O lugar do juízo na arte
contemporânea
Publicado em O Nó Górdio, Número 1, Dezembro
de 2001.
LUIZ CAMILLO OSORIO
À primeira vista, pode parecer
que tomar o gosto como algo indiscutível - que cada um fique com o seu e
pronto -, seja sintoma de grande tolerância em relação à diferença. Mas creio
que o oposto seja o caso. Somente quando queremos discutir e enfrentar a
opinião alheia é que pomos à prova nossa capacidade de lidar com a diferença.
O importante é o fazer-se e o mostrar-se da discussão. Nela nós dizemos quem
somos e a que viemos. De algum modo, o gosto busca o consenso mas ele prefere,
ou melhor, ele habita o dissenso.
Ao dizer que gostamos de tal
coisa, apenas constatamos um sentimento que se dá diretamente na experiência.
O gosto não se constrói mas se constata. É algo que eu sinto subjetivamente,
sem mediação conceitual. Por outro lado, podemos dizer que criamos, individual
e culturalmente, disponibilidades para gostar. Nós constatamos o nosso gosto
mas fazemos com que ele possa acontecer de determinadas maneiras. Deve também
ser dito que o gosto, o ter gosto, não apenas o gostar disto ou daquilo,
é no fundo uma vontade de compartilhamento, de sair de si e ir ao encontro
do outro. Este é o movimento que motiva e qualifica a discussão, não importando,
a princípio, a correspondência final do outro.
Neste aspecto, tanto faz se
estamos falando de um Rembrandt ou de um pôr do sol. Nós queremos o consentimento
do outro. É claro que há graus de enfrentamento e que ninguém pressupõe que
haja unanimidade absoluta; mas isto não implica que não queiramos fazer com
que nosso gosto seja universal - que é o horizonte máximo de compartilhamento.
Há uma questão política que me diz que eu devo respeitar e tolerar quem gosta
diferente de mim, e há uma outra, propriamente filosófica, que me faz desconsiderar
esta recomendação e assumir a universalidade do meu gosto, exercitá-lo na
contenda, torná-lo público.
Nada disto existiria se o
homem fosse um ser solitário. Nem mesmo o pôr do sol! O que não existiria,
na verdade, é o olhar que o faz aparecer e nos tocar, ou seja, o fato de
nós gostarmos de ver o pôr do sol. Olhamos o mundo esteticamente conscientes
de que o nós é anterior ao eu. Não quero dizer com isto que não tenho gosto
próprio, que os outros gostam por mim, mas sim que o fato de eu gostar significa
que eu quero compartilhar com os outros. Como diz Kant, há duas máximas importantes
no juízo que falam desta passagem, ou melhor, de um lugar, entre eu e os
outros: ele diz que devemos sempre julgar por conta própria, mas nos colocando
sempre no lugar dos outros.
É bom deixar claro que não
importa se o consenso se efetiva, isto seria ridículo, mas que julgamos em
prol dele. Na verdade, o tempo é bastante amigo da disposição e dos hábitos
estéticos. A formação dos cânones - que nada mais são que consensos adquiridos
- é algo que se dá sem que haja uma intencionalidade operando este processo.
Alguém tem alguma dúvida quanto a importância de Shakespeare, Michelangelo,
Cézanne, e mesmo Duchamp? Não são eles nossos contemporâneos de um modo muito
mais forte do que os cientistas das suas respectivas épocas? Não é engraçado
que a temporalidade da arte seja tão mais generosa que a da ciência, que
é exatamente o discurso que produz a verdade objetiva?
Uma passagem de Baudelaire
relativa à Exposição Universal de 1855 é reveladora de um novo estado de
coisas em torno ao processo de julgar arte. Diante de toda a variedade presente
naquele salão - de culturas, de época, de qualidade etc. - ele vai tomar
o sentimento como fundamento da relação com a arte; diante de tantas poéticas
diferentes ele observa: “contentei-me com o sentir, voltei a buscar um refúgio
na impecável ingenuidade”. Agora, nos cabe perguntar para qualificar esta
observação: será que esta ingenuidade é desinformada? Será que este sentir
acontece sem reflexão e pensamento? Vejamos uma outra passagem do mesmo Baudelaire,
que acrescenta, logo em seguida que o belo é sempre extravagante, e pondera:
“Quero dizer que o belo sempre contém um pouco de extravagância ingênua não
deliberada e inconsciente e que essa extravagância é que o leva particularmente
a ser o belo. É sua marca, sua característica. Invertam a proposição e tentem
conceber um belo banal! Ora, como essa extravagância - necessária, incompreensível,
infinitamente variada, dependente dos meios, climas, costumes, raça, religião,
e personalidade do artista - poderá algum dia ser governada, emendada, endireitada
pelas regras utópicas concebidas num pequeno templo científico qualquer do
planeta, sem perigo de morte para a própria arte? Essa dose de extravagância
que constitui e define a individualidade, sem a qual não existe belo, desempenha
na arte (que a exatidão dessa comparação perdoe sua trivialidade) o papel
do gosto e do condimento nos pratos, já que estes só diferem um dos outros
- abstração feita de sua utilidade ou da quantidade de substâncias nutritivas
que contêm - pela idéia que apresentam à língua”. O importante aí é a idéia
que se revela à lingua, à parte do corpo que qualifica sensorialmente o que
agrada e o que desagrada. Será que ainda estamos dispostos a sentir a presença
das idéias? Não se revela aí uma relação nova entre sensibilidade e idéias
que não cabe em nossas divisões pré-concebidas de teoria e prática? Baudelaire
busca um novo método crítico que consiga conjugar a ingenuidade do mero sentir
e a reflexividade do puro pensar. Os termos faltam, as palavras escorregam,
mas o sentimento, sua atenção e significado, por variados que sejam, querem
ser compartilhados.
Estamos assim aptos a lidar
com a aparente desordem da arte contemporânea. Não me interessa a impressão,
que é real, de vale-tudo, que surge sempre que vamos, por exemplo, a uma
bienal. E daí? Não poderia ser diferente. A desorientação é que me faz querer
tornar público meu juízo, tanto do ponto de vista profissional quanto amador.
Tornar público o juízo é o modo de encontar limites e fazer distinções.
O desvio causado pela obra
de Duchamp, onde “tudo parece poder ser arte”, é um desvio em direção à origem,
onde as formas de arte são indiferenciadas e o que importa é a possibilidade
de invenção de novos sentidos. A sua aposta não é que tudo, indiferentemente,
seja arte, mas que tudo, na sua diferença, possa ser arte. E esta diferença
deve ser entendida como afirmação da liberdade e criatividade humanas.
Feitas estas ressalvas, creio
que posso afirmar que a arte moderna, ao assumir positivamente a crise de
uma tradição deixada sem testamento, em outras palavras, aceitando o fato
de que tudo pode ser arte, sublinhou que só julgando cada obra na sua particularidade
podemos decidir por sua validade; e que esta decisão é muito mais um processo
coletivo, que se dá no interior de uma cultura e de uma geração de juízes,
do que um ato deliberado por um único indivíduo ou crítico. Deste modo, é
exatamente por tudo aparentemente poder ser arte que temos mais do que nunca
que por à prova o nosso gosto, acreditando que ele traz consigo não um horizonte
consensual, mas uma aposta renovada na possibilidade de encontrar novos significados
para o que sentimos e não temos ainda um vocabulário formado. Para terminar
eu citaria uma frase do sociólogo polonês Zigmunt Bauman, que diz o seguinte:
“Só se pode acreditar no futuro dotando o passado da autoridade que o presente
é obrigado a obedecer. Não sendo isso verdade, só resta aos artistas uma
possibilidade: a de experimentar” , e a nós, julgar, apostando na liberdade
e na criatividade como fundamentos de nosso ser no mundo.
Luiz Camillo Osorio
Julho 2000
Isto é Arte?
Estruturado a partir de onze
perguntas freqüentes sobre arte, apresenta os conceitos e critérios que permitem
entender e apreciar as proposições dos artistas contemporâneos.
Itaú Cultural