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O jornal propicia o esquecimento. Ao mesmo tempo que oferece a experiência de choque com o terror da catástrofe a que nos expõe diariamente, sua linguagem induz ao esquecimento, a uma passagem rápida sobre o que nos é apresentado como fait-divers . Mas aqui o processo é outro. A artista transforma, com seus gestos, esses papéis numa topologia, um lugar em que algo acontece.
"DiĆ”rios PĆŗblicos" - Figura 1
Os jornais passam por um processo lento, que dura meses, em que são descascados, expostos ao sol, dobrados e carimbados. Uma operação delicada é, no entanto, uma intervenção que expõe certas questões urgentes como feridas abertas. O que lembrar e o que esquecer? E ainda, obriga os jornais a durarem, a sofrerem a ação do tempo e a se conservarem, transformados.
As notícias ficam latentes – as letras, raspada sua tinta e a das imagens, permanecem como sombra . Na primeira série, desse cinza, pela exposição ao sol, ficam algumas imagens amareladas. No primeiro trabalho (Fig.1), a sombra de um coração sobra de todas as intervenções e acima dele, a foto de um grupo de rapazes negros num banco de rua. No segundo (Fig.2), a foto de um menino de rua, enrolado num cobertor. No terceiro (Fig.3), um corpo estendido no chão, com o nome Carlo (lembrando Gênova, 2001) e no quarto (Fig.4), rapazes mascarados de um motim da Febem apelam ao não esquecimento do que é cena cotidiana das ruas. A essas imagens foi carimbado como manchete o verso em vermelho de Paul Celan: “para ninguém e nada estar”, que fala, pela negação, duplamente, do exílio do artista e do abandono da vida nua sem dimensão política, apresentada nas fotos. E da violência anônima e quotidiana sobre essa vida nua, “uma vida que não merece ser vivida.”
"DiĆ”rios PĆŗblicos" - Figura 2
A linguagem da comunicação é raspada, neutralizada e a linguagem da poesia toma lugar. Renasce de um não. Uma utopia? No entanto, esse verso é vermelho, também ferida.
Fica visível com essas imagens amareladas pela luz natural, à qual a folha do jornal é exposta por meses, o estado de exceção que se tornou a regra. Como numa decantação, vem à tona o real. O campo, não só como história, mas como condição inumana atual se torna presente na cidade, em que os cidadãos se transformaram em puros corpos biológicos, abandonados a uma violência mais eficaz porque anônima e quotidiana. É dessa perspectiva do campo, como a entende Agamben[1], que se trata nessas imagens de vida nua, em que público e privado se confundem. Os corpos negros marginalizados trazem à memória a escravidão não resolvida com a abolição, que continua de uma outra forma pela fabricação massiva da miséria, com a industrialização do país. Progresso e destruição caminham juntos. O estado de exceção, que “atingiu hoje seu máximo desdobramento planetário” é o resultado de um crescimento ilimitado da atividade industrial. A acumulação desenfreada gera um excedente que tem de ser despendido ou explode em guerra. É portanto do lado da produção exuberante que vem o conflito armado em que se volatilizam riquezas fabulosas. Bataille[2] afirma que é necessário dar ao crescimento de energia produtora outro fim que não o guerreiro e criar uma paz dinâmica. Com isso defendeu o Plano Marshall por promover uma repartição menos desigual dos recursos e uma circulação de riquezas. Todo sistema que dispõe de uma certa quantidade de energia deve despendê-la.
"DiĆ”rios PĆŗblicos" - Figura 3
Aqui o jornal, que é lido como oração matinal do homem moderno, é profanado, enquanto produto do Estado espetacular integrado (Debord), lhe é dado um uso que não é o comum. A mercadoria do mundo do espetáculo, do qual faz parte, é violentada., se transforma em ruína e outros sentidos têm lugar, são como que liberados.
A linguagem reportagem fica na sombra, seu barulho é parcialmente silenciado e sobre ela cintilam outras palavras que aparecem nas dobras, compondo um ritmo como pautas musicais, ora vazias, ora com uma ou outra palavra que sobrou, resíduos. Em outra série, o campo é relembrado pelas frases de Marguerite Duras, em Hiroshima meu amor (Fig.4), escritas em francês, num vermelho gritante. Trazem também a questão do nome, pensada por Benjamin. Guerra, amor e linguagem convivem e tensionam: são carimbadas frases em francês como, “Je n’ai plus qu’une seule mémoire, ton nom”. As páginas dobradas agora transbordam de sentidos nesse suporte que, se nas vanguardas como colagem se sobrepunha à tela, agora virou a própria tela onde algo tem lugar, numa nova aliança entre pensamento e poesia. O coração, que sobrara meio apagado na primeira imagem fala do excesso, tumulto, energia matriz de tudo.
Outra série tem mais cor, os diários de Ana Cristina César são convocados num verso que fala da memória: Eu era menina e já escrevia memórias, envelhecida. (Fig.5)
"DiĆ”rios PĆŗblicos" - Figura 4
Todo o trabalho da artista com o jornal vai no sentido de silenciar a tagarelice e dar forma a esse não comunicável. E citando Schiller com Benjamin[3], ela atualiza o que dizia o filósofo alemão nas Cartas sobre a educação estética: o verdadeiro segredo do artista consiste em destruir a matéria pela forma. Aqui se trata de uma destruição da matéria jornal, que vai se descamando e se transformando pelas dobras numa pauta musical. E destruição da linguagem reportagem, a que se referia Mallarmé, numa tentativa de recuperar a faculdade de nomeação. Várias línguas estão presentes, o português, o francês de Duras e o espanhol de Borges. A tensão entre memória e esquecimento se dá nas frases de Funes, o memorioso, dispersas nessas pautas de um dos trabalhos: Mi sueños son como la vigilia de ustedes. Em outro, é a palavra esquecer carimbada entre vazios. E a idéia do carimbo, que substitui o manuscrito, mantém criticamente a mecanização da escrita, a contenção do gesto. O carimbo em nossa recente história da arte foi usada num momento de repressão política por Carmela Gross, que carimbava a pincelada.
O jornal não é mais coisa com finalidade utilitária, mas se tornou objeto poético, finalidade sem fim. Tornou-se de novo o excesso de onde tudo provém, anunciado na primeira imagem pelo coração esmaecido que diz do tumulto, da energia que somos, que se prodigaliza sem razão nesses gestos movidos pelo desejo que se tem de interferir, de fazer arte. Segundo Bataille, a energia solar que somos é uma energia que se perde, se prodigaliza sem razão. A arte é esse dispêndio sem outra razão que um desejo que se tem e com isso desfaz limites impostos pela regra do estado de exceção. Como o pensamento, é uma via negativa, que vai desfazendo o estabelecido – aqui, a ideologia, que conforma o jornal, sua informação.
Tanto Debord como Agamben pensam o Estado; o espetacular e aquele em que a exceção se tornou a regra se sobrepõem. Como fica a arte em relação à possibilidade de mudança? Schiller, também, contemporâneo da Revolução Francesa, pensa o Estado e a liberdade. E coloca como “carência nas almas refinadas”, o Estado estético, que produziria uma cultura que tornaria impossível qualquer abuso, que daria liberdade através da liberdade. Nele também o excesso, como imaginação e abundância, profusão de forças, levaria ao jogo estético, à busca de uma forma livre, à construção de uma verdadeira liberdade política.
Mas o que se vive, a partir do momento em que Bataille escreve, é a ferida aberta e o dilaceramento. Para Bataille, viver o excesso é viver a superabundância jamais controlável, é querer o impossível, sem tarefa a completar, sem função a exercer. A arte, tarefa cega, é a finalidade sem fim kantiana, que está também em Schiller, que foge ao mundo utilitário, pelo desinteresse. O conhecimento é acesso ao desconhecido. Mas esse movimento desemboca numa recusa a toda solução – o pensamento radical pós Segunda Guerra, desemboca no silêncio e na ferida, se dilacera., como o que se vê num poeta como Paul Celan, trazido pelos diários da artista. Como nestes trabalhos vermelhos de mercúrio cromo, o que se usava para curar feridas – referência num texto da artista que acompanha os jornais, a ferida não se fecha.
"DiĆ”rios PĆŗblicos" - Figura 5
Schiller, nas suas Cartas sobre a educação estética,[4] critica o espírito de negócio, pergunta onde reside a causa de ainda sermos bárbaros e afirma que o Estado continua estranho aos seus cidadãos. Para ele, deve ser suprimida a cisão entre sensibilidade e razão, para que o Estado seja modificado, e o caminho para o intelecto precisa ser aberto pelo coração – portanto a formação da sensibilidade é a necessidade mais premente da época. Embora afirme o belo como equilíbrio, diz que é apenas uma idéia que jamais pode ser alcançada pela realidade. A imaginação dá o salto em direção ao jogo estético, à busca de uma forma livre. No impulso lúdico que unifica impulso sensível e impulso formal teríamos a forma viva.
Essa forma viva alcançada pela arte pode ser a imagem dialética de Benjamin, carregada de tempo até explodir, uma representação dilacerada, o que vemos nos vazios, nos silêncios, nas fotos amareladas que tensionam com as palavras nos “Diários públicos”. O que Bataille vê, quando diz que o que procuramos é esta sombra que não saberemos apreender – a poesia, a profundidade ou a intimidade da paixão, mas que nos enganamos porque queremos prender esta sombra.
Agamben, a partir de uma nova situação européia e global, em que o campo se tornou a matriz secreta do espaço político, propõe repensar a idéias de estado, nação e território, para o que traz a figura do refugiado, e o conceito de povo. Diz que é necessário desconectar a linguagem da gramática e o povo do Estado. O conceito de soberania e poder constituinte devem ser abandonados ou totalmente repensados. A realidade que se vive é a de um estado policial supranacional.. O estado de exceção é hoje planetário: o aspecto normativo do direito pode ser eliminado e contestado por uma violência governamental que ignora o direito internacional e promove o estado de exceção permanente, ainda, no entanto, pretendendo aplicar o direito[6]. É a partir dessa zona opaca onde público e privado se confundem que devemos partir.
O que o trabalho da artista faz, interferindo no jornal, nesse produto do estado de exceção, que é também o estado espetacular integrado, denunciado por Debord. No próprio título as palavras se juntam e se embaralham intimidade e espaço público.- diários públicos, e a experiência que seus gestos tornam presente é a da linguagem. A imaginação aqui dá o salto em direção ao jogo estético, como diria Schiller, em busca de uma forma livre. Mas essa forma se retorce num dilaceramento, é crítica. Nisso encontra a noção de excesso de Bataille.
Mas, se, para Bataille, a filosofia é silêncio, recusa de toda solução; para Agamben, ela é linguagem, em que pensamento e poesia se articulam. E o pensamento que advém, como gesto em que se encontram vida e arte, tem uma potência política.
Vera Lins
Professora da Faculdade de Letras da UFRJ, pesquisadora do CNPq