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maio 2007
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Lançamento do primeiro volume do documenta 12 magazines, Viena
"Identificada", de Luciana Camuzzo "É a Modernidade nossa Antigüidade", por Guilherme Bueno / Revista Arte&Ensaios "Exilio", de Jaime Lauriano "Inimigos", de Gil Vicente Daniela Labra, Paulo Climachauska e Regina Vater respondem: "É a Modernidade nossa Antigüidade?" "É a Modernidade nossa Antigüidade?", fotografias por Sami Hassan Mesa-redonda com Georg Schöllhammer no Goethe-Institut, São Paulo "Con el alma en un hilo", trabalho de Karin Lambrecht "Vendo voto", registro de incidência pública no Rio de Janeiro |
fevereiro 16, 2007Lançamento do primeiro volume do documenta 12 magazines, Viena26 de fevereiro, segunda-feira, 17h Association of Visual Artists Vienna Secession Contando com a presença do diretor artístico Roger Buergel e de Georg Schöllhammer, editor-chefe do projeto, o primeiro volume do documenta 12 magazines será lançado no dia 26, em Viena. Sob o título "Modernidade?", o magazine apresenta uma seleção de contribuições enviadas por mais de 90 publicações de arte, cultura e teoria de todo o mundo. Editado em inglês e alemão, o volume será apresentado numa coletiva de imprensa seguida de coquetel, e poderá ser encontrado para venda em livrarias especializadas ou através dos sítios da documenta e da editora Taschen.
Posted by Leandro de Paula at 7:33 AM
outubro 25, 2006"Identificada", de Luciana CamuzzoIdentificada", adesivo vinílico e lápis de cor sobre formulário para carteira de identidade. Luciana Camuzzo Artista plástica, trabalha com apropriações e proposições em arte pública, realizadas predominantemente em São Paulo e Piracicaba (SP). Atualmente, participa do Projeto de Residência Artística Atelier Amarelo, da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo.
Posted by Leandro de Paula at 11:41 AM
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outubro 20, 2006"É a Modernidade nossa Antigüidade", por Guilherme Bueno / Revista Arte&Ensaios"É a Modernidade nossa Antigüidade", por Guilherme Bueno / Revista Arte & Ensaios ... e é Atenas que queremos Sim, ou pelo menos em um certo sentido parece que concedemos àquilo que chamamos de modernidade atuar para nós o papel de ser nossa Antigüidade. Dizer isso significaria, por um lado, atribuir-lhe o estatuto de antecessor de nossa errática condição, o que a condenaria ao historicismo. Entretanto, por outro, é o dúbio valor operativo por ela exercido em relação à História - ao instituir discursivamente o que lhe precedera e a constatar a derrisão do mesmo rumo a um estado de deriva presente - que a inscreve na fronteira de construção positiva de um local para o sujeito e a negatividade intrínseca à relativa perda sofrida principalmente no Pós-Guerra. A Antigüidade exerceria junto à cultura moderna o valor de exemplaridade necessária a um mundo secularizado. Sua virtude seria a de fornecer modelos de subjetividade e um espelho de economia existencial para um mundo que categoricamente não conseguiria mais demonstrar sua razão final em uma procissão rumo aos céus. Para além - ou junto - do sentimento arqueológico, ela é a base de construção do sujeito histórico, isto é, aquele fundamentado no parâmetro das ações e experiências exclusivamente humanas, segundo o qual é possível e razoável o constituir-se do indivíduo e sua sociabilidade. O anseio nostálgico de restituir uma essência, uma verdade intrínseca localizável tão somente na pesquisa arqueológica / histórica (e não seria descabido aqui relembrar a tensão com que estes dois termos defrontam-se reciprocamente na ótica positivista de descortinar a "realidade dos fatos"), de recuperar em alguma instância elementos de um mundo perdido, mais uma vez redivivo no anseio de (auto-)descoberta, conduziria freqüentemente ao olhar do mundo antigo como, mais do que evocação, a aferição de possibilidades cabíveis e de referenciais singulares e coletivos após a ruptura com o firmamento, exemplarmente sentida na decapitação do representante terreno do Direito Divino. Se as sensações não conduzem mais diretamente a Deus, qual o lugar a partir de então conferido a elas? Que razão de ser urge encontrar para um sistema produtivo (no qual a arte participa) desamparado de sua antiga lógica e pirâmide hierárquica? Ainda que esta crise permaneça irresoluta em suas diversas modalidades, olhar para os "antigos" (grosso modo, uma invenção, uma ficção acerca da Grécia e de Roma) subentendia a crença de localizar um paradigma de experiência constitutiva, a história é uma espécie de "romance de formação". É digno de menção observar que tanto boa parte daquilo que hoje reconhecemos ser os mais significativos empreendimentos modernos, assim como as suas versões corrompidas (o academicismo), recorreram ao expediente do parentesco histórico tomado por baliza de sua verdade irrecusável. Da leitura dos versos homéricos feita por Goethe nas praias da Sicília ao "Juramento dos Horácios" ou a morte de Byron em combate, calcula-se uma contigüidade devotada a tornar a visão do passado em Estética Historicamente Demonstrada do presente. Feito um salto temporal destas considerações gerais para alguns casos do século 20, seria justamente no âmbito discursivo que a Antigüidade será reivindicada como imagem (literalmente) legitimadora de certas investigações das vanguardas construtivas. Há simultaneamente a recusa de seus repertórios ou sentimentos externos (sob o signo da refuta à cultura oficial) e a enquête por sua essência, vista como um fluxo contínuo que deságua, por exemplo, na Ville Savoye. Esta reinvenção atualizada da Antigüidade estaria nos livros de Le Corbusier, com seus traçados reguladores perscrutando um idioma comum entre ele e o Parthenon; nos escritos de Van Doesburg, nos quais uma polaridade recíproca (e paradoxalmente progressiva) atravessa a arte do Antigo Egito até Mondrian; no pintor holandês, em seu vislumbre de um museu cujas salas se sucederiam até as obras neoplasticistas; e, mesmo - ainda que mudada a modulação - com Gropius e a metáfora da catedral aplicada à Bauhaus, que fermentará entre diversos historiadores de arquitetura entre os anos 10 e 40 como cumplicidade secreta e profunda entre a Antigüidade, o Gótico e os arranha-céus, que, em última instância, pronunciariam demonstrativamente com clareza o que seria arte. Outros exemplos podem ser buscados indefinidamente na historiografia e crítica modernas, seja na suposição de uma "psicologia mediterrânea" em Matisse, na "fase neoclássica" de Picasso, etc., etc., etc... Mais importante assinalar neste caso o elo aparentemente incorruptível demarcado nesta estratégia, a saber, o compromisso triádico entre forma, história e projeto como plataforma das agendas modernas (não menos curioso assinalar que todas usam a forma como instrumento de ultrapassagem em direção ao sublime). O projeto é a construção da história tomada por um sujeito que se entende por ator. A história é demonstrada pela forma: a um só tempo ela testemunha uma universalidade sensorial, dispõe um mecanismo de ação e recupera a seu favor um legado até então monopolizado pelo reacionarismo. A questão que se colocaria desde o Pós-Guerra, em sua dimensão mais ampla na constatação do novo e multiplicado desastre bélico (no campo da arte, na incompletude ou bloqueio das investigações do Entre-Guerras), radicalizar-se-ia nos anos 60 justamente na emergência de determinados recalques operados pelo império da forma sensível. Em outras palavras, a "redescoberta" de Marcel Duchamp e do dadaísmo permitira recolocarmos até mesmo a pergunta inicial de mote: é a arte nossa Antigüidade? O ready made, dentre muitos outros problemas lançados, incidia na opacidade e na intencionalidade da sensação desinteressada, deixando em suspenso o aparato calculado ao redor da experiência estética da forma, menos construtiva do que construída. Seria a implosão da forma a implosão da história? Em primeiro lugar, seria um equívoco expurgarmos a forma e a experiência sensorial, sob o risco de incorrermos em novas teleologias e positivismos unívocos. Até mesmo porque se testemunhou mais de uma vez nas poéticas "pós"-modernas que a sensorialidade pode se manifestar independente da forma e vice-versa. O que se abdicou foi a hegemonia estabelecida na aliança entre ambas durante a vigência de um determinado modelo formalista, erigido em um arco de aproximadamente cem anos. Talvez seja preferível dizer que o reino da estética se tornou um principado, isto é, a arte não é mais coercível a um procedimento único de consecução ou de diálogo, fato que, exatamente por sua dificuldade de abordagem, o torna no mesmo passo instigante e vital. É provável que hoje, assim como há pelo menos 150, 170 anos, não saibamos e saibamos muito bem o que é arte, com, suponho, a dificuldade adicional de especularmos por onde ensaiaremos conciliar interesses tão díspares, e, ao mesmo tempo, tão convictos. É neste ponto que me parece possível retomar o tom da pergunta inicial: a modernidade é (seria) nossa Antigüidade porque, logo de início, pensada a condição de "pós"-modernidade em que vivemos, a modernidade exerce uma função indicial, obviamente diferente, mas análoga em seu papel emblemático àquele atribuído à Antigüidade na alvorada da cultura moderna. Não se deve colocar este ponto com o mesmo teor de "nostalgia" exercido outrora pela Antigüidade, conquanto a sua ausência seja a todo instante denunciada, demarcada perceptivel e enfaticamente. A presença fantasmagórica da modernidade em nossos dias transparece o sentimento de perda a ser enfrentado. Qual seria este? Pode-se cogita-lo sendo a melancolia crítica diante da incompletude de sua premissa projetual. Igualmente, o destronar de uma unidade reconfortante garantida pela tríade estética-forma-história. A meu ver, a estas duas soma-se um terceiro vão, aquele da indagação de uma decorrente condição de "pós-historicidade" da arte. Em outras palavras, não é a retirada da arte da história, outrossim, de, cogitada a insuficiência desta como mecanismo consolidador de sua coisificação no mundo e da comprovação assegurada de sua pertinência produtiva (o "fim da História da Arte" seria uma de suas variantes), quais patamares podem regular um idioma comum pelo qual se consigne a experiência e o campo que ainda hoje delimitamos e insistimos chamar de "arte". Após a irônica (e corrosiva) realização integral da promesse de bonheur na obra de Warhol, a possibilidade de transformação estética, ética e existencial ambicionada pelas vanguardas construtivistas não se tornou outra coisa senão um sentimento arqueológico - classificável e apreensível hoje como apenas mais um simulacro. Com a desvantagem, nesse caso, de ser histórico. Haveria outro signo mais elucidativo deste desamparo incontornável (ainda que em nenhum momento trágico) do que a presença imagética das arquiteturas de Mies van der Rohe nas fotos de Thomas Ruff? Não teria a arquitetura moderna se tornado um emblema de um mundo perdido (interessa-nos retoma-lo?) exatamente no momento de sua reconversão em imagem, do mesmo modo que a geração do arquiteto alemão fizera uso propositado da obra de Calícrates, Ictínos e Fídias ou, avançando no tempo, de Nôtre Dame de Paris? Em outro caso, o que é o esquilo suicida do Bidibidobidiboo de Cattelan senão um novo Werther, a cruel evidência da fetichização, espetacularização e controle técnico e mercantil (em vias de digitalizar-se e "genetizar-se") das sensações, que cinicamente enfrentamos a todo instante, mas que, certo dia, corresponderam aos nossos desejos mais caros de emanicpação? É nesse sentido que o espelho indelevelmente distorcido e indicial da modernidade faz dela nossa nova Antigüidade; não por reivindica-la por modelo a ser atualizado, e sim na medida em que nos inquire como ou por quê queremos e devemos a partir de seu (suposto) encerramento, esboçar modalidades de existência em um mundo pós-histórico. Revista Arte & Ensaios (PPGAV-EBA-UFRJ)
Posted by Leandro de Paula at 2:51 PM
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"Exilio", de Jaime LaurianoPasse o cursor de seu mouse, e clique o botão esquerdo para ativar o flash Jaime Lauriano Estudante de Artes Visuais, desenvolve poemas visuais utilizando as linguagens digitais contemporâneas.
Posted by Patricia Canetti at 1:29 PM
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outubro 19, 2006"Inimigos", de Gil VicentePasse o cursor de seu mouse, e clique o botão esquerdo para ativar o flash Gil Vicente Artista bi-dimensional, trabalha com técnicas convencionais de desenho e pintura e aborda principalmente a figura humana. Sítio: www.gilvicente.com.br
Posted by Patricia Canetti at 12:36 PM
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outubro 16, 2006Daniela Labra, Paulo Climachauska e Regina Vater respondem: "É a Modernidade nossa Antigüidade?"Para instigar nossa comunidade, subdividimos o Tema 1 do documenta magazines ("É a Modernidade nossa Antigüidade?") em outras perguntas e enviamos para alguns integrantes do Canal Contemporâneo. São encorajadas diversas formas de resposta, desde livres abordagens teórico-reflexivas, entrevistas reais ou fictícias até intervenções práticas sobre as diversas questões que este tópico propõe. Os artistas Paulo Climachauska e Regina Vater e a pesquisadora Daniela Labra respondem às perguntas, oferecendo diferentes perspectivas sobre o conceito da Modernidade na realidade brasileira.
Podemos falar de uma Modernidade brasileira enquanto período histórico? Essa Modernidade ainda influencia ou define a produção contemporânea? Regina Vater: Se o "Movimento Antropofágico", especificamente nas artes plásticas, não representou um grande divisor de águas e um período de grande importância histórica no país, então eu não entendo nada do Brasil. Daniela Labra: Vivemos uma contemporaneidade moderna em muitos casos, principalmente no quesito "instituições de arte contemporânea" (não me refiro àquelas que se apóiam na tecnologia como base do discurso contemporâneo). Os processos da arte contemporânea no Brasil quase sempre esbarram em formatos modernos, que não comportam certos discursos. Paulo Climachauska: A História como aparato de organização do mundo é também um instrumento de legitimação do poder da sociedade ocidental capitalista. Acredito que a arte brasileira tenha uma particularidade e singularidade que quando transportadas para os moldes de classificação desta ciência História tende a ficar uma tanto capenga. A Modernidade ainda é um ponto de reflexão para a arte contemporânea brasileira, tanto para o seu lado mais conservador, que insiste em se apegar a sua ortodoxia formal, como para o lado que tenta distender esta herança e fazê-la se chocar com as urgências do Brasil contemporâneo para testar a sua validade.
Se uma Modernidade brasileira existe, podemos falar de uma Antigüidade brasileira? Regina Vater: Na arte plumária, por exemplo, podemos encontrar uma certa Antigüidade brasileira: a geometria de sua cestaria alimentou o inconsciente coletivo dos concretos/neoconcretos que, de uma certa maneira, pensavam estar olhando para a Europa. Paulo Climachauska: É inegável que uma antiguidade brasileira subsista hoje representada sobretudo pela desigualdade social, pelo atraso nas relações trabalhistas e pelos modelos oligárquicos de nossos instrumentos políticos.
Regina Vater: Tenho a impressão de que, no Brasil, começou a se produzir "Arte Povera" até mesmo antes da Itália. Aqui, o paradigma de Mallarmé que diz que "todo poeta é o tradutor de sua tribo", foi realizado com bastante sucesso por vários artistas.
Paulo Climachauska: Em arte, podemos tomar qualquer parâmetro para seguir adiante, retroceder ou, simplesmente, nos determos - o que importa é se o resultado de nossas escolhas é ou não pertinente ao momento em que vivemos no mundo e se, de certa forma, contribui para melhor entendermos este momento. Os modelos em arte estão aí para serem apropriados e redefinidos, transformados ou implodidos. Arte é o exercício da liberdade.
A modernidade teria também se transformado num repertório tirânico de critérios para a produção subseqüente? Paulo Climachauska: A herança da modernidade, como qualquer outra herança da humanidade, está aí para ser usada, disponível, cabe ao produtor entendê-la como fonte de conhecimento para entender o presente e como geradora de possibilidades para pensarmos o mundo. Daniela Labra: A própria questão de venda de obra de arte digital com tiragem limitada e preços altos é um híbrido moderno-contemporâneo. O tipo de transação é moderna, mas para um objeto cujo processo de realização e disseminação é contemporâneo.
Posted by Leandro de Paula at 9:06 AM
outubro 15, 2006"É a Modernidade nossa Antigüidade?", fotografias por Sami HassanSami Hassan
Posted by Leandro de Paula at 5:55 PM
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outubro 4, 2006Mesa-redonda com Georg Schöllhammer no Goethe-Institut, São PauloMesa-redonda com Georg Schöllhammer no Goethe-Institut, São Paulo 8 de outubro, domingo, 18h Goethe-Institut Depois de Hong-Kong e Nova Délhi, o Goethe-Institut de São Paulo recebe o terceiro encontro do projeto documenta 12 magazines neste domingo. Editores, escritores, teóricos e artistas do Brasil, Cingapura, Sérvia, Argentina, Colômbia, Egito, Polônia, Irã e Holanda aproveitam a oportunidade para debaterem juntos os leitmotives da mostra do próximo ano. O evento conta com a presença de Georg Schöllhammer, diretor geral do projeto, que analisará o impacto que as contribuições das mais de 80 publicações trazem ao discurso estético contemporâneo traduzido na próxima documenta.
Posted by Leandro de Paula at 5:47 PM
"Con el alma en un hilo", trabalho de Karin Lambrecht"Con el alma en un hilo", de Karin Lambrecht, responde: "É a Modernidade nossa Antigüidade?". "Con el alma en un hilo" - 2003
Posted by Leandro de Paula at 10:08 AM
setembro 21, 2006"Vendo voto", registro de incidência pública no Rio de Janeiro"Vendo voto", registro de incidência pública no Rio de Janeiro Cartazes apresentando trechos do conto "A Igreja do Diabo", escrito por Machado de Assis e publicado em 1874, são apreendidos, sem qualquer justificativa legal, pelo TRE no Rio de Janeiro. TRE apreende cartazes reproduzindo trechos de Machado de Assis Nota publicada originalmente no Jornal do Brasil no dia 10 de setembro de 2006 O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro mantém retidos quatro cartazes reproduzindo e ilustrando trechos do conto "A Igreja do Diabo", de Machado de Assis, publicados em 1874 - e apreendidos no dia 3/9 (sem a emissão de qualquer documento de apreensão). Desde então não há deliberação oficial do Tribunal sobre o caso. Informam apenas que as peças estão retidas. Funcionários do próprio Tribunal denunciam a apreensão como uma violação do Artigo 5o da Constituição. Censura a Machado Nota publicada originalmente em O Globo no dia 12 de setembro de 2006 O TRE do Rio de Janeiro continua mantendo apreendidos, desde o dia 3 de setembro, quatro cartazes (tipo homem-sanduíche), reproduzindo e ilustrando trechos do conto "A Igreja do Diabo", de Machado de Assis, publicados em 1874. Passados treze dias da autoritária apreensão, o Tribunal, sem qualquer justificativa, deliberação, ou parecer sobre a censura imposta (onde está o crime?), informa apenas ter remetido, após onze dias, um relatório ao Ministério Público Federal para apreciação (procedimento no 335/06 com MPE de 14/9/2006). Não há qualquer previsão de resposta, nem ao menos para saber em que lei foi baseada a apreensão, pois, segundo funcionária do TRE, o Ministério Público apenas vai opinar sobre o assunto, e a juíza responsável vai deliberar de acordo, ou contra, a sugestão do MP, e de acordo (ou contra) a própria consciência. Que as letras da lei, e da literatura, a iluminem.
Posted by Leandro de Paula at 7:47 AM
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setembro 11, 2006Tema 1: Prazo prorrogado até 15 de outubroA organização internacional do projeto documenta 12 magazines estendeu o prazo para as contribuições dentro do tema "É a modernidade nossa antigüidade?" até o dia 15 de outubro. Assim, dentro de pouco mais de um mês teremos publicado todo o material que constituirá a participação da comunidade do Canal Contemporâneo neste tópico do projeto. São encorajadas contribuições em vários formatos: textos teóricos, ensaios, resenhas, textos e intervenções artísticas, documentos em áudio ou vídeo, imagens etc. O tema põe em xeque a permanência e a superação de muitos dos projetos utópicos que deram forma à "Modernidade" inseridos no contexto da produção artística contemporânea. Saiba mais sobre "É a Modernidade nossa Antigüidade?".
Posted by Leandro de Paula at 12:10 AM
agosto 28, 2006"3 moments: modern-post modern-contemporary", de Duda Valle
Duda Valle
Posted by Leandro de Paula at 10:05 PM
"Arte e novas mídias: práticas e contextos no Brasil a partir dos 1990", por Christine MelloArte e novas mídias: práticas e contextos no Brasil a partir dos 1990 Christine Mello, publicado originalmente no livro "New media art in Brazil, in an historical and current approach from Concrete and Neo-concrete art to Internet", organizado por Annick Bureaud e Jean-Luc Soret, como parte integrante da revista anomalie digital_arts#5 e do Festival @rt Outsiders 2005://brasil, da Maison Européenne da la Photographie. Publicado por Anomos, Edições Hyx, Paris, 2005, pp. 130-155. "Só me interessa o que não é meu"
Cabe pensar no caráter antropofágico da arte produzida com as novas mídias a partir dos anos 1990 no Brasil. Por um lado, pelo fato de se tratar de linguagens híbridas e de estar inserida numa cultura digital traduzida pela noção do remix e, por outro lado, pelas trocas que estabelece com as mais variadas práticas e circuitos artísticos. Os artistas que dela fazem parte não apenas se apropriam de experiências relacionadas aos ambientes tecnológicos, como também os reconfiguram sob a forma de diálogos intertextuais: transformam estes ambientes em proposições poéticas inusitadas. Esta produção se inclina hoje pela saída dos ambientes específicos da arte-tecnologia, deglute experiências externas e transforma-as em novos pontos de vista. No Brasil, a partir dos anos 1950 e 1960, iniciam-se os estudos e os trabalhos criativos acerca das relações entre a comunicação e a arte sob diferentes perspectivas. Entre os anos 1970 e 1990 as práticas com os novos meios atingem uma maturidade com a exploração das possibilidades expressivas da linguagem. Desde então, não cessam de ampliar-se os interesses sobre as formas de produção simbólica com os processos comunicacionais. Nesta direção, há a expansão do imaginário por meio das tecnologias videográficas, do computador, da internet, da realidade virtual, das redes de comunicação móveis, da inteligência artificial e da engenharia genética. A partir da passagem para o século 21, com os substratos da cibercultura, da presença indissociável da internet na vida social, dos mais variados modos de processamento e de circulação das mídias, das dinâmicas de inteligência coletiva, das comunidades virtuais, do acesso a bancos de dados on-line, da rotina com os videogames e do convívio banalizado com o contexto hipermidiático de forma geral, torna-se possível observar estas novas redes de sentido produzidas no Brasil como um reflexo da popularização dos meios digitais. Tais redes de sentido se apresentam sob a perspectiva de uma "especificidade diferenciada", limítrofe e descentralizada. Compreender a produção criativa contemporânea com os novos meios através de uma visão descentralizada diz respeito a conhecê-la de maneira plural, inserida num contexto mais amplo, a partir dos diálogos entre o repertório comum da arte e o universo da ciência e da tecnologia. São como práticas inconformadas - disformes seria um termo melhor balizado. O termo disforme surge nesta análise por se tratar de uma lógica poética do desvio e da contaminação. É como uma maneira de perceber, antropofagicamente, um tipo de caráter especial, no qual assumidamente se considera não haver caráter específico algum. Interessa mais para esta análise, portanto, encontrar as misturas, os híbridos, ou aquilo que não é constituído por nenhum caráter particular nestas práticas artísticas. Temos convivido, neste início de século 21, no Brasil, com trabalhos de novas mídias que provocam uma maior contaminação entre os circuitos da arte e da vida, o embate direto em torno do espaço público e uma postura mais crítica em relação aos meios tecnológicos. Estes trabalhos suscitam, por conseguinte, discussões de cunho mais político. Eles se situam em zonas fronteiriças: ora inserem-se no contexto institucional (como os que são produzidos com o apoio de instituições culturais e científicas), ora inserem-se em contextos alternativos, não-oficiais, ou em circunstâncias tidas como menos protegidas. A questão é saber como é possível mapear esta produção criativa, tanto em uma quanto em outra tendência, bem como saber como os artistas se defrontam, por meio desta dialética, no ambiente expressivo. É possível observar, nas poéticas tecnológicas geradas recentemente no Brasil, a vigência de práticas mais inespecíficas no que tange a suas interlocuções entre múltiplos circuitos e campos criativos. É na direção de uma inscrição disforme e heterogênea que será traçada, a seguir, uma dimensão contextual de como estas práticas, regidas pelo pluralismo, são incorporadas, e - por que não dizer? - devoradas, de tal forma a não mais constituírem um campo específico das manifestações artísticas. As poéticas de intervenção digital existentes hoje no Brasil são analisadas, desta forma, como trabalhos na construção de redes de relações sociais em várias frentes. São como redes de colaboração que ampliam a noção de ambiente artístico. A seguir, para melhor explorarmos as tendências acima mencionadas - como zonas fronteiriças em que cada um tenciona interferir e alterar a realidade do outro -, serão atribuídas as seguintes leituras para cada uma destas realidades: poéticas investigativas e poéticas da wired city. 1. Poéticas investigativas As poéticas investigativas com as novas mídias atuam na lógica do fazer-pensar arte e tecnologia ao modo de laboratórios vivos e experimentais, nas confluências existentes entre a produção de conhecimento e a produção artística. Este é o ponto de vista de criadores como Julio Plaza. A problemática das poéticas digitais e seus processos de hibridização perpassa praticamente todo o seu projeto de pesquisa. Falecido em 2003, desde o final da década de 1960 Plaza desenvolveu seu discurso crítico-sensível na interface entre a arte, a ciência e a tecnologia. É um dos mais originais representantes do conceitualismo no Brasil. Seu interesse questionador referente às linguagens em contextos híbridos fez com que explorasse um novo pensamento para a arte: a tradução intersemiótica. Como tradutor intersignos, em contato com os concretistas Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, Plaza parte da poesia visual e pesquisa as novas mídias a partir da década de 1980. Seu campo de ação situa-se em torno do videotexto, dos painéis eletrônicos de publicidade, da sky art, da holografia, das imagens digitais e da interatividade. Exerce uma forte presença no painel brasileiro, tanto como artista, teórico, curador e crítico, quanto como professor e orientador de uma grande parcela de artistas. Além de um relevante trabalho teórico e curatorial em torno das linguagens eletrônico-digitais, ele realizou também uma série de experiências pioneiras no Brasil em contextos interativos e telemáticos e foi uma das presenças mais estimulantes e investigativas no decorrer dos anos 1980 e 1990. Percursos como o de Plaza podem ser observados também em artistas como Philadelpho Menezes, Diana Domingues, Regina Silveira, Eduardo Kac, Gilbertto Prado, Silvia Laurentiz, Suzete Venturelli, Tânia Fraga, Artur Matuck, André Parente, Kátia Maciel, Analívia Cordeiro, o grupo SCIArts (Fernando Fogliano, Milton Sogabe, Renato Hildebrand e Rosangella Leote) e o Poéticas Digitais (ECA-USP), Daniela Kutschat e Rejane Cantoni, entre outros. Estes criadores dialogam, no âmbito científico, com abordagens experimentais para as linguagens tecnológicas e inserem seus trabalhos no campo da invenção em novas mídias. Philadelpho Menezes é outro criador que, assim como Julio Plaza, origina-se na poesia visual. Ele produz interfaces pela transposição de linguagens, como no caso das suas poesias sonoras, dos vídeos Antologia poética da língua das vogais, Nomes impróprios, Canto dos adolescentes e do CD-Rom Interpoesia (em conjunto com Wilton Azevedo), em que faz interagir a verbalidade, a visualidade e a sonoridade da poesia em meio a contextos videográficos, telemáticos e digitais. Falecido em 2000, ele proporcionou, com seu trabalho, modificações no sistema poético e criou uma outra relação, ou uma nova propriedade, para os elementos constitutivos do enunciado 2: uma poética da interpenetração de linguagens que expande as particularidades tecnológicas. No campo dos desterritórios das redes telemáticas, onde espaço e tempo não são separados por distâncias geográficas 3, é possível observar certas experiências produzidas no Brasil com o tempo real por artistas como Eduardo Kac, Gilbertto Prado, Bia Medeiros e o grupo Corpos Informáticos. Para eles, as novas mídias participam da organicidade de seus trabalhos muito mais como um gesto, um ato ou uma possibilidade de comunicação. Desta maneira, performances ao vivo tomam lugar na internet, acontecendo muitas vezes de forma mediada pela telepresença e por web-câmeras. Eduardo Kac (http://www.ekac.org) é outro artista que origina-se na poesia visual e traça um profundo caminho internacional no âmbito das investigações tecnológicas. Entre uma vasta obra realizada, em 1996 ele empreende a instalação interativa Teleporting an unknown state 4, em que anônimos do mundo inteiro apontam suas web-câmeras para o céu e transmitem - por meio da internet - a luz do sol para o interior de uma galeria de arte, onde os fótons capturados pelas câmeras são direcionados para o crescimento de uma planta. Estas imagens, captadas em tempo real de lugares remotos, são "despojadas de qualquer valor de representação pictórica, formal, plástica, e usadas como transportadoras de ondas de luz" 5. Kac recicla e subverte, assim, o uso tecnológico, ao mesmo tempo em que oferece novos sentidos para ele. Numa primeira exibição deste trabalho, o processo inteiro de crescimento da planta foi transmitido ao mundo pela internet, permitindo que os participantes acompanhassem os resultados de sua intervenção na obra. Recentemente, em 2004, o mesmo processo foi reapresentado em São Paulo no decorrer da exposição "Emoção Artificial 2", com curadoria de Arlindo Machado e Gilbertto Prado. Grande parte da sua poética reside na exploração da natureza dos códigos, da vida vegetal simulada e da comunicação humana com os ambientes inteligentes e sintéticos. Gilbertto Prado (http://wawrwt.iar.unicamp.br), artista e pesquisador que desenvolve trabalhos em arte-comunicação desde os anos 1980, empreende ao longo de sua trajetória uma série de estratégias diferenciadas de atuação a partir do tempo real e das redes artísticas. Em agosto de 1991 - no contexto da exposição "Luz Elástica", organizada por Eduardo Kac no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro -, Prado participa de um projeto de telescanfax, cujo processo consistia, nas palavras do próprio autor, na "leitura de imagens de televisão com scanner de mão e o envio destas imagens transformadas a um outro local via fax-modem". Conforme explica Prado, graças à composição dos movimentos de leitura entre o scanner (meio numérico) e a varredura da imagem videográfica (meio analógico), obtinha-se uma imagem decomposta, embaralhada, de aspecto enigmático 6. Seu trabalho, denominado La vendeuse de fer à repasser, foi enviado de Paris para o grupo de artistas que se encontrava no Rio de Janeiro. O projeto de Gilbertto Prado Moone: La Face Cachée, realizado em 1992 durante a exposição "Machines à Communiquer - Atelier des Réseaux", na Cité des Sciences et de l'Industrie, em Paris, é mais um exemplo constituído no cerne híbrido das redes artísticas. As primeiras imagens foram realizadas entre os Electronic Cafe de Paris e de Kassel ("Documenta IX"), na Alemanha. Para Prado, a proposição deste projeto consiste em "construir com um parceiro distante (e eventualmente desconhecido) uma imagem híbrida e composta em tempo real. Esta ambigüidade está na raiz da proposição de se criar uma relação efêmera, onde o crescimento e a composição da obra dependem de uma dinâmica de intercâmbio" 7. Em 1995, Gilbertto Prado realiza, no MAC-USP, M.A.(desejo), uma instalação interativa que, entre outros elementos, disponibiliza uma câmera de vídeo que permite ao espectador se ver em posição de voyeur. Em 1998, ele apresenta no Paço das Artes, em São Paulo, a web-instalação Depois do turismo vem o colunismo, que consiste em um portal monitorado por duas câmeras de vídeo conectadas à internet. A partir de experiências como estas, em tempo real, Prado expande sentidos para a imagem em movimento, transmutando-a alternadamente para os espaços híbridos, bem como fazendo-lhe (re)ligar dimensões diferentes entre o espaço físico e o espaço virtual, como ocorre em seu trabalho Desertesejo 8. Este trabalho é um ambiente virtual interativo multiusuário construído em VRML e disponibilizado na internet. Em estratégia inversa aos jogos, este videogame transforma o espaço público da internet no espaço da poiesis, em uma busca dialética e onírica pelo Outro. A grande interface, nele, é a sensorialidade proposta aos agenciadores da obra. Neste ambiente multiusuário, o deserto e o desejo fascinam, tanto quanto os sons, a tendência ao silêncio e a dinâmica de convivência em espaços lisos, sob as diferentes visões de um mesmo mundo compartilhado em tempo real. Outro campo de pesquisa desenvolvido nos anos 1990 e relacionado às questões do corpo nos cruzamentos do vídeo e das novas tecnologias refere-se ao trabalho de Bia Medeiros e do grupo Corpos Informáticos 9. Constituído em 1991, este grupo conduz suas atividades no enfrentamento das questões de caráter vivencial do corpo, no embate ao vivo, mediado por câmeras de vídeo ou por web-câmeras, em torno de performance digital, videoinstalações, net art e telepresença. Em 2002, o grupo realiza Macula@corpos, performance em telepresença apresentada em São Paulo no "1º Circuito Centro da Terra de Artes Cênicas". Neste trabalho, web-câmeras interagem com o corpo dos espectadores e estas interações são transmitidas, simultaneamente, tanto para um circuito interno de monitores de vídeo e de computadores (localizado no interior do teatro), quanto on-line, pela internet. Vôo cego I | Võo cego II Daniela Kutschat amplia fronteiras no vídeo digital ao realizar Vôo cego I e Vôo cego II, em 1998, por meio de animações criadas a partir de imagens videográficas que hibridizam, em sua gênese, procedimentos analógicos e digitais. Utiliza a câmera de vídeo para captar dimensões de um mesmo espaço ou de espaços diferentes em movimento e, posteriormente, trabalha-as digitalmente. Como Kutschat analisa, essas "imagens estão repletas de ruídos que, se fossem nítidos, seriam imediatamente percebidos como colagens ou superposições. Entretanto, sendo esmaecidos e desfocados, editados e montados dessa forma, são 'neo-realidades' sintéticas" 10. É interessante notar que mesmo no título destes trabalhos de Daniela Kutschat já se encontram inseridas questões conceituais advindas do confronto analógico-digital. É possível refletir que se trata de um vôo cego por se relacionar a uma discussão metafórica entre a capacidade de ver, captar e registrar imagens do mundo físico (possibilitada pelos sistemas ópticos, como o da câmera videográfica) e esta mesma incapacidade na constituição da imagem sintética. O computador é reconhecido justamente por sua característica oposta de, em vez de extrair as imagens do mundo real, poder concebê-las, construí-las diretamente em sua própria constituição sígnica numérica, por meio de linguagens como a realidade virtual. Um pouco antes da passagem para os anos 1990, em 1987, Rejane Cantoni realiza, durante um curso na ECA-USP com o artista catalão Antoni Muntadas, aquela que vem a ser provavelmente uma das primeiras experiências de videoinstalação interativa em nosso país. Trata-se de Ao vivo, trabalho em que o interator, ao entrar no ambiente, dispara um alarme e o sistema de vídeo. Na tela dos monitores, um revólver é apontado para o usuário, que se transforma em vítima de sua observação. Assim que o disparo é ouvido, entra o título do trabalho e uma luz é acesa apontando o caminho da saída. Após uma série de pesquisas e experiências criativas, já em 1999, Rejane Cantoni empreende, com Daniela Kutschat, no Paço das Artes em São Paulo, a videoinstalação Máquinas de ver I. Neste trabalho, as imagens são captadas em tempo presente por meio de um circuito fechado de vídeo, incorporam o visitante e o ambiente físico e são simultâneas e opostas entre si. Daniela Kutschat e Rejane Cantoni realizam também de forma conjunta o trabalho intitulado OP_ERA (http://www.op-era.com) no decorrer da primeira década do século 21. Conforme elas afirmam, este trabalho é um mundo computacional composto de quatro dimensões interligadas por passagens, que o visitante vai descobrindo ao explorar cada uma destas dimensões. Produzido sob a forma de um espaço matemático progressivo, o projeto possui uma série de desdobramentos. Trata-se de imergir o corpo de forma performática e interativa no espaço sensório por meio de experiências rítmicas, cinéticas, vibracionais e do uso de interfaces táteis e sonoras. É uma forma de ampliação da vivência estética para além do espaço da obra, para o espaço da vida e das relações com o "outro" maquínico, virtual, cuja maior experiência se dá no campo da linguagem, no campo da transformação e da construção dos sentidos. Em interlocução com o pensamento de Merce Cunningham, a coreógrafa e pesquisadora Ivani Santana desenvolve trabalhos no campo da dança e das mediações tecnológicas desde 1994. Sua coreografia Gedanken (2000) trata da viagem de um corpo por experiências imaginárias. Nela, o corpo físico é dimensionado em várias existências. Conforme explica Santana, trata-se de uma viagem que não começa em cena, pois há corpos projetados que recepcionam o público, e o palco e a platéia transformam-se numa grande instalação. Desta maneira, o espaço cênico é constituído de corpo e de luz. Neste trabalho, ela utiliza uma microcâmera de vídeo no joelho e outra no olho, funcionando em um sistema de circuito fechado para transmissão em tempo real. Há projeções de imagens do software Life Forms, no qual foram criadas as frases de movimento do espetáculo. Há também o uso do software Image-ine para processamento de imagem em tempo-real, bem como a projeção de imagens e textos enviados pelos usuários da internet. Mais recentemente, podemos exemplificar também trabalhos realizados na forma de sistemas interativos conjugados à telefonia móvel por meio de interfaces entre música, corpo e movimento, como é caso de obras criadas em 2005 por Analívia Cordeiro, assim como na forma de vídeo interativo, ou videogame, como é o caso de Márcia Vaitsman, produzido com o apoio da Alemanha e do Japão, em que o agenciador adquire um ponto de vista mutante e intercambiável. Este conjunto de criadores integra e bem exemplifica um grupo de artistas brasileiros que desenvolve estratégias de presentificação do tempo de forma compartilhada, inseridas no contexto da arte digital e telemática. Chamar atenção para as práticas midiáticas produzidas nas confluências com o contexto do jogo, da dança e das performances multimídia é abordar poéticas híbridas e midiáticas em tempo real, poéticas impermanentes, transitórias, que expandem a idéia de fluxo midiático no universo da arte e que são capazes de dialogar hoje com a ampla gama de procedimentos criativos relacionados ao âmbito da cultura digital. Observam-se, neste conjunto de proposições, investigações interdisciplinares e circunstâncias diferenciadas do processo de elaboração artística: a transformação da idéia dá-se por mecanismos de contaminação e hibridação entre os meios tecnológicos. Trata-se de criadores que encontram em suas poéticas o embate direto com o tempo ubíquo do ciberespaço e geram uma série de trabalhos que subverte-altera-amplia o sentido inicialmente previsto para o contexto eletrônico-digital - quer seja em torno da discussão temporal, quer seja em torno das novas formas de experimentação estética, conseguindo a difícil tarefa de conciliar o circuito da arte às mídias de rede. Estes procedimentos visam eminentemente esgarçar a dimensão temporal da arte para novas realidades, inserir critérios diferenciados de autoria - que passa a ser compartilhada e agenciada pelo público - e também articular a vivência da obra como parte intrínseca ao trabalho artístico. Julio Plaza e Monica Tavares, ao analisarem os métodos de criação artística, chamam atenção para o fato de que "a operação artística é um processo de invenção e produção". Eles analisam cerca de dez modos de operar as novas tecnologias. Entre eles, há o método dos limites. Para os autores, o método dos limites consiste em "explorar as leis, normas e regras que definem um projeto, na tentativa de nelas reconhecer as fronteiras do seu campo de atuação para, a partir daí, poder transgredi-las" 11. Se na concepção do método dos limites, segundo Plaza e Tavares, para se criar deve-se quebrar os limites impostos pelo meio, estas regras são constantemente atualizadas por este conjunto de criadores, que busca, no limite, processos experimentais para as linguagens das novas mídias. 2. Poéticas da wired city Como um movimento de inteligência coletiva, as poéticas da wired city articulam intervenções no contexto urbano e imprimem um maior questionamento em torno das relações tecnológicas e suas implicações no sistema sociopolítico e econômico. Deliberadamente dissociado do acesso às tecnologias de ponta, este movimento coletivo emergente no Brasil se apropria e reprocessa os ambientes low-tech existentes com atitude crítica. Tal circunstância é assumida como uma forma de instaurar uma visão particular de mundo e furar bloqueios na constituição de um circuito alternativo de arte produzido pelos meios digitais. No Brasil, eu vivencio esta experiência numa cidade como São Paulo. Uma cidade que é, provavelmente, a que mais compreende, no país, a dinâmica digital. São Paulo é um grande aparelho cultural, uma wired city, como já pensava o filósofo Vilém Flusser nos anos 1980. Embora seja uma cidade midiatizada, ela vive, tanto quanto outras metrópoles do país, uma intermitente contradição e negociação entre a lógica do local e do global, entre noções de inclusão e exclusão digital. Nesta direção, as poéticas da wired city aqui observadas giram em torno de performances no espaço público de lógica mais situacionista, como é o caso de: Graziela Kunsch, em seu franco ativismo em torno dos coletivos, comunidades virtuais, instalações e projetos de vídeo; Otávio Donasci, em suas performances multimídia; Giselle Beiguelman, em suas intervenções híbridas pela web, a partir de sites, telefonia-sem-fio e painéis eletrônicos publicitários; Jurandir Muller, Kiko Goifman, Lucas Bambozzi, Rachel Rosalen, Rachel Kogan, Simone Michelin, Lucia Leão, Daniel Seda, Marcelo Cidade, Leandro Lima e Gisela Motta, em suas videoinstalações, net art, documentários e projetos de intervenção digital, telemática e com câmeras de vigilância e sensores eletrônicos; dos músicos Lívio Tragtemberg e Wilson Sukorski; de Daniel Lima e A Revolução Não Será Televisionada, em seus projetos de intervenção em programas televisivos e também nos sistemas públicos midiatizados, como no projeto CUBO (celebração multimídia), organizado de forma coletiva com muitos destes grupos e criadores e apresentado em 2005 no centro de São Paulo. Este é o caso também de ações efêmeras como os casuais flashmobs, que ocorrem nos grandes centros urbanos; os weblogs, orkuts, vídeos políticos e as net-rádios e fanzines digitais, acionados por coletivos que estabelecem intervenções midiáticas, como Cobaia, Cia. Cachorra, Perda Total, Formigueiro, Metáfora, NeoTao, Horizonte Nômade, Nova Pasta, Base V, Esqueleto Coletivo, Contra-filé e Rejeitados; a contra-informação na escrita do texto científico por Cícero Inácio da Silva; as performances de live images, ou vídeo ao vivo, realizadas pelos VJs na cena noturna eletrônica - como o coletivo Bijari e os VJs-artistas Luiz Duva, Aléxis, Palumbo e Spetto, sendo o trabalho deste último associado também à sampleagem digital, por meio de imagens apropriadas das mais diferentes circunstâncias e mídias, bem como à criação de software aberto e gratuito e à noção de copyleft. Este conjunto de criadores acima citado explora, muitas vezes, as novas mídias para além dos espaços institucionais da arte e da ciência e vivencia a cidade como uma experiência de subjetivação. Suas ações são realizadas a partir do compromisso com a vida pública e não necessariamente a partir do compromisso com o sistema científico ou da invenção tecnológica. Um percurso criativo que merece aprofundamento e um maior estudo no campo dos entrecruzamentos entre o teatro, os espetáculos multimídia e as intervenções urbanas é o de Otávio Donasci. Ele cria as suas primeiras videocriaturas 12 em 1981 e vem desenvolvendo, desde então, toda a sua poética em torno das performances interativas. Donasci trabalha sobre o conceito teatral de máscara. Como considera que o material do seu tempo é o elétron, ele desenvolve rostos virtuais eletrônicos que são aplicados sobre o rosto real como uma segunda pele. Em suas primeiras videocriaturas, Donasci constrói estas máscaras eletrônicas a partir de televisores branco-e-preto fixados na cabeça e orientados de modo "vertical" (formato denominado por ele como "retrato"), acompanhando o formato do rosto e ligados por cabos a um videocassete ou câmera low-tech, único equipamento acessível a ele na época. Conforme explica Donasci, o figurino é uma malha preta de bailarino ou ginasta que, com um capuz, cobre todo o equipamento agregado ao corpo e, ao mesmo tempo, pela semitransparência, dá visão ao performer, permitindo sua movimentação pelo espaço. Recentemente, Donasci vem realizando trabalhos interativos com telas de cristal líquido, bem como espetáculos eloqüentes no espaço urbano. Com uma interface homem-máquina, mistura de meio eletrônico, teatro e performance, Donasci revela o próprio princípio da intermídia, em que o trânsito existente entre uma e outra linguagem é capaz de constituir uma nova categoria expressiva. Egoscópio Giselle Beiguelman 13 (http://www.desvirtual.com) elucida muito bem certas questões existentes no campo da arte-tecnologia ao chamar a atenção para o nomadismo que as mídias digitais proporcionam e para a circunstância atual, em que matriz e cópia convivem simultaneamente em um único domínio. Beiguelman introduz no Brasil as práticas poéticas de reciclagem digital com trabalhos constituídos em rede como O trabalho Egoscópio15, de Giselle Beiguelman, uma tele-intervenção que transforma a informação da internet em sinal videográfico, também realizado em 2002, é como um mergulho no universo híbrido das mídias. Trata-se da construção de um ser mediado pela informação, entre a arte, a publicidade e a telecomunicação. Este trabalho estabelece parâmetros de hibridização que confundem as interfaces e as mensagens, em um processo de associação e desconexão entre fragmentos dispersos em inúmeros sites. Trata-se de uma tele-intervenção midiática em espaços públicos que faz com que os contextos e conteúdos gerados em rede, tanto na internet quanto na telefonia móvel, sejam transformados em sinal videográfico e projetados em painéis eletrônicos publicitários distribuídos pela cidade de São Paulo. Há também trabalhos de Beiguelman, como Web Paisagem 016, realizado em 2002 (em conjunto com Marcus Bastos e Rafael Marchetti). É um trabalho de net art que faz o usuário samplear paisagens nômades da internet por meio da mixagem on-line de arquivos de vídeo, som, imagem e texto de seu banco de dados. Outro percurso bastante interessante é o do projeto Valetes em slow motion. Este projeto teve início com a produção do vídeo Tereza, de Kiko Goifman (1992, co-direção de Caco Pereira de Souza). Na seqüência foi gerado, por ele também, o CD-Rom Valetes em slow motion (1998, com direção de produção de Jurandir Muller e direção de criação de Lucas Bambozzi), lançado em conjunto com um livro impresso, de caráter teórico (trata-se de pesquisa de mestrado, na área da antropologia, empreendida por Goifman sobre o tempo na prisão, que acompanha a organização dos conteúdos e a reflexão sobre o tema geral do trabalho). O trabalho deu origem a um site na internet, a uma videoinstalação interativa apresentada na "24ª Bienal Internacional de São Paulo" (1998) e a uma outra na "2ª Bienal do Mercosul" (1999), intitulada Jacks in slow motion: experience 02. Estas últimas etapas do projeto tiveram a co-criação e a co-direção de Jurandir Muller. Do meio imaterial e eletrônico do vídeo, o projeto Valetes em slow motion dialoga com os processos não-lineares e interativos da linguagem hipermidiática encontrados no CD-Rom e, na seqüência, expande-se como forma híbrida, entre o espaço físico e o virtual, para o contexto das videoinstalações e para os domínios imersivos das redes telemáticas e do ciberespaço. Já em 2002, Jurandir Muller e Kiko Goifman desenvolvem o projeto Coletor de imagens. O projeto é constituído por um documentário, uma videoinstalação e um site 17, em que pessoas do mundo inteiro podem enviar suas próprias imagens, de origens as mais diversas, proporcionando um grande contágio entre universos e sentidos bastante diferentes. Trata-se de um projeto de recomposição e ecologia da imagem, em que o artista, ao tomar consciência da grande quantidade de imagens já existente no mundo, em vez de saturá-lo produzindo mais imagens, prefere ressignificar as imagens existentes. 33 (2004), de Kiko Goifman, é cinema das mídias. Por meio da busca detetivesca de sua mãe biológica, Goifman faz o público compartilhar uma experiência situada entre o campo das narrativas pessoais e os jogos em tempo real proporcionados pelos mais diversos circuitos de comunicação. O trabalho é ao mesmo tempo um diário on-line na internet, uma reportagem na televisão broadcast, um vídeo experimental, um road movie e um documentário performático. Enfim, um cinema contemporâneo, capaz de revelar uma identidade e uma cultura em trânsito, em processo. É possível verificar na obra de Lucas Bambozzi (http://comum.com/lucas/) experiências de intervenções e desvios no cerne do próprio meio digital. Ele compartilha em sua obra o contato efetivo direto entre a experiência individual e a experiência pública. Seus trabalhos são como manifestos sobre a intimidade e a identidade em plena era da desmontagem da informação. Para tanto, Bambozzi chama atenção para as formas de controle e invasão da privacidade advindas dos meios tecnológicos. 4 paredes Em 2002, Lucas Bambozzi apresentou 4 paredes, no Paço das Artes, em São Paulo. Trata-se de um projeto de videoinstalação interativa em que sensores controlados por computador possibilitam convergências do vídeo no meio digital. Encontramos aqui a interface como experiência sensória, um exemplo de trabalho em que importa menos explorar a superfície da imagem e mais as situações de interação entre a obra e o espectador. Um hibridismo muito particular em que a interface e suas articulações pelo ambiente da videoinstalação tornam-se a própria mensagem. A intenção deste trabalho é fazer o usuário se sentir invasor nas relações observador-observado, ser vigiado e vigiar. A arte, para Bambozzi, diz respeito a colocar em contato, ou em relação, sistemas comunicacionais de partilha e troca com o outro. Neste sentido, para ele, vivenciar a situação do trabalho, a experiência que o mesmo carrega, é inerente à constituição da própria idéia de arte. Seus trabalhos dizem respeito, de um modo geral, ao confronto midiático produzido no encontro com o outro e às relações do sujeito entre a vida pública e a vida privada. Este é o caso de seu projeto Spio, criado a partir da idéia de um robô espião, que foi apresentado na exposição "Emoção Artificial II", em 2004, com curadoria de Arlindo Machado e Gilbertto Prado. Esta obra faz com que o sujeito, protegido em seu aparente anonimato das câmeras de vigilância, questione até que ponto ele mesmo não acata as situações ilícitas da vigilância e compartilha com o invasor uma mesma realidade. De uma certa maneira, Bambozzi proporciona, neste trabalho, a possibilidade de cada indivíduo se posicionar diante do contexto midiático, observando-se tanto na função de invadido quanto na função de invasor. Este projeto de Lucas Bambozzi passou por uma série de negociações, no decorrer da exposição "Emoção Artificial II", com a equipe da empresa terceirizada que presta serviços de segurança ao Itaú Cultural. Tal fato ocorreu também com a intervenção digital de Simone Michelin, presente nesta mesma mostra, ADA: Anarquitetura do Afeto. Esta situação ocorreu por conta de ambos criadores questionarem, em seus projetos, a questão da vigilância e seus mecanismos de ação nos espaços institucionais, questão esta que entrava justamente em confronto com as normas de segurança da instituição. MMM Como uma espécie de subversão, ou uma metáfora acerca das tensões decorrentes da sociedade de controle, artistas como Bambozzi e Michelin, ao lidar com este artifício no contexto de espaços institucionais, sabem muito bem que se trata de um modo de situar suas obras numa zona do controle-descontrole. E acredito que faça parte do papel do artista tecnológico saber alargar estas zonas de confronto e embate expressivo nos espaços institucionais, ou espaços mais protegidos. Plural Maps | Lost in São Paulo Lucia Leão (http://www.lucialeao.pro.br), com seu trabalho colaborativo na internet Plural maps 19, leva o usuário a interagir com web-câmeras espalhadas em pontos específicos da cena urbana. Trata-se de uma intervenção estética na idéia de cidade, em que o fruidor penetra e interage num campo de ação por meio de labirintos no ciberespaço, de web-câmeras fornecidas pelos próprios participantes, e da realidade virtual. Plural maps oferece a consciência da desorientação, a necessidade de mapas que subvertem noções tradicionais de cartografia e refletem um novo tipo de configuração do tecido público imaginário. Como é possível observar nestes exemplos, os criadores que atuam em torno de poéticas de intervenção digital geram, assim, estranhamento por meio de zonas de tensão entre sistemas midiáticos, entre desvios no sistema urbano e digital, nos sistemas de controle e segurança, e assim por diante. Tal estratégia de ação é similar à idéia de software virótico, por se infiltrar no circuito cultural, nas redes digitais - na tentativa de desconstruir tanto as formas organizadas da vida comum quanto as práticas sensórias. Fora do controle institucional, da lógica do mercado e, na maior parte das vezes, independentes do contexto científico, estas práticas questionam a liberdade nos meios digitais e apresentam-se como um modo de ocupação do espaço público, na medida em que intervêm no circuito urbano das mensagens comunicacionais. 3. Novas circunscrições para a arte e novas mídias Compreendido em sua descentralização, o contexto das novas mídias no Brasil a partir dos anos 1990 é, assim, pontuado pelas marcas móveis de suas redes de conexões e extremidades. Por esta lógica, o meio maquínico não é analisado como uma totalidade, mas inserido no conjunto de relações que opera, compartilhando múltiplas formas de interferência nas proposições artísticas e interconectando diversos elementos sensíveis, sem necessariamente problematizar a tecnologia e suas especificidades. É possível perceber, na intertextualidade promovida por este conjunto de trabalhos, a presença viva dos modos antropofágicos das novas mídias. No universo das mídias, conforme observa Marcus Bastos20, as linguagens estão sempre em relação, por isto elas não podem ser pensadas isoladamente. Ele defende o uso do termo sampler - na compreensão do contexto de convergência das mídias na atualidade - como uma cultura da reciclagem semiótica, em que o anônimo, o reciclado e o consumível assumem novos papéis. Bastos relaciona de forma original e inédita a idéia de samplertropofagia (que corresponde à fusão dos termos sampler e antropofagia), capaz de reunir, em uma só instância, poéticas como as da reciclagem e da apropriação. Para Bastos, a idéia de samplertropofagia inaugura uma forma de produzir sentido que permite, não apenas a colagem e a montagem, mas a reciclagem das mídias-fonte. Conforme é possível verificar, no início do século 21, o campo das novas mídias no Brasil já se encontra consolidado como linguagem, possui um caminho próprio no circuito das artes e é, em muitos casos, considerado próximo e acessível a uma ampla gama de criadores. Muitas vezes a difusão de suas obras dissolve-se na cena contemporânea pelo seu caráter transitório e desprovido de materialidade. Estes trabalhos são considerados marginais perante o circuito de arte, assim como demandam das instituições expositivas uma série de equipamentos e tecnologias que estas nem sempre estão aptas a disponibilizar - e cujos custos de locação ainda são altos para os padrões nacionais -, o que infelizmente inviabiliza muitas das suas apresentações. Por seu caráter efêmero, é problemática a maneira como os museus podem acolhê-los em seus acervos, sendo difícil, por todos estes motivos, estabelecer parâmetros precisos no circuito convencional da arte. Se o espaço estético é um campo polêmico por não permitir o consenso, encontramos neste conjunto de experiências a oportunidade de religar este microcosmo à renovação do contexto contemporâneo da arte. Assim, a new media art: práticas e contextos no Brasil a partir dos 1990 é feito uma geléia geral; disforme, sem nenhum caráter, e, como diria Julio Plaza, pode ser considerada como "universos paralelos e simultâneos que tendem a perder seus contornos e fronteiras fixas"21.
1 COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003, p. 265-269. volta ao texto 2 Estas questões encontram-se mais aprofundadas no artigo "A experiência com a poética de Philadelpho Menezes". [MELLO, Christine. A experiência com a poética de Philadelpho Menezes. In: BARROS, Anna e SANTAELLA, Lucia (orgs.). Mídias e artes: os desafios da arte no início do século XXI. São Paulo: Unimarco Editora, 2002, p. 27-31.] volta ao texto 3 RUSH, Michael. New media in late 20th-century art. Londres: Thames & Hudson, 1999, p. 198. volta ao texto 4 O registro do trabalho encontra-se na internet, em www.ekac.org/teleporting.html. volta ao texto 5 DONATI, Luisa Paraguai e PRADO, Gilbertto. Utilizações artísticas de imagens em direto na world wide web. In: Anais do 1º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia. Brasília: Universidade de Brasília, 1999, p. 88. volta ao texto 6 PRADO, Gilbertto. As redes artístico-telemáticas. Revista Imagens. n. 3. Campinas: Unicamp, 1994, p. 42. volta ao texto 7 Idem, p. 43. volta ao texto 8 Ver www.itaucultural.org.br/desertesejo. volta ao texto 9 O grupo é coordenado por Bia Medeiros e atualmente fazem parte dele Carla Rocha, Cila MacDowell, Cyntia Carla, Maria Luiza Fragoso, Alice Stefania Curi, Robiara Beccker e Viviane Barros. Para uma melhor compreensão da abrangência de suas atividades, procurar em http://corpos.org. volta ao texto 10 KUTSCHAT HANNS, Daniela. Corpo-espaço: notas, rotas e projetos. Tese de Doutorado. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da USP, 2001, p. 61-63. volta ao texto 11 PLAZA, Julio e TAVARES, Monica. Processos criativos com os meios eletrônicos: poéticas digitais. São Paulo: Hucitec, 1998, p. 97. volta ao texto 12 Videocriatura é, em descrição do próprio Otávio Donasci, um ser híbrido gerado a partir de máscaras eletrônicas, criadas com monitores de vídeo low-tech e acopladas ao corpo de performers por intermédio de próteses ortopédicas. Parte fundamental de seu projeto poético, vem sendo desenvolvida por ele desde a década de 1980, em centenas de atuações e performances diferentes entre si, que são apresentadas tanto no Brasil quanto no exterior. Para um maior aprofundamento, procurar em www.videocriaturas.hpg.com.br. volta ao texto 13 Giselle Beiguelman proferiu palestra sobre arte on-line em 30 de novembro de 2002, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, na qual abordou os trabalhos e as questões aqui relacionados. volta ao texto 14 Para maiores informações sobre este trabalho de Beiguelman, pesquisar em www.desvirtual.com/nike, bem como no texto curatorial "Na rede". [MELLO, Christine. Na rede. In: 25ª Bienal de São Paulo: Iconografias metropolitanas - Brasil. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2002, p. 165.] volta ao texto 15 Ver www.desvirtual.com/egoscopio. volta ao texto 16 Ver www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/paisagem0. volta ao texto 17 O endereço do site é www.paleotv.com.br/contagio. volta ao texto 18 Ver www.eco.ufrj.michelin/sm/mmm. volta ao texto 19 Ver www.lucialeao.pro.br/pluralmaps. volta ao texto 20 BASTOS, Marcus. Samplertropofagia: das relações entre literatura e tecnologia. São Paulo: PUC-SP, 2002. (Palestra proferida em 25/11/2002 no seminário "Poéticas Digitais e o Corpo Biocibernético".) volta ao texto 21 PLAZA, Julio. O mimético, a interferência e o instante nos MM (mass media). In: BASBAUM, Ricardo (org.). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 275. volta ao texto
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Posted by Leandro de Paula at 4:39 PM
agosto 25, 2006"desmemórias", webclip de Giselle BeiguelmanEstranho paradoxo desmemórias é um webclip sobre os não-vestígios de nosso passado recente. Uma história feita de hiatos, pontuada por máquinas de visão e comunicação que moldaram o presente e desapareceram. Computadores Amiga, Mac Classics, Ataris, disquetes de 5 e ¼, 486s, 386s, XTs, celulares de 500g, monitores de fósforo, antigos seriados e "reclames" de TV, são os personagens desse quase-documentário de memórias decompostas, em que se cruzam refugos midáticos, lixo tecnológico e afetos eletrônicos. Benjamin, olhando Paris no século 19, se perguntava, se é a modernidade nossa antiguidade. Nos anos 1960, Robert Smithson redirecionaria a questão lembrando que "ao invés de nos lembrar do passado, os novos monumentos parecem fazer-nos esquecer do futuro". desmemórias parte dessas matrizes. As imagens passam em ritmo acelerado e são, propositalmente, trabalhadas no limite de seu apagamento, cruzando-se e superpondo-se com scripts algorítmicos que confundem os limites entre textos e imagens, enquanto trilhas sonoras de diversas épocas embaçam a racionalidade cronológica, intoxicando-nos com o delírio do presente permanente de nossas ruínas midiáticas. Pré-requisitos: pop-up liberadas, flash, Internet Explorer 6 ou superior, áudio ON, banda larga. desmemórias foi desenvolvido a convite do Itaú Cultural para a mostra Cinético_Digital (2005). Giselle Beiguelman
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agosto 22, 2006QUADROS MECÂNICOS Fisionomias urbanas por Nelson Brissac Peixoto - parte 1QUADROS MECÂNICOS - Fisionomias urbanas Nelson Brissac Peixoto, publicado originalmente no livro Paisagens Urbanas, editora Senac São Paulo, 1996. Uma paisagem dentro de uma caixa de vidro, pendurada na parede. Em primeiro plano, crianças brincando junto ao porto, mais atrás, duas mulheres se dirigem às barracas da feira, sob as árvores e, ao fundo, a torre da igreja se destaca contra o céu. O mecanismo do relógio põe em movimento - aos solavancos - os barcos, a roda-d'água, o cata-vento, as janelas e as pessoas. Uma paisagem mecânica. O quadro mecânico é um dispositivo de passagem. Tudo está contido nele. Ali se passa de um tempo a outro, de uma dimensão a outra. Ligação entre primeiro plano e fundo, entre retrato do cotidiano e imagem de terras longínquas, entre pintura e aparelho ótico, entre o real e a ilusão. Intersecção entre o quadro e o cenário de feira, entre a literatura de folhetim e o museu de cera, entre a obra de arte única e a reprodução técnica, entre miniatura e arquitetura, entre o jogo de armar e a cidade. Passagem entre pintura e arquitetura e fotografia e cinema e urbanismo. A cultura contemporânea, quando entram em crise os sistemas modernos de pensar e ver que até há pouco garantiam a identidade e o lugar das coisas, remeteria a esses antigos dispositivos. Assim é que a produção artística mais recente, como os retratos compósitos de Rosângela Rennó e o cinema fenakistocópico de Jorge Furtado, reconstitui os quadros mecânicos. O olhar contemporâneo vai partir daqueles velhos mecanismos. Uma mutação essencial na natureza da visualidade ocorreria na primeira metade do século XIX - quando o olhar direto passa a ser substituído por práticas em que as imagens visuais não fazem mais nenhuma referência à posição de um observador no mundo. Uma reorganização da visão, que produziria um novo tipo de observador, um novo e heterogêneo regime do olhar. Uma transformação no campo de visão que ecoaria um século depois, com a fotografia e o cinema, e reafirmaria hoje sua atualidade, com a implantação de espaços visuais fabricados pelo computador e pela imagem eletrônica. (1) Uma nova modalidade de espectador toma lugar, quando se passa da câmera obscura - paradigma da visão nos séculos XVII e XVIII - para os aparelhos óticos, em particular o estereoscópio. Os aparelhos de produção de efeitos "realistas" na cultura visual de massa eram na verdade baseados numa radical abstração e reconstrução da experiência ótica. O olhar ganha uma mobilidade e uma intercambialidade sem precedentes, abstraído de qualquer referente ou lugar. (2) Surge um "observador ambulante", formado pela convergência de novos espaços urbanos, tecnologias e imagens. Deixa de existir a própria possibilidade de uma postura contemplativa. Não há mais um acesso único a um objeto, a visão é sempre múltipla, adjacente, sobrepondo outros objetos. Um mundo em que tudo está em circulação. Essa mutação nos princípios da visualidade, pelo deslocamento do observador, já estava esboçada antes: as vistas de Veneza por Canaletto apresentam uma cidade que só é inteligível como uma articulação de múltiplos pontos de vista. Variações que façam as coisas aflorarem desse espaço confuso, organizando-as como num cenário. Próprias de uma cidade barroca, textura aberta, sem referência a um significante privilegiado que lhe dê orientação e sentido. Não por acaso as vistas urbanas de Canaletto são uma referência para os arquitetos contemporâneos que se defrontam com metrópoles desprovidas de centro e perfil A pluralidade de vistas foi condição para a formação de um observador competente para consumir as vastas quantidades de imagens e informações que começavam a ser postas em circulação no século XIX. Densidade e complexidade que também caracterizariam a imagem contemporânea, determinada pelo vídeo. O campo visual é convertido numa superfície de inscrição, em que um amplo leque de efeitos poderá se produzir. Uma nova disposição da paisagem - uma nova visualidade - afirma-se aqui. Uma superfície planar, desprovida de profundidade, em que os elementos são justapostos. Onde o olhar se desloca lateralmente, multiplicando os pontos de vista. Um espaço de agregação de várias perspectivas e linguagens. A paisagem convertida num daqueles antigos cenários automáticos dentro de uma caixa de vidro, um quadro mecânico. Mas os instrumentos do ver podem apreender a imagem da metrópole? Esse paisagismo urbano está assentado em aparatos ótíco-mecânicos - os dioramas, os cenários pintados em barracas de tiro ao alvo e os cartões-postais de celofane - que ainda vacilavam nos limites do mundo moderno. O retrato da cidade é traçado no universo menor e profano dos dioramas e decalcomanias. (3) Essa idéia de que é nos objetos mais banais do mundo cotidiano que foi se aninhar o sublime das grandes paisagens cristaliza-se mais claramente no surrealismo. Caber-lhe-ia a glória de ter primeiro pressentido a energia contida naquilo que é "antiquado", nas primeiras construções de ferro, nas primeiras fábricas, nas fotografias mais antigas, nos objetos que começam a cair em desuso. Ninguém até então tinha percebido até que ponto a miséria da arquitetura e dos interiores podia se converter no seu contrário. O surrealismo resgata esse horizonte urbano vulgar e desolador. Ele dá voz a esse mundo de coisas, em cujo centro está a cidade. (4) O flâneur é esse novo observador. Com seu passo lento e sem direção, ele atravessa a cidade como alguém que contempla um panorama, observando calmamente os tipos e os lugares que cruza em seu caminho. Com esse seu jeito de passear, como se recolhesse espécies para uma verdadeira, tipologia urbana, ele está "a fazer botânica no asfalto". Ele faz "um inventário das coisas": o trabalho de classificação característico da época. Não por acaso surge ao mesmo tempo que as chamadas "fisiologias", um gênero literário popular que se dedicava a descrever os tipos humanos que se podiam encontrar na rua e todos os cenários urbanos possíveis em que se poderia viver. Pode-se dizer então que, uma vez na rua, nosso caminhante "olha a sua volta como em um panorama". Esse modo de andar na cidade, a arquitetura das galerias, o dispositivo ótico-mecânico dos panoramas, das feiras e dos jogos infantis constituem modos combinados de ver a cidade. Trata-se, diz Benjamin, de uma literatura panorâmica: os folhetins imitam "o primeiro plano plástico e, com seu fundo informativo, o segundo plano largo e extenso dos panoramas". (5) Como um tableau mécanique. As fisiologias pertencem ao mesmo universo dos herbários e das coleções. Ao caducarem, no século XVIII, os antigos modos de relacionamento e hierarquização das coisas, cria-se um novo espaço, em que as coisas agora se justapõem. Um espaço de vizinhança em que tudo pode vir se colocar, onde os seres se apresentam uns ao lado dos outros. O jardim botânico, os acervos zoológicos e o gabinete de história natural apresentam as coisas num quadro. (6) O gênero do tableau é a forma preferida dos folhetinistas e historiógrafos nos séculos XVIII e XIX. O quadro permite, em pouco espaço, pôr em cena usos e costumes, caracteres sociais e conflitos. Mostrar a fisionomia da grande cidade, condensando num instantâneo sua complexa simultaneidade. Daí prestar-se à mistura de gêneros. O tableau urbano, esse gênero conciso, é apropriado para satisfazer simultaneamente os diversos tipos de abordagem. (7) Ele configura pontos topográficos do mapa de uma cidade com toda a sua carga arquitetônica, histórica, simbólica ou resultante da experiência e da memória pessoais. O tema da flânerie implica uma teoria da visão. Justamente para mostrar que não se trata mais de um olhar imediato, como o daquele que contempla uma paisagem. Baudelaire usa o termo flâneur para definir o tipo de observação que ele admira no pintor parisiense Constantin Guys, recorrendo para isso a anotações feitas por Poe. Benjamin observa Baudelaire observando, por meio de Poe, o pintor. Ele usa a figura do transeunte e a poética baudelairiana como lentes através das quais se pode ver a vida parisiense. Paris, o objeto da pintura de Guys, é trazida aos olhos do leitor através de uma série de mediações. (8) O flâneur aponta para os limites do realismo do século XIX. Combina o olhar casual daquele que passeia com a observação atenta do detetive, vê a cidade ampla como uma paisagem e fechada como um quarto: instaura um modo complexo de visão, construído através de sobreposições ou seqüências de diferentes formas de espaço, de descrições, de imagens. A experiência da flânerie transforma a rua num aparato ótico semelhante às arcadas e aos panoramas. A rua como um dispositivo do olhar. Essa idéia de um espaço e um sujeito óticos - em que o centro (fixo) é substituído pelo ponto de vista (para várias direções) - é essencialmente barroca. (9) Tudo então se justapõe, todas as dimensões se encaixam no mesmo quadro. Se, por um lado, a cidade se abre como um espaço sem limites - paisagem -, por outro, também se encerra numa redoma fechada - o quarto. Um teatro mecânico, uma barraca de feira. A rua convertida em interior: as butiques parecem armários. O próprio protagonista da experiência urbana integra-se a esse cenário. A figura do flâneur avança sobre a calçada de pedra "como se ele fosse animado por um mecanismo de relojoaria". O passante é um personagem desse presépio, dessa pintura mecânica. Um autômato: "seu coração assume a cadência de um relógio". Daí o fenômeno de sobreposição (colportage) do espaço ser a experiência fundamental daquele que passeia. A expressão remete às coisas de menor valor, dessas vendidas em grandes quantidades em feiras - colporter é anunciar, atividade do mercador ambulante, que vende quinquilharias. Alude às formas populares de representação, como as pinturas de barracas de parques de diversão - centrais na teoria da arte moderna em Baudelaire. O efeito permite perceber simultaneamente tudo o que acontece potencialmente num mesmo espaço. Implica condensação de diversos eventos num só lugar ou narrativa. A colportage junta todas as coisas como num quadro taxinômico. Notável a atualidade do fenômeno: a imagem contemporânea é também uma justaposição - em contigüidade - de diversos suportes, tempos e dimensões. Desde o renascimento, com a perspectiva, as coisas eram percebidas como distribuídas no espaço. O olhar percorria a extensão vendo antes o que está em primeiro plano, depois o que vem mais atrás e só por fim o que está no fundo. O olhar avançava em profundidade, se fazia no tempo e no espaço. Aqui, ao contrário, tudo o que está em determinado lugar é percebido simultaneamente. O espaço perde suas coordenadas, o fundo se confundindo com o primeiro plano. Como faziam as histórias de folhetim da época - chamadas de colportage -, que mostravam terras exóticas como se fossem familiares, misturando o próximo e o longínquo, o passado e o presente. Tudo - tanto o que está na frente quanto ao fundo - é visto ao mesmo tempo. Isso porque, na flânerie, "as distâncias irrompem na paisagem", assim como épocas passadas surgem no momento presente. Nesse estado inebriante, diz Benjamin, se passa aquilo que podemos visualizar numa daquelas pinturas mecânicas do século XIX, "em que vemos, em primeiro plano, um pastor a tocar flauta, junto a ele duas crianças a se embalarem ao ritmo, mais atrás dois caçadores na caça a um leão e, por fim, bem ao fundo, um trem a atravessar uma ponte ferroviária". (10) De repente, como numa iluminação, tudo nessas paisagens caóticas se põe no seu lugar, todos os planos se sobrepondo no mesmo quadro. A figura do quadro mecânico será fundamental nesse paisagismo moderno. Aí então a cidade parece funcionar segundo uma articulação automática, como se tudo de repente tivesse naturalmente se encaixado. Um momento em que percebemos que tudo está no seu lugar, como que distribuído na paisagem. Veremos como nas galerias as coisas que se acumulam, exibidas nas vitrines, encontram suas próprias composições. Uma constelação mecânica. A cidade fica parecendo um presépio, uma paisagem dentro de uma redoma de cristal. Benjamin descreve assim, em seus diários de Moscou, um desses "quadros mecânicos", que encontrou no museu de brinquedos da cidade: "um relógio mecânico, uma paisagem no interior de uma caixa de vidro pendurada na parede. O mecanismo estava quebrado, e o relógio, cujas batidas antigamente punham em movimento moinhos de vento, rodas-d'água, venezianas e pessoas, não funcionava mais". (11) Uma paisagem cuja dinâmica era produzida por engrenagens. Literalmente, uma paisagem mecânica. O esmagamento da perspectiva - essa telescopagem dos planos -, próprio da pintura moderna e da fotografia, já é anunciado por Proust. Suas descrições da pintura imaginária de Elstir - inspirado em Manet -remetem a um efeito de aproximação inaudita, de uma interpenetração generalizada de partes heterogêneas da paisagem: "um navio em pleno mar, ocultado em parte pelas destacadas edificações do arsenal, parecia navegar no meio da cidade [...]". (12) Esses planos que se sobrepõem sem profundidade correspondem à perspectiva telescópica de Proust. Não por acaso o telescópio é o instrumento ótico escolhido por ele como modelo de sua descrição dos fenômenos. Já se mostrou como também Kafka faz de Praga um labirinto de vasos comunicantes, tirando proveito estético do peculiar traçado da cidade na trama da sua narrativa. Enquanto as cidades em geral destacam o espaço interno do externo separando casas, ruas, praças e bairros, no miolo de Praga o espaço aberto está ligado ao ambiente privado por inúmeras passagens internas que levam o cidadão de uma rua a um pátio ou a outra rua pelo interior das residências. Tem-se então acesso direto a qualquer domínio público ou particular, passando continuamente de um lugar a outro. Até os apartamentos ali são diferentes, pois, em vez dos corredores isolando os aposentos, temos espaços que entram uns nos outros. As passagens internas instalam uma contigüidade de espaços que determina a topografia da cidade e o itinerário do caminhante. (13) Benjamin se contrapõe ao pitoresco, que toma as coisas a distância. Interessam-lhe outros modos de resgatar a paisagem. Conjurá-la, como faz o poeta, com uma nova chamada: a ilusão ótica. Toda uma nova teoria da arte - moderna - está emergindo daí. Examinando uma exposição de quadros de paisagem, Baudelaire diz que gostaria de voltar aos dioramas, cuja "magia grosseira" impõe uma "ilusão útil", que prefere contemplar cenários de teatro, em que encontra, "expressos com arte e trágica concisão", seus mais caros sonhos. "Estas coisas, porque falsas, estão infinitamente mais próximas da verdade, enquanto a maioria dos nossos paisagistas mente, justamente porque se esquecem de mentir." (14) Uma outra noção de paisagem: condensada num cenário, numa superfície pintada. A visão do horizonte e do perfil das cidades por meio de dispositivos ótico-mecânicos. Cenários de teatro, cartões-postais. Ao contrário da pretensão à verossimilhança - a ocultação de todo artifício -, o poeta defende essas imagens justamente no que têm de falsidade e grosseria. Um poder de significação que deriva, paradoxalmente, da própria singeleza e artificialidade mecânica dessas paisagens. Benjamin compreendeu isso: Baudelaire "insiste no fascínio da distância e avalia uma paisagem diretamente pêlos padrões das pinturas das barracas de feira. Quer talvez ver destruído o encanto da distância, como ocorre ao espectador que se aproxima demais de um cenário?". (15) A renúncia ao encantamento do distante é um elemento decisivo na lírica de Baudelaire. A singela distância das paisagens de barracas de feira, esse horizonte azulado - evidentemente pintado -, não se desfaz com a aproximação, tal como tende a ocorrer com qualquer cena após o primeiro olhar. Não se estende, espalhafatosa e prolixa, quando se chega perto, mas apenas se ergue, ainda mais fechada e ameaçadora, à nossa frente. É isso que dá aos cenários teatrais seu caráter incomparável. Os cenários se contrapõem à pintura paisagística tradicional. Para Brassai Um imaginário urbano resultaria desses mecanismos de ilusionismo ótico. Balzac já apontava para a paisagem formada pelos telhados de Paris, "uma savana a cobrir abismos povoados". Mas o procedimento é inspirado em Baudelaire: os Tableaux parisiens efetuam uma "transfiguração da cidade em paisagem". Eles colocam a cidade em confronto direto com o céu, os poucos elementos efetivamente urbanos se confundindo com o horizonte. Seu cenário é, na verdade, a cidade mergulhada na bruma. (16) As vistas de Benjamin transformam a cidade numa floresta, quando afirma que "o nome das ruas deve soar como o estalar do graveto seco ao ser pisado, e as vielas do centro da cidade devem refletir as horas do dia tão nitidamente quanto um desfiladeiro". (17) O arfar de uma respiração, como o latejar da floresta, e o brilho do sol nos edifícios é que dão vida a esse horizonte. É próprio da alegoria fazer da natureza uma história e transformar a história em natureza. (18) A cidade se converte em objeto da ciência natural, com suas arquiteturas classificadas como espécies variadas. É assim que a cidade pode aparecer como uma paisagem. Baudelaire, com o tema das nuvens, em Paysage, já operava essa transformação de Paris. Suas ruas são abismos por cima dos quais, bem alto, passam nuvens. Proliferam, na época, descrições da cidade como se fosse uma mata, onde as Tulherias aparecem como uma imensa savana plantada com bicos de gás no lugar de bananeiras. Uma descoberta: em Paris se pode andar por montes e vales, como no campo. Uma transfiguração se produz aqui. Na flânerie "a cidade abre-se diante do transeunte como uma paisagem sem soleiras". Seu caminhar distraído não só a encerra em interior, mas também a descortina como cenário. "Paisagem - eis no que se transforma a cidade para o flâneur." (19) Benjamin aqui está retomando metáforas entranhadas na cultura ocidental desde o medievo, quando a floresta substitui o deserto como lugar de tentação e perdição. (20) A mesma cidade que, em Le paysan de Paris, Aragon atravessaria como se fossem campos cheios de ruínas. As vistas de Paris por Charles Meryon, mostrando uma cidade inerte, petrificada, como se fossem imagens premonitórias da destruição, que trariam as reformas urbanas no Segundo Império, exemplificam para Benjamin esse processo de mobilização do observador. Não apenas a água-forte é um contraponto às novas técnicas de reprodução. As imagens de uma cidade mineral, como um sítio arqueológico, parecem se opor à mobilização geral da modernidade. Anunciam a aniquilação do espaço pela circulação, da mesma forma que alguns artistas contemporâneos, como Kiefer. Indicam o papel das novas temporalidades, velocidades e experiências de obsolescência na estruturação da memória visual. (21) As galerias são um meio-termo entre a rua e o interior. Um espaço ambíguo. É um dos locais em que a metamorfose da cidade se processa. Ela transforma os bulevares em interiores. Cada passagem é "como uma cidade, um mundo em miniatura". A cidade numa galeria, num recinto fechado. A paisagem urbana como um skyline encerrado num globo de cristal, como um panorama. A cidade convertida em interior. A cidade se descortina, na galeria, como uma paisagem. A iluminação a gás promove, em seu interior, a metamorfose da cidade em selva, em mundo astral. Até seus nomes sugerem espetáculo e terras exóticas, olhar e viajar: "Passagem dos panoramas", "Passagem do Cairo". "Passagem da ópera"... Nessa figura arquitetônica está sintetizado o princípio da articulação entre todas as coisas. As galerias são passagens entre o interno e o externo, o passado e o presente, a cidade e a natureza, o mundo conhecido e as distantes terras exóticas. A passagem é a construção arquitetônica do quadro mecânico. Essa proliferação de dimensões e eventos num mesmo lugar é o fenômeno de sobreposição do espaço, o mesmo efeito provocado pela flânerie. Dá a perceber simultaneamente tudo o que se passa num único local. Fenômeno contemporâneo: uma superfície sem profundidade, onde tudo se inscreve, onde todos os planos se superpõem. Como uma tela de vídeo, uma interface. É por isso que os museus de cera, a forma mais acabada da coleção, se instalaram nas passagens: o múltiplo emprego das figuras nesses museus é o melhor exemplo desse efeito espacial. A multiplicação infinita de significados suprime toda determinação local. O espaço é reduzido a uma mudança permanente de ângulos visuais, à neutralização de todo ponto de vista determinado. Ubiqüidade do observador em movimento, dilatação do espaço produzida pela abundância de espelhos, pela multiplicação das perspectivas. As passagens são "galerias de reverberações óticas". A arquitetura funciona aqui como um aparato do olhar. Essa "arquitetura da visão" -que nada tem de contemplativa, remetendo antes à experiência tátil da arquitetura moderna - é outra figura barroca. (22) Nada nas arcadas - mundo de vitrines e espelhos - parece olhar. Tudo é, ao contrário, anonimamente observado - como numa anamorfose. É o triunfo do panóptico sobre o olho: a concretização moderna da "primazia da ótica", inerente à alegoria barroca. (23) O grande axioma do barroco: ser é ver. O olho barroco atribui primado ao dispositivo ótico. Pintura da pintura, espelho de imagens: a visão alegórica põe em cena o próprio Ver. O olho do pintor, como em As meninas, de Velásquez. Tudo é revelador da potência ocular. (24) O espaço arquitetônico aparece tal como visto num miriadorama, instrumento para ver miragens. A passagem é um dispositivo que permite ter uma visão completa do lugar - um "belvedere ótico". Suas superfícies interiores, as fachadas com letreiros e as vitrines espelham, difundindo ao infinito, todas as imagens da época. As galerias eram também decoradas, em seu interior, com murais. Wiertz foi o grande pintor das passagens. Seus quadros - comportando muitos elementos do panorama - são realizados em dimensões gigantescas e procuram alcançar a mesma reprodução perfeita, em trompe-l'oeil, da realidade. Para ele, essas pinturas colocavam o problema do relevo, da ilusão irretocável de profundas perspectivas, resolvido pelo estereoscópio. (25) Um exemplo acabado da "pintura mecânica" do século XIX, Wiertz associava temas sociais e ilusionismo de relojoaria. Não por acaso Benjamin irá defini-lo como um "materialista mecânico". Toda a cidade é construída como uma casa de espelhos. É também um traço barroco converter a cidade num teatro: não há distinção entre espaço real e ilusório, arquitetura construída e aparato cênico. (26) Supressão das fronteiras entre pintura e arquitetura, entre arquitetura e cidade. Tudo é objeto de percepção. O conjunto passagem-panorama-espelho é que funda esse paisagismo reflexivo - ótico - da cidade moderna. A galeria realiza o modelo ótico - o imperialismo do ver - do flâneur. (27) O ilusionismo tem sua tradução na própria paisagem urbana: as perspectivas. Um dos princípios básicos do paisagismo, da visão panorâmica, tornar-se-ia no século XIX um leitmotiv do próprio urbanismo. Haussmann revoluciona o traçado de Paris, abrindo amplas e retilíneas vias sobre as ruelas tortuosas dos bairros antigos. Seu ideal urbanístico eram as visões em perspectiva através de longas séries de ruas. Tudo aqui é dispositivo cênico, construção ótico-mecânica. (28) A cidade toda é convertida num panorama. A época das passagens coincide com o momento de maior difusão dos panoramas. Não por acaso eles eram construídos, muitas vezes, numa das extremidades das galerias. As "estampas de viagem" eram fixadas numa tela circular, com os espectadores no centro. Cada imagem passava por todas as posições das quais se podia ver, através de uma dupla janela, a "lonjura esmaecida" da paisagem. Uma estrutura de madeira formava a moldura das estampas. Todos os princípios do cinema já estão colocados aí. Assim, a intervalos regulares, as montanhas, as cidades com suas janelas reluzentes, os nativos distantes e pitorescos, as estações ferroviárias com sua fumaça amarela e os vinhedos nas colinas se retiravam, aos solavancos, para dar vez a uma outra imagem. Os panoramas consistiam em grandes telas circulares e contínuas, pintadas em trompe-l'oeil, instaladas nas paredes de uma rotunda, com uma plataforma central elevada para o observador. Um espetáculo de ilusão ótica por efeito da direção e intensidade da luz sobre grandes quadros pintados, vistos a certa distância e de um local escuro. Mais tarde foram introduzidos elementos arquitetônicos e de cenografia, para aumentar os efeitos de profundidade e evitar soluções de continuidade. O panorama constituía um vasto quadro abarcando todo o horizonte do espectador, fazendo-o experimentar a sensação de estar contemplando uma paisagem como se estivesse no cume de uma montanha. (29) Essa nova técnica cria uma relação diferente com a paisagem. (30) Tal como as construções de ferro e vidro procuravam fazer da cidade uma paisagem - "um mundo em miniatura" -, os panoramas tentavam se transformar, mediante artifícios técnicos, em "teatros de uma imitação perfeita da natureza". Os painéis reproduzem, minuciosamente, toda a cidade. "Rua por rua, casa por casa." Por isso, chamavam-se panoramas. Essa determinação a tudo ver, compartilhada pela literatura de folhetim, a obsessão classificatória do colecionismo, é a mesma dos aparelhos de olhar que proliferavam na mesma época. Todos buscam a miragem da visão total. Os panoramas deixam transparecer um pathos típico do século XIX: ver. Tal como a natureza é trazida para a cidade, por sua vez, a cidade é convertida num horizonte natural. Nos panoramas, arremata Benjamin, a cidade ganha as dimensões de uma paisagem, como também ela o seria, mais sutilmente, para o flâneur. A mesma disposição a visitar outros tempos e lugares manifesta nas feiras e nas histórias de aventuras. A comparação com a literatura de folhetim - espécie de "dioramas morais" -, feita primeiro com a experiência do flâneur, é válida também para os panoramas. O estilo, a diversidade e, sobretudo, a técnica de construção das fisiologias, o sistema de catalogação que distribui todas as coisas num painel, encontram um equivalente perfeito nos panoramas. "O primeiro plano, visualmente elaborado, mais ou menos detalhado, do diorama tem seu correspondente na roupagem folhetinesca dada ao estudo social, constituindo um amplo pano de fundo análogo à paisagem." (31) Uma disposição espacial onde tudo tem lugar, que teria sua forma acabada na "pintura mecânica". O kinetoscópio satisfaz o olhar: o fundo negro e o centramento forçado do objeto limitam a amplitude do campo. Já nas vistas de Lumière, o olhar passeia, se perde: se exerce num campo. O cinematógrafo se integra no processo de liberação do olhar no século XIX. Como também contribuiria, mais tarde, o instantâneo fotográfico. Mas desde a camera ottica de Canaletto se configura uma visão do mundo como um campo de cenas potenciais, percorrido por um olhar que só se imobiliza para enquadrar. (32) O panorama é o paradigma do olho móvel. Sua plataforma central, exígua, obriga o espectador a se deslocar, a girar o olhar. Alimenta a visão, limitando seu espaço. O verdadeiro início pode então ser localizado no trompe-l'oeil. E seu prolongamento cinematográfico no cine-olho - a câmera móvel -, de Vertov. Uma completa reorganização do regime da visão - dos princípios da visualidade - está se processando aqui. A constituição do observador autônomo, sem referência a um lugar, móvel. O panorama circular quebra com o ponto de vista localizado da perspectiva pictórica, permitindo ao espectador uma ubiqüidade ambulatória. O mesmo esquema da visão do flâneur nas ruas. O diorama iria mais longe, retirando a autonomia do observador, situado numa plataforma que se movia lentamente, possibilitando vistas de diferentes cenas e mudanças nos efeitos de luz. O olhar é adaptado a formas mecânicas de movimento. Tudo depende da variação da iluminação, mais fraca ou intensa, magnífica ou terrificante. A obscuridade inicial que reina sobre a cena dá, aos poucos, lugar à luminosidade quase imperceptível e difusa da aurora. Uma paisagem se desenha com crescente nitidez, as árvores saem da sombra, o contorno das montanhas e das casas torna-se visível. O sol eleva-se cada vez mais alto, por uma janela vê-se o fogo na cozinha da casa, e, no canto da paisagem, um grupo de camponeses está sentado em torno de uma fogueira, cujas flamas vão ficando mais vivas. A claridade do dia então diminui, até cair a noite. Mas logo o luar se faz sentir, e a paisagem torna-se novamente perceptível. No primeiro plano, acende o farol de um navio no porto, e, ao fundo, numa igreja sobre a colina, as velas do altar são iluminadas. (33) Todo o movimento do mundo, o fluir do tempo, se ofereceu na tela pintada, transparente, com pequenas fontes de luz instaladas atrás, que a clareiam com seu fulgor artificial. E a "arte de ilusão" dos dioramas, a paisagem como um quadro mecânico. Daí a peculiar relação dessa arte dos panoramas com a natureza: uma tentativa extrema de imitar seu objeto. Fenômeno de "transição entre a arte e a técnica de copiar a natureza", o panorama implica resgatar o trompe-l'oeil, um realismo em que o objeto representado parece ao alcance da mão. Aquelas cenas instáveis e esmaecidas tinham o poder de suprimir as distâncias. Os dioramas, essas caixas que conservavam o antigo e o exótico, são "aquários do distante e do passado". O mesmo vale para o fato de, nos dioramas, as mudanças de luminosidade que o dia provoca na paisagem se fazerem em apenas meia hora. Essa aceleração, precursora do ritmo do cinema, introduz - sinteticamente - o fator tempo. Como a flânerie, faz irromper o distante e o passado no aqui e agora. O dia escoa diante do espectador com a mesma velocidade que passa para o leitor de Proust. É o século do feérico, da sobreposição das dimensões, em que a técnica está a serviço da ilusão. No panorama, a cidade se amplia em paisagem e, ao mesmo tempo, se converte em interior, miniatura. Alarga-se como um horizonte ao ser condensada num cenário. O panorama é, como as passagens, uma fantasmagoria de cidade. Aí reside, para Benjamin, o interesse do panorama: "nele é que se vê a verdadeira cidade". A cidade dentro de uma garrafa. Não viria daí o prazer eterno que - como o teatro, que fecha as portas logo que começa o espetáculo - proporcionam essas rotundas sem janelas? Daí a semelhança com as galerias. Os passantes nas arcadas parecem habitantes de um panorama. Os dispositivos óticos - como as barracas de feira, os halls de exposições, os museus de cera e os pavilhões termais - não têm exterior. A cidade é construída em trompe-l'oeil. A história do vidraceiro, contada em Le spleen de Paris, retoma a visão da cidade como um cenário, uma paisagem vista através das lentes de um caleidoscópio. Baudelaire percebe um vidraceiro avançando, em meio à pesada e suja atmosfera parisiense, em sua direção. Tomado de indignação, o poeta derruba-o no chão, aos gritos, quebrando seu carregamento de cristais: "Mas então não tens vidros coloridos? Vidros rosa, vermelho, azul, vidros mágicos, vidros do paraíso? Como ousas andar em bairros pobres, sem ter vidros que façam ver bela a vida!". (34) Não se trata, para ele, de cristais translúcidos, que permitiriam uma visão mais perfeita. Mas de vidros coloridos, puro artifício, capaz de metamorfosear aqueles tristes horizontes. Uma paisagem técnica surge daí. Feita de fotos, tabuletas, folhetos de propaganda, revistas ilustradas e projeções do cinematógrafo. Um horizonte de imagens em duas dimensões, como um cartaz, erguido com figuras recortadas na superfície, fachadas e aparelhos. (35) Zootrópico NOTAS 1 Essa noção de uma "nova visualidade" tem sido desenvolvida por vários autores norte-armericanos. Ver artigos reunidos por Hal Foster, Vision and Visuality (Seattle: Bay Press 1988). volta ao texto 2 Jonathan Crary, Techniques of the Observer: on Vision and Modernity in the 19th Century (Cambridge: MIT Press, 1990). volta ao texto 3 Davi Arrigucci Jr. Discute, em Humildade, paixão e morte, cit., através da obra de Manoel Bandeira, as possibilidades de uma poética moderna. Para ele, o "alumbramento", o instante de revelação, é conciliável com uma visão moderna, na medida em que se dá no chão profano da vida cotidiana, em meio às coisas mais simples e banais. De onde o sublime é extraído, à força de um "estilo humilde". volta ao texto 4 Walter Benjamin, "O surrealismo", em Obras escolhidas, vol. I cit., p. 27. volta ao texto 5 Walter Benjamin, "Paris do Segundo Império", em Obras escolhidas, vol. III, cit., p. 34. volta ao texto 6 Michel Foucault, Les mots et les choses (Paris: Gallimard, 1966), p. 143. volta ao texto 7 Willi Bolle, Fisionomia da metrópole moderna, cit., p. 331. volta ao texto 8 J. Rignall, "Benjamin's Flaneur and the Problem of Realism", em Andrew Benjamin (org.), The Problems of Modemity (Londres: Routledge, 1989). volta ao texto 9 Gilles Deleuze, Le pli: Leibniz et le barroque (Paris: Minuit, 1988), pp. 28-29. volta ao texto 10 Walter Benjamin, "O flâneur", em Obras escolhidas, vol. III, cit., p. 190. volta ao texto 11 Walter Benjamin, Diário de Moscou, cit., p. 125. volta ao texto 12 Pascal Bonitzer, Décadrages, cit., pp. 43-44. volta ao texto 13 Modesto Carone, "Nas garras de Praga", em Folha de S. Paulo, São Paulo, 3-1-1993. volta ao texto 14 Charles Baudelaire, "Salão de 1859", em A modernidade de Baudelaire, cit., p. 139. volta ao texto 15 Walter Benjamin, "Sobre alguns temas em Baudelaire", em Obras escolhidas, vol. III, cit., p.143. volta ao texto 16 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIX siécle: le livre des passages (Paris: Éditions du Cerf, 1989), p. 372. Essa imagem, para ilustrar a diluição - tipicamente barroca - da arquitetura e da cidade na natureza, na paisagem, reapareceria em alguns arquitetos contemporâneos, como Aldo Rossi. volta ao texto 17 Walter Benjamin, "Paris do Segundo Império", em Obras escolhidas, vol. III, cit., p. 73. volta ao texto 18 Gilles Deleuze, Le pli: Leibniz et le barroque, cit., p. 171. Ver também Walter Benjamin, Origem do drama barroco alemão (São Paulo: Brasiliense, 1985). volta ao texto 19 Walter Benjamin, "O flâneur", em Obras escolhidas, vol. III, cit., p. 186. volta ao texto 20 Jacques Le Goff, "O deserto-floresta no ocidente medieval", em O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval (Lisboa: Edições 70, 1990). volta ao texto 21 Jonathan Crary, Techniques of the Observer: on Vision and Modemity in the 19th Century, cit., p. 21. volta ao texto 22 Gilles Deleuze, Le pli: Leibniz et le barroque, cit., p. 30. volta ao texto 23 Fabrizio Desideri, "Le vrai n'a pas de fenêtres: remarques sur l'optique et la dialetique", em Heinz Wismann (org.), Walter Benjamin et Paris (Paris: Éditions du Cerf, 1986). volta ao texto 24 Christinne Buci-Glucksmann, La raison barroque (Paris: Galilée, 1984), p. 30. volta ao texto 25 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIX siécle: le livre des passages, cit., p. 546. volta ao texto 26 Giulio Carlo Argan, História da arte como história da cidade (São Paulo: Martins Fontes, 1992), p. 173. volta ao texto 27 Christinne Buci-Glucksmann, La folie du voir (Paris: Galilée, 1986), pp. 226-227. volta ao texto 28 Bernini já concebia seus "propósitos arquitetônicos em função do panorama. A preferência pelas formas elípticas está em função daquela perspectiva natural que partia das propriedades do olho, e não dos teoremas geométricos, e que, portanto, levava em conta a visão binocular" (Christinne Buci-Glucksmann, La folie du voir, cit., p. 181). volta ao texto 29 François Robichon, "Le panorama, spetacle de l'histoire", em Le mouvement social, nº 131, Paris, 1985. volta ao texto 30 Sérgio Paulo Rouanet, "As passagens de Paris", em As razões do Iluminismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1987), p. 55. volta ao texto 31 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIX siécle: le livre des passages, cit., p. 547. volta ao texto 32 Jacques Aumont, L'oeil interminable, cit., pp. 33-47. volta ao texto 33 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIX siécle: le livre des passages, cit., p. 701. volta ao texto 34 Charles Baudelaire, "Le mauvais vitrier", em Le spleen de Paris (Paris: Le Livre de Poche, 1972), p. 40. volta ao texto 35 Flora Sussekind, Cinematógrafo de letras (São Paulo: Companhia das Letras, 1987). A constituição dessa paisagem técnica no Brasil é localizada a partir dos anos 90 do século XIX. volta ao texto
Posted by Patricia Canetti at 7:56 PM
QUADROS MECÂNICOS Fisionomias urbanas por Nelson Brissac Peixoto - parte 2QUADROS MECÂNICOS - Fisionomias urbanas (continuação) Nelson Brissac Peixoto, publicado originalmente no livro Paisagens Urbanas, editora Senac São Paulo, 1996. (Leia a primeira parte do texto no post acima.) O século XIX foi pródigo em artefatos maravilhosos - instalações de cenários, caixas de olhar, autômatos - capazes de reproduzir a abrangência de um olhar panorâmico sobre o mundo. Engenhos óticos e mecânicos - cujos exemplares mais simples eram encontrados nas feiras - que pareciam comportar, apesar da precariedade, o fascínio das grandes paisagens e dos lugares distantes. Daí a atração que despertavam os dispositivos com espelhos e marionetes movidas a manivela. O próprio Baudelaire se interessa por eles, como demonstram suas descrições sobre o funcionamento desses pequenos aparelhos de magia. Benjamin também nos fala das barracas de brinquedos nas feiras antigas. As tendas de tiro ao alvo apresentam teatros, nas quais o espectador, se acerta na mosca, faz começar a representação. Uma porta se abre, e avança uma prancha de madeira onde bonecos encenam, automaticamente, com seus movimentos sincopados, episódios históricos ou de contos de fadas. Esses gabinetes mecânicos têm espelhos deformantes nas paredes, enquanto, oculto sob as mesas, o mecanismo de relojoaria que impulsiona as criaturas tiquetaqueia perceptivelmente. Os autômatos repetem seus gestos bruscos, até saírem de cena aos solavancos. (36) Com suas paisagens pintadas, feitas de pedaços desarticulados, também parecem quadros mecânicos. O autômato é o equivalente, para o corpo humano, da paisagem mecânica. Esse fascínio pelo maquinismo - que nessa época aparece tanto no corpo como na paisagem - foi depois percebido pelo surrealismo. As figuras de cera, as bonecas, os manequins e os autômatos, metáforas da submissão do homem à disciplina da cadeia de produção industrial, aparecem como exemplo do estranho, do não-humano. (37) O maravilhoso que busca desajeitadamente transcender nossa condição. As lanternas mágicas acabariam resultando, ao fim do desenvolvimento desses "aparelhos de fantasmagoria", nos panoramas e dioramas. As formas mais acabadas, antes da fotografia e do cinema, de reprodução da paisagem. Mas antes tivemos o panóptico - pan (tudo) + óptico (visão) -, sistema de construção que permite, de determinado ponto, avistar todo o interior de um lugar. Assim eram feitas as barracas com figuras de cera nas feiras, "manifestação da obra de arte total", em que se pode "não apenas ver tudo, mas ver tudo de todas as maneiras". O mesmo princípio que o panorama - pan (tudo) + orama (vista) - levaria para o exterior. Ideário máximo da época: obter a visão total, o olhar panorâmico. Uma infinidade de outras máquinas de olhar a paisagem seria criada. Os estereoscópios (sólido + ver) e os panógrafos (tudo + grafo), instrumentos com que se obtém, numa superfície plana, uma vasta perspectiva circular. Além dos estereoramas: caixas com duas imagens nas laterais se refletindo em espelhos colocados no centro, o que provoca uma impressão de relevo, de perspectiva em profundidade. A ilusão de um objeto em três dimensões, o efeito da distância - o próximo e o afastado - produzido por meios óticos. Havia também o ciclorama: grande tela semicircular, azul-clara, situada no fundo da cena de teatro, sobre a qual se lançam as tonalidades luminosas de céu que se deseja obter. Ou ainda aparelhos para a produção de movimento, como o kinetoscópio e, mais antigo, fenakistocópio, capaz de reconstituir também por jogo de espelhos o movimento contínuo de um indivíduo ou o passar do dia. Ver imagens fotográficas pelo estereoscópio tornar-se-ia - ao serem produzidos industrialmente, a partir da metade do século - uma das formas mais populares de entretenimento. Logo havia um visor estereoscópico em cada sala de visitas. Uma placa estereoscópica consiste num par de cópias fotográficas positivas de um mesmo assunto, tiradas de dois pontos de vista ligeiramente diferentes, correspondentes à visão interpupilar. Colocadas no visor, as placas estereoscópicas produzem a ilusão de realidade. (38) A sobreposição delas resulta numa vista em profundidade. Acomodada a visão, o espectador sente o relevo dos objetos, pois, separados os planos, o espaço é ilusoriamente recriado. A tridimensionalidade estereoscópica faz com que partes da imagem se projetem para fora. As figuras se distribuem em diferentes planos no quadro. O efeito não é, propriamente, de volume, mas de distintos planos sobrepostos. Como aqueles cartões que, ao serem abertos, dispõem suas figuras recortadas em diferentes profundidades. O estereoscópio, embora distinto dos dispositivos óticos que produziam a ilusão de movimento, é parte da mesma reorganização do observador promovida pelos panoramas. Os efeitos estereoscópicos dependem da presença de objetos em primeiro plano. São próprios de um espaço obstruído, exatamente como as vistas congestionadas das cidades contemporâneas. Daí a profundidade nessas imagens ser essencialmente distinta da que é própria da pintura ou mesmo da fotografia. Cada elemento na imagem parece chapado, sem que se tenha entre eles um afastamento gradual, uma distância estabelecida. Há apenas uma sucessão abrupta. (39) Como um quadro mecânico. Embora o objetivo seja a ilusão de profundidade, o dispositivo é superficial. Enquanto a perspectiva implica um espaço homogêneo e potencialmente mensurável, o estereoscópio revela um campo agregado de elementos disjuntos. Os olhos atravessam a imagem, vendo-a na sua tridimensionalidade. Mas apenas apreendem áreas separadas. Uma acumulação de diferenças, uma colagem de diversos relevos. O mesmo mundo não-comunicante que produziu a cenografia barroca ou as vistas urbanas de Canaletto. Uma justaposição de primeiro plano e fundo, perto e longínquo, passado e presente. É o espaço contíguo do jardim botânico e do gabinete de história natural. Também o mesmo espaço liso, coleção amorfa de partes justapostas, construído por acumulação de vizinhanças com zonas de indiscernibilidade (entre linha e superfície, entre superfície e volume) que se percebe no mundo dos objetos fractais, na matemática, na arte moderna (com sua linha nômade que passa entre os pontos, as figuras e os contornos) e na cidade contemporânea. (40) A pintura do século XIX também manifestaria algumas dessas características da imagem estereoscópica. Obras de Coubert, Manet e Seurat, com suas descontinuidades de grupos e planos, combinação de profundidade e achatamento, sugerem o espaço agregado do estereoscópio. Ao contrário do que comumente se afirma, o estereoscópio e Cézanne têm muito em comum. Ambos remetem à emergência do espaço construído oticamente. A imagem estereoscópica parece composta - como na pintura - de múltiplos planos, dispostos do espaço mais próximo ao mais afastado. Mas a operação de leitura visual do espaço é totalmente diferente. (41) Quando nos deslocamos pelo olhar, de um plano a outro, dentro do túnel estereoscópico, temos a sensação de reajustar sua acomodação. A ilusão ótica da imagem estereoscópica corresponde à travessia de um panorama real. O tipo de percepção possibilitado pelo estereoscópio e pelo diorama, em que o espectador é transportado oticamente, é comparável ao do cinema. Um outro modo de percepção do espaço, uma outra visualidade, estrutura-se aí. Diferente da contemplação tradicional, do dispositivo perspéctico criado pela pintura. As vistas estereoscópicas têm novas características perceptivas: profundidade e nitidez exageradas, isolamento do objeto e dilatação temporal da atenção (o olhar tem de percorrer mais lentamente cada detalhe da imagem). Princípios que já desvelam o dispositivo ótico que produz a impressão do panorama. Não por acaso as imagens estereoscópicas eram chamadas de "vistas" - em vez de "paisagens". Aí se localiza sua especificidade. O termo evoca a profundidade espetacular da imagem e a autonomia do lugar, recortado do contexto natural. Por isso as "vistas" eram - como os retratos - associadas às narrativas de viagem (colportage). Como as fisionomias e o folhetim, pertencem à mesma vontade de catalogação dos tipos e lugares, característica do século XIX. As "vistas" eram guardadas em móveis com gavetas, semelhantes a um arquivo. Todo um sistema geográfico, uma espécie de atlas topográfico se constituía assim. A paisagem - o lugar longínquo - é classificada e guardada. Atget, mais tarde, faria um mapeamento tipológico de Paris. Sua obra em muito se assemelha a um arquivo fotográfico - com as fotos divididas em seres e classes: as paisagens, a Paris pitoresca, a França antiga... O exterior no interior. O modelo sensorial estabelecido pelas "vistas" estereoscópicas não corresponde mais - antes mesmo da bidimensionalidade moderna - à estética pressuposta pela idéia de "paisagem". Alphonse Bertillon Cesare Lombroso A fotografia e o cinema contemporâneos retomam procedimentos pré-modernos: classificação, tabulação, determinação das coisas pela relação entre elas e não mais isoladamente. A imagem carece de significação como coisa única, vale como elemento de um todo, de um quadro. Não por acaso as fotos de identidade não garantem mais a individualização desses anônimos, servindo apenas de material para tipologias. Até o fim do século XVI, a linguagem era essencialmente um signo das coisas porque parecia com elas. Essa transparência foi destruída com o desastre de Babel: as palavras e as coisas, na formulação de Foucault, se separam. Daí o projeto enciclopédico: reconstituir pelo encadeamento das palavras a ordem do mundo. Um novo problema: como um signo pode ligar-se ao que significa? Para além das palavras do dia-a-dia, constrói-se então uma linguagem na qual reinam os nomes exatos das coisas. Essa nominação é a passagem da visibilidade imediata ao caráter taxinômico. Essas abordagens estão mais próximas da história natural de Lineu (século XVIII) - dedicada a inventariar a forma e o nome de cada ente natural - do que de enfoques mais modernos, como de Humboldt, que passa dessa concepção da natureza recortada em figuras para uma perspectiva em que prevalece a visão de conjuntos paisagísticos. A catalogação feita nos gabinetes científicos é o oposto da visão panorâmica, o olhar lançado ao longe revela a intenção de captar o todo. Esses trabalhos sugerem um retorno à atenção enciclopédica de Lineu. O filme Ilha das flores (1989), de Jorge Furtado, instaura o mesmo dispositivo de acumulação e organização. Não por acaso se passa num depósito de lixo. Tudo ali jogado - objetos deslocados de seus lugares convencionais, reduzidos a um monte de detritos - encontra outros vínculos, constituindo novas constelações. Aqui também temos a repetição obsessiva do esforço de nomear coisas que, no lixo, parecem ter perdido toda denominação. Vontade de restaurar uma cadeia de relações que, na verdade, só é possível pela justaposição de tudo naquela ilha-depósito. Dispositivos de contagem e enumeração do colecionismo. A própria montagem do filme tem caráter enciclopédico, a narração sempre recomeçando do primeiro objeto para reiterar as correlações estabelecidas. A Ilha das flores é, perversamente, um jardim botânico, o único que se pode ter hoje, coleção de espécies arruinadas. A narração repete o tom de livros didáticos, exarcebado até a exaustão. O cosmos vai sendo definido através das mais aleatórias combinações, misturando informações científicas de almanaque e assertivas do senso comum. Um turbilhão classificatório que esvazia o sentido das coisas, levando a sintaxe ao limite. As explicações acabam constituindo uma espécie alternativa de teoria explanatória do mundo. Onde não cabe, porém, a noção de verdade. As formulações sobre a sociedade dos homens, Marx, Freud e a religião não dão conta daquela ilha em que as pessoas são alimentadas com o resto de comida dos porcos, numa completa inversão de valores." (42) Já a instalação Filme de curta-metragem e fenakistocópio (1994) é literalmente uma reconstituição de um desses antigos aparelhos óticos. O cinema aqui é visto quando o encadeamento brusco das imagens ainda deixava perceber a mecânica que sustenta o fenômeno ótico. São dois dispositivos conjugados: numa projeção, o homem-músculo, o operário-máquina, a mulher-esteira. Pessoas sem rosto, só corpo e movimento. O registro cinematográfico desse "trabalho escravo" é uma quase interminável repetição, os gestos encadeados correspondendo à sistemática fabril. O filme remete ao maquinismo do início do século XIX. Tudo funciona aos solavancos, como num antigo panorama ou presépio mecânico. Os indivíduos são reduzidos a autômatos. O mesmo fascínio pela mecanização perversa do corpo que os surrealistas evidenciavam pelo uso de manequins e bonecas desconjuntadas. Ao lado, no aparelho ótico, o caleidoscópio de ofertas da cidade: máquinas de empacotar, botões a varejo, panelas de pressão, decalcomania e outras coisas anunciadas no Jornal de Serviço, de Carlos Drummond de Andrade. Cada uma das noventa ofertas do poema corresponde a uma imagem - xerox, polaroid, slides, cartuns, fotografia digital, desenhos, pinturas... Dentro do objeto, a ilusão de movimento se dá pela estroboscopia causada pelo movimento do objeto. Fora, a luz é estroboscópica, fixando por alguns segundos a imagem do objeto em movimento. Nos dois casos, o ritmo sincopado constitui, graças aos efeitos de persistência retiniana, mecânica da imagem. O fenakistocópio funciona aqui como uma grande coleção de imagens pop. Sua rotação proporciona a associação entre as imagens mediante a contigüidade e a justaposição. Humorais (1993), de Rosângela Rennó, utiliza-se de retratos de identidade 3x4, descartados por estúdios populares cariocas, para refazer os antigos sistemas de classificação dos tipos humanos. Cada figura é apresentada numa caixa metálica, fechada por uma bolha de acrílico translúcido bastante convexa. São rostos in vitro. No interior da caixa, uma lâmpada emite a luz que atravessa um slide de película ortocromática. A imagem, medindo cerca de um metro de altura, é projetada segundo o princípio da lanterna mágica, um dos mais antigos dispositivos mecânicos. Essa reconstituição remete a três sistemas classificatórios: a antiga doutrina dos temperamentos, a doutrina do retrato compósito e o Código Penal. Códigos que buscam compreender e administrar o comportamento humano. Primeiro a antiga doutrina dos humores galênicos, segundo a qual existem quatro fluidos corporais, cujo equilíbrio é essencial à saúde. O predomínio de um desses humores sobre os demais configura o desequilíbrio dos temperamentos bilioso, pletórico, fleumático e melancólico. Um sistema dos temperamentos, que distingue os diferentes tipos humanos em função da predominância de um determinado fluido corpóreo sobre os demais. Uma verdadeira taxonomia das fisionomias, dos tipos humorais, cada um denotando características físicas, comportamento moral e inclinações para atos ilícitos específicos. Rennó acrescenta ao inventário o contemporâneo, não previsto nos esquemas antigos, para incluir aqueles indivíduos sujeitos a "inclinações paradoxais". (43) Os herbários e as coleções ajuntam as coisas num quadro. A história natural aparece como um espaço de variáveis simultâneas, concomitantes, sem relação interna de subordinação ou organização. Os jardins botânicos e os gabinetes desprezam a anatomia e o funcionamento, para destacar o relevo e as relações das formas. Substituem a anatomia pela classificação, o organismo pela estrutura, a série pelo quadro taxinômico. (44) A taxinomia torna-se a constituição e a manifestação da ordem das coisas. Instauração de arquivos, estabelecimento de catálogos, de repertórios, de inventários. Mundo da classificação generalizada. Um grande quadro das espécies, dos gêneros, das classes. Outra referência de Rennó é a doutrina do retrato compósito que esteve em voga no século XIX e previa a tradução visual de características comportamentais. Uma antropologia criminal, que utilizava a fusão de vários retratos fotográficos em uma única imagem para definir perfis raciais e padrões de comportamento. Toda a fisionomia setentista já se baseava no conhecimento do caráter a partir de traços exteriores; a leitura fisionômica implica coleções de retratos e perfis, justaposições de silhuetas humanas e animais. O conhecimento proporcionado por esse tipo de retrato é taxinômico: as partes são separadas do todo e classificadas em sua especificidade. O rosto é uma composição. Os retratos compósitos são "quadros mecânicos". É o mesmo dispositivo de catalogação das fisiologias, que há muito tem sido a base do nosso Código Penal. A fotografia - no esteio de sua vocação ao colecionismo - servindo à identificação policial, aliás um dos primeiros usos que foram dados a essa nova técnica de produção de imagens. Cada humor corpóreo é assim apresentado numa redoma, enquanto, ao lado, outro cilindro apresenta a série correspondente de crimes previstos no Código Penal. A fisionomonia aparece como uma representação de como reconhecer a partir do rosto e gestos de alguém suas tendências, boas e ruins. Entre os que se dedicaram a essa ciência, Cesare Lombroso estabeleceria uma verdadeira fisiologia do delinqüente. (45) Consistia em buscar em criminosos anomalias como queixo proeminente, falta de barba, estrabismo, maçãs do rosto proeminentes, cabelos espessos. O tipo resultante seria o Homo delinquens. Os stigmata degenerationis, as marcas da natureza que o homo delinquens traz no corpo, constituem os signos mais visíveis de uma escritura gravada no corpo de todo criminoso. A essência demoníaca da natureza. A antropologia criminal nasce, portanto, com a descoberta do selvagem, com a identificação do absolutamente estrangeiro. O reconhecimento fisionômico transforma o criminoso na personificação do outro. O anonimato na metrópole coage a decifrar, em cada rosto, o caráter, as intenções, os sentimentos. As técnicas de decifração do rosto, de Le Brun e Lavater no século XVII à antropologia criminal de Lombroso, no século seguinte, descrevem um percurso que se inicia na identificação das paixões e culmina na classificação dos indivíduos. São da mesma época os sistemas de identificação antropométrica de Bertillon. Na reforma que implementou do sistema usado pelo judiciário para estabelecer identidade, os presos são indexados a partir do aspecto mais persistente do corpo humano - o comprimento de seus ossos. Ele aperfeiçoou um sistema de classificação antropométrica que permitia estabelecer a identidade de um indivíduo através simplesmente de sete medidas, completadas pela impressão digital, informações sobre a cor dos olhos e fotografias de face e perfil. Não apenas o retrato de frente e perfil, mas também um sistema de mensuração de partes do corpo e a descrição verbal de elementos fisionômicos. Quando os pintores parecem ter definitivamente abandonado a teoria das proporções humanas, ela é retomada no domínio das ciências. A partir de 1830, a antropologia se põe a medir os prisioneiros, os criminosos, as prostitutas. Não por acaso esse esforço científico coincide com o apogeu da caricatura, o corpo desmedido. O oposto dos retratos em perspectiva de Piero della Francesca ou Dürer, cuja semelhança é quase matemática. De um lado a norma, de outro o excesso. Os padrões clássicos de beleza - as proporções ideais - são substituídos pela medição das variações individuais. Um novo modo de tomar o corpo humano se consolida ao final do século XIX: a mensuração da forma humana. A compilação de dados sobre o indivíduo transpõe os limites das experiências científicas e das práticas judiciais para abarcar todos os campos em que esteja envolvido o corpo humano. Muybridge tentaria compilar um catálogo de todas as poses possíveis do homem em movimento, criando uma monumental enciclopédia que serviria de referência para pintores e escultores. Com a mesma intenção, um dos assistentes de Charcot no La Salpêtrière, Richter, fotografou centenas de homens e mulheres, classificados morfologicamente por rigorosos padrões de medida. (46) Como evidenciar as singularidades de um rosto fotografado? Trata-se de caracterizar a imagem de modo que só subsista um pequeno número de traços, a partir dos quais a identidade possa ser estabelecida. Esse problema de interpretação está no cerne do trabalho de Bertillon. O retrato fotográfico só pode servir à identificação se os seus traços principais são selecionados pela linguagem. Deve-se "recitar" um rosto. O "retrato falado" consiste, portanto, em descrever fotografias. Imagens de identidade judiciária: sempre dispositivos de esquadrinhar, medir, classificar. Uma tentativa de tipologização absoluta que leva ao limite a tradição da fisionomonia - todas as disciplinas que pretendiam codificar as relações que a morfologia corporal mantém com os caracteres, os temperamentos e as outras paixões humanas. (47) O "sistema de Bertillon" implicava a idéia de ascender do corpo à alma, de explicar uma pelo outro. Subjacente ao mecanismo classificatório, havia uma inferência dos corpos rumo às "disposições do espírito". Da mesma forma, Duchenne de Boulogne, numa série de fotografias publicadas em Mecanismo da fisionomia humana, ou análise eletrofisiológica da expressão das paixões (1862) retoma as antigas "iconografias da insânia". Trata-se de explorar o rosto humano, eletrizando cada um dos músculos da face. Aplicando eletrodos na face de um paciente - alguém cuja falta de expressão constituísse o grau zero da fisionomia -, ele procurava expor suas formas básicas, "os signos da linguagem muda da alma". (48) Guillaume Duchenne de Boulogne Determinados rostos demandam a contração de um músculo complementar para que nasça uma expressão. Em outros, contrações simultâneas de diferentes músculos engendram expressões patológicas ou dementes. Experimentando todas as possibilidades de contração dos músculos faciais, Duchenne de Boulogne descreve uma tipologia das expressões: alegria, tristeza, desprezo, dor, medo. Uma "análise anatômica das paixões". As fotografias de histéricas feitas no La Salpêtrière (1880) procuram fazer uma iconografia dos estados de espírito. Elencam as "atitudes passionais", como êxtase, apelo e erotismo, além de outras como angústia, desgosto e terror. O histérico, então, era tido por um tipo visual, não verbal. As imagens destacam as fisionomias das pacientes, tomando as expressões faciais como manifestações de histeria. Condições mentais somatizadas facialmente. O fundo das imagens é suprimido, os rostos tomam todo o quadro. A fotografia realiza um trabalho fisionômico. A postura característica da Hysteria major entrou para o domínio da arte. O corpo arqueado da mulher sofrendo o ataque tornar-se-ia uma das referências da modernidade do fim-de-século, aparecendo tanto em Klimt quanto nos surrealistas. Da mesma forma que Degas não se interessou apenas pela cronofotografia de Marey, mas também por toda a ciência fisionômica derivada de Lombroso. A anatomia facial de sua Petite danseuse de quatorze ans correspondia às descrições que essa fisiologia fazia do crânio do "tipo degenerado". (49) Mas, se algumas fotos são acuradas, outras parecem arbitrárias: como deveria ser um retrato da ironia? O problema é que essas imagens são de histéricas: aqui o que parece não é. (50) O sintoma é uma deformação das causas. A verdade dos sintomas não é o estado emocional, mas a doença. O que essas fotografias podem, então, realmente mostrar do rosto, janela para a alma? A fotografia aqui - quando o século XIX acreditava poder com ela tudo revelar - está apenas mostrando o sintoma. O projeto de August Sander. em 1911, de estabelecer o catálogo fotográfico de todos os tipos de alemães, também exibe esse impulso a inventariar. Seus "retratos de arquétipos" adotavam os mesmos postulados das várias ciências tipológicas que se desenvolveram no século XIX, como a criminologia e a psiquiatria. Ele pressupunha que a fotografia revelaria, sobre qualquer rosto, os traços específicos da máscara social. Sander propunha-se a destrinchar a ordem social, subdividindo-a numa infinidade de imagens de tipos sociais. Nessas fotos, a cada indivíduo é consignado seu lugar. O contrário dos retratos feitos depois, na América, por Robert Frank ou Diana Arbus, que sugerem que cada homem é um pária ou um anormal, um estrangeiro na sua terra, inviabilizando todo trabalho de classificação. (51) Rennó questiona justamente a possibilidade de a fotografia servir a esta função de índice do real, de garantir a identidade. Não por acaso utiliza-se de retratos de pessoas anônimas e desconhecidas. As fotos 3x4, originalmente em preto-e-branco, são coloridas à mão e retocadas. Objetos que põem em cheque a noção de "atestado de identidade", sempre associada ao retrato para documentos. Rompimento da ilusão especular da realidade proporcionada pela fotografia. Aqui a imagem não sugere a presença que emanava da velha foto, descrita por Benjamin, da vendedora de peixes. O retrato de identidade se desfaz. Estes rostos deformados, desmedidamente ampliados, com a boca e o nariz muito grandes em relação aos olhos pequenos, parecem se modificar à medida que são contornados. O dispositivo das caixas, com o acrílico em forma de bolha, requer uma mudança na postura do observador. Enquanto a imagem em perspectiva convencional requer um olho imóvel, um ponto de vista fixo, a visão desses rostos pede um olho ativo, deslocando-se em torno da esfera. Essas imagens são verdadeiras anamorfoses. Os surrealistas já produziam "objetos anamórficos". Numa foto de Man Ray, vemos uma estranha construção piramidal, em que o topo é a ponta de um cigarro e a base é formada primeiro pelo nariz e a testa de um rosto humano e depois por uma longa cabeleira em desalinho. Junto com Brassai e Kertez - mestres do informe -, ele faria inúmeros retratos de deformações anatômicas, por reflexos ou composições de corpos. Para produzir esse "informe", a imagem do corpo seria submetida a assaltos químicos e óticos. Os métodos são fotográficos: ataques de solarização, que transformam as sombras que definiam os contornos dos objetos sólidos. Efeitos de corrosão ótica, que produzem uma reorganização do contorno dos objetos. (52) A luz ataca a fronteira dos corpos, que cedem à invasão do espaço. A matéria é consumida por uma espécie de éter. Ocorre uma inscrição do espaço no corpo. Dissolvem-se os limites entre a coisa e o entorno, entre aquele que vê e aquele que é visto. Nos retratos compósitos de Rosângela Rennó os rostos sofrem a mesma violência ótica. A possibilidade de a fotografia garantir a identidade é discutida mais uma vez por Rosângela Rennó em Imemorial (1994), trabalho feito a partir de retratos 3x4 dos trabalhadores mortos quando da construção de Brasília. As imagens, retiradas de velhas fichas funcionais, ampliadas em película ortocromática, mostram feições desbotadas que já trazem estranhamente o signo da morte. Ninguém se lembra mais dos nomes dos sacrificados, dos acontecimentos que a crônica da época procurou mesmo ignorar. O documento fotográfico não foi capaz de evitar o esquecimento. Ao contrário, aqueles rostos retratados parecem ali condenados ao limbo. Brasília, monumento ao moderno, produziu mais um "imemorial". In Oblivionem (1994) leva a fotografia ao limite da intransparência. A instalação consiste em fotos encaixadas, com suas molduras, dentro das paredes. Ao lado, textos também em baixo-relevo. As fotos - retiradas de álbuns de família -, em película ortocromática, parecem ser inteiramente escuras. Só um olhar atencioso, que se aproxime muito da superfície, vislumbra formas e vultos. Os textos, retirados de jornais antigos, são fragmentos de crônicas cotidianas, relatos de circunstância ou notícias irrelevantes. Nada que os trechos isolados e imagens quase imperceptíveis possam trazer à lembrança. Esses indícios tão tênues e opacos apenas ajudam a mantê-los no esquecimento. Descontextualizadas, não sabemos mais a que se referem essas imagens e inscrições. Liberadas de seu compromisso de registro, do vínculo com acontecimentos determinados, podem apenas aspirar à instauração de outras situações, outras inscrições, outros significantes. Permitir contar novas histórias, constituir outras identidades, outros passados. Dar-se talvez uma imagem, fundar uma memória. (53) Uma rearticulação de passado, presente e futuro que mostra como a fotografia pode levar a pensar a história. Não existe catálogo possível. Nada mais assegura o acesso a essas vidas passadas, os registros não têm qualquer valia. As fichas desse arquivo não trazem nenhuma informação útil sobre o paradeiro desses indivíduos, nada que nos permita identificá-los e resgatar seu itinerário. Aos passantes não é acordado nenhum olhar que - como em Baudelaire - os agracie com uma fugaz identificação. Não há nenhuma expectativa de desvelar o significado das coisas. Esse invisível permanecerá para sempre inacessível. A fotografia em nada contribui para incrementar nossa capacidade de ver, de saber o que aconteceu. Todo o trabalho consiste numa investigação sobre os efeitos do tempo, do esquecimento, na memória registrada pela fotografia. Tudo está em baixo-relevo, escavado na parede, mais um indício de falta de visibilidade e transparência desses registros. Nada se dá imediatamente a ler. Há um recuo, textos e imagens retiram-se do primeiro plano. Entre eles se estabelece uma distância que impede toda função ilustrativa e bloqueia toda explicação que constitua um sentido para o que estamos tentando ver. Ficamos apenas com vultos e fragmentos de textos que não articulam jamais uma história, que nunca poderão nos dizer quem eram e para onde foram aquelas pessoas. É como se a passagem delas por aqueles lugares não tivesse deixado nenhum rastro - função tradicionalmente atribuída à fotografia e à palavra. A opacidade das imagens, quase completamente escuras, é o oposto da revelação - que convencionalmente relacionamos com a fotografia. Essas imagens não jogam nenhuma luz sobre os seres e fatos que retrataram. Eles permanecem para sempre condenados às sombras, ao esquecimento. É como se nunca tivessem sido fotografados. Esses registros de nada valem, apenas atestam o inexorável caminhar de tudo para a obscuridade. A fotografia é contrastada com a sua vocação primeira: lançar luz sobre as coisas. A revelação - também constitutiva do próprio processo fotográfico - aqui não tira as coisas do anonimato. Essas imagens parecem, ao contrário, veladas. Rebaixadas nas paredes, mergulhadas profundamente na escuridão. É como se a película ortocromática não conhecesse, propriamente, revelação. O que se vê assemelha-se a um negativo, em grande formato. O processamento é o mesmo do papel fotográfico, variando a base (filme em vez de papel) e a quantidade de prata. A particularidade está no processo de positivação, que explora as características físico-químicas do material, a saturação de prata. Ocorre um uso diferenciado daquele material, normalmente destinado à transparência. Aqui ele não dá luz. No negativo, normalmente, as figuras aparecem mais escuras, enquanto o fundo fica mais claro. Aqui o negativo é pintado de preto, por trás. Contra um fundo negro, o que era escuro fica relativamente mais claro. O depósito de prata faz com que se destaquem os vultos. Tornam-se prateados ao incidir luz lateral. Temos apenas nuances de cinza, prateado e preto. Trata-se, diz a artista, de uma metáfora da opacidade: preto sobre preto. Uma imagem que se dá num preto: uma imagem impossível. Aqui não há - ao contrário do que ocorre com outros artistas que trabalham a falta de transparência das imagens contemporâneas - nenhuma conotação tátil. Apenas a superfície lisa e opaca. O rebaixamento da imagem não cria espessura. A ênfase na superficialidade da imagem evidencia que ela não se cola a coisas e acontecimentos, que não serve para mapeá-los. Afirma o deslocamento dessas impressões com relação ao real, ao passado. Através dessas fotografias nenhuma identidade pode ser atestada, nenhuma história contada. É evidente a atualidade da herança do século XIX para a arte atual. Esse inventário - anatomias, próteses, poses, dispositivos imagéticos e imagens, tudo coletado e catalogado - viria a ser para a arte moderna o que as escavações de Roma foram para o renascimento: um imenso repertório no qual se podem encontrar novos modelos para o mundo contemporâneo. (54) O fenakistocópio de imagens de trabalho mecânico e ofertas de consumo, os rostos in vitro da coleção de humores e retratos de família em película ortocromática remetem aos antigos aparelhos óticos. Aqueles objetos, há muito anacrônicos - as passagens, os dioramas e as barracas de feira -, descortinam a paisagem como um "quadro mecânico". Como o sacudir de uma cúpula de cristal, fazendo nevar sobre o pequeno cenário urbano que encerra no seu interior. NOTAS 36 Walter Benjamin, "Rua de mão única", em Obras escolhidas, vol. II, cit., pp. 50-54. Para uma descrição dessas feiras, ver também Ernst Bloch, Héritage de ce temps (Paris: Payot, 1978) e Traces (Paris: Gallimard, 1968). volta ao texto 37 Hal Foster, Compulsive Beauty, cit. volta ao texto 38 Boris Kossoy, "A fotografia estereoscópica", em Iris, nº 308, São Paulo, setembro de 1978. volta ao texto 39 Jonathan Crary, Techniques of the Observer: on Vision and Modernity in the 19th Century, cit., p. 125. volta ao texto 40 Gilles Deleuze & Felix Guatari, "Le lisse et le strié", em Mille plateaux, cit. volta ao texto 41 Rosalind Krauss, "Photography's Discursive Spaces", em The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths, cit. volta ao texto 42 Observações de Mônica Rodrigues Costa. volta ao texto 43 A emulação do invisível: imagens de Rosângela Rennó (texto não publicado de Margot Pavan). volta ao texto 44 Michel Foucault, Les mots et les choses, cit., p. 143. volta ao texto 45 Peter Strasser, "Cesare Lombroso: l'homme delinquant ou la bête sauvage au naturel", em L'âme au corps: arts et sciences 1793-1993 (Paris: Réunion des Musées Nationaux, 1993). volta ao texto 46 Philippe Comar, "A Made-to-Mesure Identity", em Identity and Alterity, catálogo da 46a Bienal de Veneza, 1995. volta ao texto 47 Philippe Comar, "Les chaînes d'art", em L'âme au corps (Paris: Réunion des Musées Nationaux, 1993). Ver também Philippe Dubois, O ato fotográfico e outros ensaios, cit., p. 241. volta ao texto 48 Maurício Lissovsky, "O dedo e a orelha", em Acervo, n° l, Rio de Janeiro, 1993. volta ao texto 49 Jean Clair, "Impossible Anatomy 1895-1995", Identity and Alterity, cit. volta ao texto 50 Joan Copjec, "Flavit et Dissipati Sunt", em Annette Michelson (org.), October: the First Decade (Cambridge: MIT Press, 1987). volta ao texto 51 Susan Sontag, La photographie, cit., p. 73. volta ao texto 52 Rosalind Krauss, "Corpus delicti", em Le photographique: pour une théorie des écarts (Paris: Macula, 1990), p. 173, e The Optical Unconscious, cit. volta ao texto 53 Ivo Mesquita, "Rosângela Rennó", em 6 artistas da XXII Bienal Internacional de São Paulo (São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1994). volta ao texto 54 Destaque-se a curadoria de Jean Clair da 46a Bienal de Veneza (1995) e da exposição L'ame au corps: arts et sciences 1793-1993, Paris, 1993. volta ao texto
Posted by Patricia Canetti at 6:55 PM
"Careca de saber", performance de Rubens Pileggi SáEm performance registrada por Newton Gotto e realizada durante o 16º Festival de Inverno da UFPR, dentro do projeto REDES/FUNARTE, o artista Rubens Pillegi Sá discute a polarização estabelecida pela mídia em torno dos candidatos à presidência da República neste ano. "Careca de saber" questiona os estereótipos criados por e para os militantes de esquerda e direita, ironizando um repertório de propostas que, de tão repetido, já parece banal. Performance realizada em Antonina, Paraná, durante o 16º FESTIVAL DE INVERNO promovido pela Universidade Federal do Paraná, dentro do projeto REDES / FUNARTE e produzido por EPA! (Expansão Pública do Artista), capitaneada pelo artista Newton Goto. Performer: Rubens Pileggi Sá Contexto Ação e Reflexão A performance A partir de uma consideração genérica, de que os militantes de esquerda são barbudos e cabeludos (desde descuidados até almofadinhas) e os integrantes da direita política partidária são carecas e barbeados (repare!), o artista começou uma conversa na barbearia envolvendo várias pessoas do lugar, para falar sobre arte e política. Questionando, ao mesmo tempo, a ética e a estética enquanto conduta de ação individual e coletiva. E colocando temas como reforma agrária, legalização das drogas e reestatização dos setores estratégicos para que as pessoas refletissem e opinassem sobre essas questões. Ao final do trabalho, o barbeiro também quis participar da performance além de seu trabalho cotidiano, tirando uma foto com a máquina dele, que, ao invés de foto, saia um pênis quando apertado o clique. O que tornou ainda mais jocosa a cena toda, porque falávamos de esquerda e direita. E toda agremiação populista possui sempre uma ala denominada de "força jovem" ou "juventude socialista" ou "juventude fascista", que são jovens com idéias velhas, que sustentam o poder do phalo grande e duro como símbolo da sociedade machista e patriarcal. Como uma boa performance de barbearia, restava-nos apenas rir. E foi o que fizemos. Afinal de contas, uma das estratégias para se começar um assunto sério é a descontração no início da conversa e o aprofundamento do debate, em seguida. "Careca de saber", então, tem a ver com essa situação de jogos polares políticos e a transcendência dessa situação - a alquimia - através da sabedoria. Antonina Pr. - julho 2006
Posted by Leandro de Paula at 5:00 PM
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