Brazil: Body and Soul
/ Brasil: Corpo e Alma
Solomon R. Guggenheim Museum, Nova York
ADRIANO PEDROSA
"Brasil: Corpo e Alma" está
entre as mais caras e polêmicas exposições de museu da história recente,
e sua origem vale a pena ser examinada. A extravagância é um refinamento
da "Mostra do Redescobrimento", que em 2000 celebrou o aniversário dos 500
anos da chegada dos portugueses ao Brasil. Instalada em três edifícios de
Oscar Niemeyer espalhados no Parque do Ibirapuera em São Paulo e acompanhada
por treze catálogos, esta panorâmica enciclopédica reuniu meio milênio da
cultura brasileira—de achados arqueológicos a arte contemporânea—e atraiu
quase dois milhões de visitantes, o que para uma instituição obcecada por
números, foi certamente uma marca de sucesso. Mas houve críticos, e muitos
atacaram a emergência de uma contribuição única para o design da exposição:
‘cenários’ altamente elaborados construídos por um time de cenógrafos cuja
autoridade parecia ultrapassar a dos curadores. Assim, por exemplo, na seção
chamada ‘O Olhar Distante’, trabalhos de viajantes estrangeiros foram instalados
numa floresta de árvores azuis artificiais e banhadas por luz azul. Para
o assombro dos detratores locais, este lamentável modelo museológico logo
seria reprisado em Nova York.
De fato, os organizadores
da exposição, Associação Brasil 500 Anos de Artes Visuais (uma coalisão de
gente negócio que no ano passado se rebatizou de BrasilConnects, afinando-se
com suas aspirações globais), tinham um plano: exportar a exposição, introduzindo
o mundo aos esplendores culturais do Brasil. Seções da exposição já foram
vistas em Buenos Aires, Lisboa, Londres, Paris, entre outros, e o Museu Guggenheim
de Nova York é a parada mais importante e cobiçada. Claro que esta não é
a primeira aliança Brasil-Guggenheim. No ano passado, o curador sênior do
Guggenheim Germano Celant supervisionou a milionária representação brasileira
na Bienal de Veneza (produzida pela BrasilConnects). E, depois de dois anos
flertando com quatro cidades brasileiras, o Guggenheim recentemente se decidiu
pelo Rio de Janeiro, onde planeja construir o seu primeiro posto no terceiro
mundo, a ser projetado pelo arquiteto francês Jean Nouvel. Enquanto o diretor
Thomas Krens está determinado em agir cautelosamente no que concerne a esta
iniciativa, com o museu da parte do sul de Manhattan suspenso, o Brasil parece
ser uma prioridade para o Guggenheim.
É neste contexto—capitalismo
‘uptown’ de arte encontra arrivismo terceiro mundista—que a exposição do
Guggenheim deve ser entendida.
Os trabalhos em "Brasil: Corpo
e Alma" datam do século XVII até o presente, embora todo o século XIX tenha
sido inexplicavelmente excluído (uma omissão reconhecida pelo curador chefe
Edward Sullivan, porém não explicada no catálogo de 600 páginas). Arte e artefatos
indígenas, afro-brasileiros, modernos e contemporâneos estão todos representados,
mas os objetos religiosos—santos e anjos, artigos de procissão, elementos
de arquitetura e decoração, e ex-votos (eu contei 523 na lista de obras)—são
várias vezes superior em número a todo o resto. A peça central da exposição
é um altar do século XVIII de cinco andares, que foi desmontado de uma igreja
em São Bento de Olinda, Pernambuco, e reconstruído na Quinta Avenida. Embora
espetacular, o altar, tendo perdido sua função, perdeu seu careater significativo;
aqui ele não é nada além do que um fetiche no meio do aparato 'exotizante'
do museu. Ironicamente, o altar, como Carmen Miranda, outro ícone brasileiro,
é na verdade português (atribuído a José de Santo Antônio Vilaça, um frade
português que nunca pôs os pés na colônia). Problema adicional: a lógica
da conservação sugere que a estadia do altar no clima controlado do Guggenheim
pode comprometer a integridade de sua estrutura quando este retornar a sua
quente e úmida terra nativa.
Estrelando ao longo do altar
português está um outro estrangeiro—o próprio Nouvel, que recebeu carta branca
para transformar o museu para a ocasião. Aqui, paredes pretas melodramáticas
lembram o azul nostálgico de "O Olhar Distante". Como os cenógrafos antes
dele, Nouvel exerceu uma voz considerável a respeito da apresentação da arte,
o que só confirma da excessiva e epidêmica valorização da arquitetura espetacular
sobre a própria arte no atual circuito artístico. E agora, com a nomeação
de Nouvel como arquiteto do museu Guggenheim no Rio de Janeiro, tudo faz
sentido: "Brasil: Corpo e Alma" foi uma oportunidade para o francês mergulhar
seus pés na cultura brasileira.
Após subir a espiral banhada
em negro com numerosas jóias, adornos plumários, objetos em madeira, ouro,
e prata, finalmente encontramos evidência de nossa própria era. Uma salas
brancas contém uma seleção de trabalhos de grandes artistas do meio do século
como, Lygia Clark e Hélio Oiticica, bem como também de contemporâneos luminares
como Tunga, Adriana Varejão, Miguel Rio Branco e Ernesto Neto. (Notadamente
ausente está Cildo Meireles, que escolheu não participar deste ou de qualquer
outro projeto da BrasilConnects, em protesto a sua abordagem "simplista".)
Nunca uma arte tão boa pareceu tão ruim. As instalações pobres e periféricas
das obras modernas e contemporâneas levam a noção do "beijo da morte" do
museu a novos extremos. Que uma instituição fundada precisamente a exibir
arte "não objetiva" desconsidere de tal maneira a abstração modernista é
particularmente incompreensível no caso do Brasil, que fez contribuições substanciais
ao idioma. Artistas contemporâneos brasileiros não sofrem tanto pelo fato
de exporem regularmente em Nova York, não precisando valer-se do Guggenheim
para exposição.
Mega mostras e sucesso de
bilheteria vêm e vão, porém a imagem fragmentada e perversa do Brasil disseminada
por esta exposição levará tempo para se recompor. "Brasil: Corpo e Alma"
pode até favorecer ao turismo e investimento, mas o anunciado custo de produção
de 8 milhões de dólares pagos pelos Amigos da BrasilConnects parece um preço
alto demais, especialmente se a mostra coloca o Brasil no mapa (turístico)
mais pelo prazer do que pela cultura. Ao fim, o que mais se sente falta nesta
exposição é de inteligência. Mas por outro lado, esta exposição apenas prometia
apresentar o corpo e a alma do Brasil—espera-se que a mente do país apareça
em futuras propostas curatoriais.
Adriano Pedrosa é curador
do Museu de Arte de Pampulha, em Belo Horizonte.
Este texto foi escrito
originalmente para a www.artforum.com,
e sua tradução aparece aqui com a autorização do autor do texto e do editor
do sítio. © Artforum, March 2002, "Brazil: Body and Soul," by Adriano Pedrosa
Leia o texto
no original.
'O lugar parece um bazar
gigante. Todos nós queremos ver arte de outras culturas, mas por que do Brasil,
por que agora, e por que desta maneira incompreensível? A não ser, é claro,
que seja para adoçar a negociação com o Rio. Somando esta com a exposição
Rockwell, o Guggenheim chegou ao fundo.'
Trecho do artigo
'The Guggenheim Museum Touches Bottom, Downward Spiral', de Jerry Saltz,
no The Village Voice, Week of February 13 - 19, 2002.
Solomon R. Guggenheim
Museum
1071 Fifth Avenue (com a Rua
89)
Nova York NY EUA
1-212 423-3500
domingo a quarta, das 9h às
18h
sexta a sábado, das 9h às 20h
exposição de 19 de outubro de
2001 a 29 de maio de 2002