5] GUATTARI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed 34, 1992. p. 11
[6] GUATTARI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. p. 14
[7] PELBART, Peter Pál. A vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea. p. 14[8] SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação: sintoma da cultura. São Paulo: Paulus, 2004. p.10
[9] SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação: sintoma da cultura P10
[10] DELEUZE, Gilles. A imagem tempo. Brasília: Ed. Brasiliense 1990 P.159
[11] DELEUZE, Gilles. A imagem tempo. Brasília: Ed. Brasiliense 1990 P.160
[12] DELEUZE, Gilles. A imagem tempo. Brasília: Ed. Brasiliense 1990. P.161
[13] DELEUZE, Gilles. A imagem tempo. Brasília: Ed. Brasiliense 1990 P.163
[14] DELEUZE, Gilles. A imagem tempo. Brasília: Ed. Brasiliense 1990 P.185
[15] GUIMARÃES, César. O rosto do outro in Catálogo forumdoc.bh..2000 p. 30
[16] CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. p.61
[17] GUIMARÃES, CÉSAR. A experiência ordinária. p. 1
[18] GUIMARÃES, CÉSAR. A experiência ordinária. p. 2
[19] Até o início de século XX, as tendências da moda duravam cerca de 10 anos. Foram as mudanças proporcionadas pela tecnologia que instauram um novo tempo também para a moda. E nessa movimentação, prevê-se a existência de uma elite, apontada por Garcia (2002) como os “criadores, divulgadores e primeiros usuários, localizados nas camadas mais privilegiadas da estrutura de classes sociais”, que definem aquilo que é bom durante um determinado tempo. E esse “bom”, deriva, invariavelmente, de feiras e grandes indústrias têxteis que definem o tecido (e, por conseguinte, a cor) da estação de acordo com as “sobras” da estação passada, ou as novidades que desejam lançar.
[20] BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna, p. 204.
[21] DELEUZE, Gilles. A imagem tempo. Brasília: Ed. Brasiliense 1990 p.264
[22] DELEUZE, Gilles. A imagem tempo. p.183
[i] FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Livros Studio Nobel, 1995. p100
[ii]FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. p. 100

Carla Maria Camargos Mendonça
Mestre e doutoranda pelo Programa de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG