novembro 30, 2006
"Dos dias e das noites", de Edith Derdyk
e dos dias e das noites e dos dias e das noites e dias e noites e dias e que dias e que noites serão estas?
Edith Derdyk é artista visual, ilustradora, educadora e autora dos livros 'Linhas de Horizonte:por umja poética do ato crIador" (Ed.Escuta/2001); "Linha de costura" (Ed.Iluminuras/1997); "Formas de pensar o desenho" e "O desenho da Figura Humana" (Ed.Scipione/1989 e 1988) e Edições independentes: "Fresta" e "Fiação" (2004); "O que fica do que escapa" (2001); "Vão" (1999).
"Entre o novo e o nada", de Márcio Almeida
"Entre o novo e o nada", de Márcio Almeida
Entre julho de 2005 e julho de 2006, visitei várias invasões na Região Metropolitana do Recife, a fim de encontrar uma família que quisesse trocar uma casa que comprei num bairro popular (com o dinheiro do prêmio bolsa-pesquisa do 46º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco) por sua residência e seus pertences. Entre muitos nãos e porquês, em julho de 2006, por intermédio de César, recepcionista de um edifício no bairro da Madalena, finalmente encontrei dona Edineide, uma moça que morava com o marido e a filha numa invasão no bairro de Sapucaia de Dentro.
Pelo aspecto extremamente afetivo do trabalho, procurei a todo instante deixar claro que se tratava de uma troca, e que eu não era de todo "bonzinho", pois tal troca envolvia mais que simplesmente uma casa, havia outras questões que estariam disfarçadas, talvez, e que viriam à tona apenas no decorrer do processo.
Dias depois do primeiro encontro, fomos visitar a casa em questão, e começamos as negociações, marcando para na 1ª quinzena de outubro a mudança e o desmonte do barraco.
No dia 22 de outubro, o barraco estava montado dentro do MAC - Museu de Arte Contemporânea, junto com um vídeo de 30 min, completando, assim, o projeto, com o qual fiquei bastante satisfeito.
Márcio Almeida
Entre mundos, por Cristiana Tejo
Esta casa que ocupa praticamente toda a sala maior do térreo do MAC não se apresenta simplesmente como objeto de contemplação, mas é o troféu de Márcio Almeida. Interessado especialmente em questões da geopolítica e da ocupação do espaço urbano, o artista delineou um projeto de alta carga ética e afetiva: propor a um morador de habitação precária a troca de sua casa, com todos os objetos pessoais incluídos, por uma outra moradia em melhores condições e mais valiosa, escolhida por Márcio em uma comunidade que não tivesse, a princípio, vínculos afetivos com a família escolhida. Diferentemente do que se pode pensar, o artista recebeu muitos nãos até conseguir realizar plenamente seu projeto. Recaía, obviamente, uma desconfiança de suas intenções e da real finalidade de tal transação, assim como muitas pessoas não desejavam abandonar seu entorno, seus laços afetivos. Durante o processo, o artista estabelecia, portanto, uma delicada negociação de esferas, ao tentar utilizar códigos e princípios da arte para interferir no mundo real. Quando finalmente o pacto entre as duas partes foi firmado, casa e objetos foram inscritos no mundo da arte e seus valores passaram a ser cotados como obras de arte, valendo algumas vezes mais do que anteriormente. Esta mudança de valor e o trânsito de campos tangenciam a essência do capitalismo, mas também evidenciam a porosidade da esfera da arte legada pelo século XX.
Márcio Almeida trabalha em Recife, cidade onde nasceu, em 1963. Atua nas artes plásticas desde 1988. Já realizou diversas exposições individuais e coletivas em várias capitais brasileiras e no Exterior.
Fotos: Flávio Lamenha
novembro 26, 2006
"Conte sua história", de Alevi Ferreira, Daniel Silva, Felipe Silva e Hugo Borges
Conte sua história, projeto de Alevi Ferreira, Daniel Silva, Felipe Silva e Hugo Borges
Clique sobre a imagem para assistir ao vídeo no Youtube.
RESUMO
Nesse texto, explicitaremos o quadro teórico que baseou a produção do documentário "Conte sua história", em que, sem promessas de prêmios ou de sucesso, pessoas comuns experimentam um dispositivo simples onde lhes é permitido contar qualquer fragmento de suas vidas. Longe da verdade ou de qualquer julgamento, elas jogam um pouco de cor sobre o cinza da cidade.
O QUE É UM DISPOSITIVO?
Duas famílias trocam de mães durante duas semanas. Catorze pessoas ficam trancadas em uma casa durante meses em busca de um prêmio milionário. Vários estilistas disputam semanalmente qual deles é o melhor. Nerds recorrem a especialistas para se tornarem jovens descolados. Casais trocam desaforos (ou confidências) ao vivo, em um programa de auditório. Gordinhas, sardentas e baixinhas estrelam campanhas publicitárias. Artistas e pessoas comuns têm o cotidiano acompanhado por câmeras atentas. Durante um mês, um sujeito testa, no próprio organismo, os resultados de refeições diárias no McDonald's.
Estes são apenas alguns exemplos de produtos audiovisuais que habitam a televisão e o cinema e que têm o real como matéria-prima. Em todos os casos, foi utilizado algum tipo de dispositivo que, ao invés de permitir a criação fabuladora das pessoas comuns, as transformou em personagens de roteiros previamente concebidos. A criação de um dispositivo já presume controle. Seja na descrição feita por Michel Foucault do Panóptico de Bentham1 e das sociedades disciplinares, seja na descrição feita por Gilles Deleuze das sociedades de controle2, o que está em jogo são formas de se exercer o poder da forma mais natural possível. Giorgio Agamben generaliza essa concepção3 e afirma que "dir-se-ia que hoje não haveria um só instante na vida dos indivíduos que não seja modelado, contaminado ou controlado por algum dispositivo". (AGAMBEN, 2005, p.13). Demonstraremos, a seguir, como um dispositivo pode permitir a criação ao invés da coerção.
DISPOSITIVO E DOCUMENTÁRIO: A FABULAÇÃO COMO POSSIBILIDADE
Como a produção audiovisual pode se valer, então, dessa noção, que presume o controle, a coerção; para produzir obras que, ao contrário, permitam a criação? "Ora, é uma sorte (para nós) que o mundo tomado na tela dos cálculos esperneia, permanece impalpável, além do perfeito e do imperfeito" (COMOLLI, 2001b, p.101). César Migliorin afirma que o dispositivo é a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido, onde o criador recorta um espaço, um tempo, um tipo e/ou uma quantidade de atores e a esse universo acrescenta uma camada que forçará movimentos e conexões entre atores (MIGLIORIN, 2005). "O dispositivo é uma ativação do real" (MIGLIORIN, 2005).
Diferentemente dos dispositivos que habitam o cotidiano, a utilização do dispositivo, no caso do documentário, implica na ativação de uma realidade que só existe no instante que o dispositivo acontece, ao mesmo tempo em que permite ao diretor certo controle da situação, possibilita que o contato entre os atores cause eventuais acontecimentos que ao próprio diretor serão inesperados. Ao impor um controle "frouxo" aos personagens, o documentário clama pelo aparecimento do outro, fazendo com que a criação seja partilhada entre diretor e personagens: "filmar torna-se assim uma conjugação, uma relação, onde se deve enlaçar-se ao outro" (COMOLLI, 2001a, p.115). Para Migliorin, o dispositivo cria uma situação onde os personagens são colocados a agir e nessa ação são efetivadas todas as potencialidades do real ou, como acrescente Consuelo Lins, "não se trata de contar uma história já vivida, mas de viver uma história para contá-la" (LINS, 2005, p.12).
Entretanto, a criação de um dispositivo não garante por si só a qualidade de uma obra, uma vez que os meios de comunicação e vários documentários utilizam dispositivos para oferecer narrativas fechadas sobre o mundo, fazendo nos acreditar que o real é aquele que nos é apresentado por eles. Utilizando essa abertura que um dispositivo de filmagem permite, o documentário deve procurar o real que surge desorganizado, que emerge por meio do homem ordinário e sua vida comum. "Filmar os homens reais no mundo real representa estar tomado pela desordem dos modos de vida, pelo indizível das vicissitudes do mundo, aquilo que do real se obstina a enganar as previsões" (COMOLLI, 2001b, p.105-106). Ao reconhecer a sua incapacidade de explicar e reduzir o mundo por meio das imagens, o documentário, em contato com o mundo, não deve resumir a obra ao dispositivo. "Melhor: ele não pode se impedir de desejar, para ir ao fim desta lógica de aprendizagem, ver seu dispositivo chacoalhado pela irrupção de dados inéditos" (COMOLLI, 2001b, p. 107). Assim como Comolli (2001b), acreditamos que os dispositivos podem permitir a exploração do que ainda não é de todo conhecido e, assim, abrir espaço para que o personagem seja o guia por esse novo mundo que se abre. "O enfoque da cultura começa quando o homem ordinário se torna o narrador, quando define o lugar (comum) do seu discurso e o espaço (anônimo) de seu desenvolvimento" (CERTEAU, 2002, p.63). Dessa forma, concordamos com o que aponta Deleuze (1990), ao sugerir a quebra de qualquer modelo de verdade e de julgamento. "O que se opõe à ficção não é o real, não é a verdade que é sempre a dos dominantes ou dos colonizadores, é a função fabuladora dos pobres, na medida em que dá ao falso a potência que faz deste uma memória, uma lenda, um monstro (DELEUZE, 1990, p.183). Para Deleuze, o cinema precisa apreender "o devir da personagem real quando ela própria se põe a 'ficcionar', quando entra em 'flagrante delito de criar lendas'" (DELEUZE, 1990, p.183). E o momento da fabulação é esse, quando a diferença entre aquilo que é real e aquilo que é imaginado se torna indiscernível, quando realidade e imaginário caminham juntos. Não é a pura e simples imaginação, que é facilmente repelida para o domínio do engano, como nos lembra Guimarães (2000). "A verdade não tem de ser alcançada, encontrada nem reproduzida, ela deve ser criada" (DELEUZE, 1990, p.178). Quando lembrança, realidade e imaginação vão se misturando durante a narração de uma história, "a personagem está sempre se tornando outra, e não é mais separável desse devir" (DELEUZE, 1990, p.185). Fabulando, ela se constitui como um sujeito da cena e não como um mero objeto que é observado. Cria um mundo, nele crê e se projeta. Reconstitui o seu lugar de fala.
VOCÊ LIGOU PARA...
Para a produção do documentário, estabelecemos a noção de dispositivo como uma maneira de se apreender o outro; além de permitir a manifestação da alteridade através da fabulação, pela qual o homem ordinário constitui o seu lugar de fala e oferece, ele próprio, maneiras de entendermos o local onde vive, sua história de vida ou de seu povo. Um dispositivo permite a formação de um mundo circunstancial, a partir do encontro entre realizador e personagens. O documentário-dispositivo capta o que acontece nesse encontro (ou seus vestígios), o momento em que a personagem se coloca a fabular e, assim, se torna também sujeito da obra.
A partir dessas premissas, estruturamos um dispositivo para ser experimentado. A idéia era oferecer um "serviço", no qual as pessoas ligariam para um determinado número para contarem uma história, ou que falassem qualquer coisa para a secretária eletrônica. Para publicarmos o serviço, fizemos milhares de panfletos, que foram distribuídos a várias pessoas em diversos pontos da cidade. Fizemos, ainda, um spam, que foi enviado a mais de 5000 e-mails. Contamos, também, com a colaboração de amigos e familiares na divulgação do serviço.
Caso alguém ligasse, as histórias narradas comporiam o filme com imagens feitas pelo grupo durante todo o processo de produção. Caso ninguém ligasse, o silêncio tomaria conta da experimentação, deixando claro o risco próprio a todo dispositivo. E onde estaria a fabulação? Ao oferecer um espaço onde as pessoas poderiam narrar qualquer fragmento de suas vidas, estaríamos oferecendo a elas a oportunidade de fabularem sobre elas mesmas. Os recados gravados na secretária abririam espaço para a fabulação do grupo. Inspirados pelas histórias contadas pelas pessoas que se dispuseram a ligar, criaríamos nossas próprias narrativas pessoais.
Durante a produção do vídeo, pudemos comprovar que o real está sempre atento, à espera da primeira fissura para surgir com toda a sua potência. Também experimentamos a fragilidade do dispositivo, que só é capaz de se tornar um documentário em contato com o outro. Em nossa experimentação, a boa receptividade que o panfleto teve nas ruas não se transformou em enxurrada de ligações: precariedade do dispositivo? Apatia do outro? Insubmissão do real aos roteiros e expectativas? Poderíamos optar por uma pequena fraude: nós mesmos ligaríamos para o número ou ofereceríamos no panfleto algum possível prêmio, etc. Mas essa opção não seria justa com o dispositivo e nem com o real que resolvemos provocar. Optamos e recomendamos o risco que o real pode oferecer.
1 "O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção, elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre, outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar." (Foucault, 1987: 165 - 166) volta ao texto
2 Segundo Deleuze, "são as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. 'Controle' é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virillo também analisa sem parar as formas ultra-rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado". (DELEUZE, 1992b, p.220) A passagem da disciplina para o controle "se trata menos de uma ruptura entre um e outro - da disciplina ao controle, categórica e abruptamente - e mais de passagem, uma mudança de qualidade a partir de uma intensificação" (BRASIL, 2005). volta ao texto
3 "Generalizando posteriormente a já amplíssima classe dos dispositivos foucaultianos, chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas [...] , cuja conexão com o poder é em certo modo evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e - porque não - a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos". (AGAMBEN, 2005, p.13) volta ao texto
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: Outra travessia, nº 5. Florianópolis, 2005
CERTAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994
COMOLLI, Jean-Louis. Carta de Marselha sobre a auto-mise en scène. In: Catálogo do Forumdoc.bh.2001. Belo Horizonte, 2001a.
COMOLLI, Jean-Louis. Sob o risco do real. In: Catálogo do Forumdoc.bh.2001. Belo Horizonte, 2001b.
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990. 339p.
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988
DELEUZE, Gilles. O que é um dispositivo?. In: DELEUZE, Gilles. O mistério de Ariana. Lisboa: Vega, 1996.
DELEUZE, Gilles. Carta a Serge Daney: Otimismo, pessimismo e viagem. In: DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992a.
DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992b.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.
GUIMARÃES, César. O retorno do homem ordinário do cinema. In. Contemporânea. Revista de Comunicação e Cultura, vol. 3, n.2, dez. 2005 .p. 71-88. Disponível em
GIMARÃES, César. O Rosto do Outro. In: Catálogo do Forumdoc.bh.2000. Belo Horizonte, 2000. p.30-33
LINS, Consuelo. Rua de Mão Dupla: documentário e arte contemporânea. 2005. Disponível em < http://www.videobrasil.org.br/ffdossier/Ruademaodupla_ConsueloLins.pdf>. Acesso em 24 ago. 2006.
MIGLIORIN, Cezar. O dispositivo como estratégia narrativa. 2005. Disponível em
O documentário Conte sua história é resultado da pesquisa "O dispositivo e a fabulação no documentário contemporâneo", realizada na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, sob orientação do professor André Brasil. Os autores desenvolvem atividades individuais no campo do audiovisual e da pesquisa acadêmica.
"Não estamos imunes", texto de Carmen Krauspenhar
Independentemente de nós, o mundo segue seu curso. Mas alimentamos a ilusão de que de alguma forma conseguiremos controlar o que nos é externo. O modo como esta intenção de controle se manifesta externamente não se mostra, na prática, tão importante para nós quanto nossas fantasias. Não percebemos a realidade de nossa influência, e neste ponto de cegueira se aloja nossa impotência. Nós desconfiamos destes pontos cegos, mas preferimos ignorar qualquer suspeita. Agimos como se o mundo fosse uma extensão de nós mesmos.
Mas a vida crua é imune a idealizações, ela não tece julgamentos. Está além do bem ou do mal, do certo ou do errado, e estes não são parâmetros que a definem ou orientam, apesar de muitas vezes assim desejarmos. A vida crua não se baseia em separações, quem separa é a mente humana. Na vida crua as coisas estão interligadas, e a contradição é natural. Por isso a vida crua é rica, é cheia de possibilidades, de diferentes modos de ser, de sentir, de conviver. Se pudermos viver sua realidade, podemos jogar com estas possibilidades e descobrir o que é diferente, e por isto novo para nós. Isto não acontece na acomodação e na compulsiva busca de segurança, que é a tentação da mediocridade.
A sangue frio e humildemente podemos compreender o que é a incerteza de nossa vida. A sangue frio significa ter paciência e visão de maior alcance. Humildemente, é saber que somos um grão de areia neste planeta, somos frágeis. Viver com a incerteza da dor ou do prazer é conviver com a ansiedade. A vida moderna é cheia de ansiedades porque temos de estar em contato sem trégua com muitas situações de prazer e/ou dor, ou possibilidades de prazer e dor, e não podemos controlar a maior parte desta demanda. Nós nos protegemos destas demandas criando verdades sem muito fundamento mas que nos acalmam. Nós também encontramos explicações para muitas coisas que, quando explicadas, morrem, e encontramos palavras quando deveríamos ficar em silêncio. Para a arte, o silêncio, este espaço para que se sinta o trabalho artístico, é crucial.
A intelectualização é o entrave mais corriqueiro quando alguém quer entrar em contato com uma obra de arte. Racionalizar a desestabilização que a arte proporciona pode tornar superficial o contato, porque a razão e a sensibilidade funcionam melhor quando integradas. Nossa tendência é usar o intelecto para controlar o desconhecido, e nisso matamos as possibilidades da arte. Isto é válido para leigos e também para especialistas em arte. Para estes a intelectualidade pode ser extremamente prejudicial. Eles se tornam cegos quando sua visão é mais abstrata do que deveria, e menos referenciada com as condições do ambiente em que atua.
Se o mundo é cheio de contradições e falta de respostas, a arte não quer qualquer tipo de amortecimento. Ela procura desviar disto, ela quer alternativas, anseia pela vida como ela é, crua. A arte não diz como tem de ser. Ela quer manter sua dimensão de crueza, mas devemos pensar nesta crueza atuando em um meio social, civil. Isto quer dizer, em um meio que espera comportamentos aceitáveis, adequados. Devemos pensar quais são os parâmetros desta adequação da arte na contemporaneidade. A arte obedece a regras sociais de conduta para que não seja proibida. Em outros tempos seria marginalizada se quebrasse estas regras, porém os limites agora se resumem quase que exclusivamente aos da lei, com algumas exceções, de modo que "civilizada" aqui quer dizer "dentro da lei". Isto se torna uma via de mão dupla para a arte. Ela pode atuar mais livremente e portanto em maior contato com a vida como ela é (inclusive com a realidade de nossa civilidade), o que é positivo para a sua prática porque permite que se mexa no que antes eram pontos cegos mantidos por rígidos costumes sociais. Mas esta mesma liberdade pode tornar-se um liberalismo extremado e levar à insensibilidade, paradoxalmente, quando, ao invés de sermos ativos em relação à arte, somos passivos e pouco comprometidos com seus questionamentos. Um caso recente que fugiu desta insensibilidade justamente por ser censurado sem razões legais foi o da polêmica instalação de Marcia X. A artista dispôs rosários no chão lembrando a forma de um pênis, o que causou revolta por parte da igreja. A obra foi censurada e a classe artística se manifestou a favor de Marcia X. Julgo esta polêmica positiva porque levanta questionamentos a respeito do assunto, o que significa que o trabalho não caiu na banalização a que muitos trabalhos artísticos estão sujeitos hoje, inclusive aqueles em que são mostradas as nossas realidades mais violentas. Os conflitos sociais, políticos, pessoais estão aí, disponíveis para serem trabalhados, a crise mundial nunca dá tréguas. A verdade crua é esta, e ninguém está imune a ela, estamos desprotegidos. Acabo de voltar da 27ª Bienal de São Paulo e julgo que ela teve o mérito de tratar da crueza das realidades sociais em muitas obras. Teve trabalhos menos intimistas e subjetivos do que crus ou agressivos e provocativos. Isto pode significar uma arte forte, uma arte que não somente trata da crueza, mas que também é crua. Mas por outro lado os limites são tênues e esta crueza no extremo pode levar à banalização. A arte pode virar um documento desta realidade social, ou ser um depositório de indícios desta realidade. Esta Bienal me deixou a impressão de que a arte contemporânea precisa digerir a problemática das fronteiras entre sensibilidade e violência.
A nível psicológico a crueza está dentro de nós e com ela não temos muito contato, não conhecemos sua cara. Ela é o bicho, o animal, que é agressivo e puro. Este bicho que nós civilizamos na base da marretada, ao invés de fazê-lo entender que este é o mundo que temos e que não há outro, e que é melhor que ele faça algo, ou as coisas vão piorar. A nossa civilidade está impregnada deste animal, mas ele tem sido bem maltratado e vem mostrando sua pior parte, que aparece nas corrupções, nos jogos de poder, na violência, na negligência de assuntos de interesse público, na degradação das relações pessoais. Esta energia é humana, existe em sua crueza naturalmente e existe também na direção do crescimento e não somente da destruição. Ela pode ser elaborada e digerida com intensidade física e emocional nos esportes e no sexo, e na arte a nível intuitivo e intelectual e também físico e emocional muitas vezes. Aí está a força da arte a que me referi anteriormente, esta força que desestabiliza e procura ampliar visões. A força do comprometimento com a vida como ela é. Esta é a arte que assume as nossas negatividades, as negatividades que a história tem perpetrado, as que se disseminam globalmente em todos os lugares e que não conseguimos digerir, com as quais não conseguimos lidar, ignoramos, tentamos esconder e negar. Não estou aqui fazendo a apologia da negatividade, e sim da digestão de nossa negatividade, que se olhada mais de perto, não é o tabu que imaginamos, mas sim parte de nossa constituição humana.
O artista se apodera da sua própria fragilidade no processo criativo da obra. Encontra seus fantasmas, não pode ignorar seus conflitos nem sua relação com o ambiente em que atua, este que muitas vezes lhe oprime e tira as possibilidades. O artista tem de conviver com seu coração em carne viva constantemente. Ele está desprotegido, e se vê obrigado a permanecer nesta situação. Ele encara seus medos, e suas fraquezas, quando visíveis, se tornam força. Não se pode fazer arte sem conflito.
"Em exposição", de Jaime Lauriano
Jaime Lauriano
Estudante de Artes Visuais, pesquisa em seus trabalhos e imagens as diferentes transformações da cidade de São Paulo e como as mesmas interferem no comportamento de seus habitantes. "Em exposição" faz parte da pesquisa sobre a concentração demográfica na cidade de São Paulo, e questiona a exagerada exposição das moradias em bairros pouco habitados.
"Isso", vídeo de Helena Trindade e Luiz Cavalheiros
"Isso", vídeo de Helena Trindade e Luiz Cavalheiros no grupo "A vida como ela é" do Youtube
Clique na imagem para assistir ao vídeo no Youtube.
Imagens de um verme que se arrasta por um labirinto de letras em ruínas.
"Isso": significante apropriado da psicanálise (das Es), aqui referido à plasticidade das pulsões que atravessam o corpo e determinam o funcionamento do aparelho psíquico. No vídeo, o conceito de pulsão é relançado alegoricamente enquanto uma deriva pelo fluxo caótico dos signos (imagens e sons). Para nós, a "vida crua" se liga às pulsões sexual e de morte que agem sobre o sujeito a partir de objetos que, para ele, restam sempre como enigmáticos. Ela se relaciona à vertigem frente à desmedida do desejo. Acreditamos, também, que é da "vida crua" que advém a experiência estética do estranho (das Unheimliche), uma vez que nela está em jogo uma "outra cena". Neste sentido, a vida crua desvela para o sujeito desejante a angústia de sua própria divisão, operada pelo descentramento radical do inconsciente.
Áudio: 'zumbido-música' composto a partir da sobreposição gradativa dos fonemas resultantes da combinação de cada letra do alfabeto com todas as outras (AA., AB, AC, AD, ) e a inversão digital da mesma.
Helena Trindade é mestre em Linguagens Visuais pela EBA-UFRJ e pós-graduada em Arte e Filosofia pela PUC-Rio. Cursou Teoria da Arte Moderna e Contemporânea na New York University e na School of Visual Arts, além de gravura na Arts Students League NY. Trabalha no Rio de Janeiro e expôs no Centro Cultural Telemar, no Paço Imperial, na FUNARTE, no Espaço Cultural Sérgio Porto, no Centro Cultural São Paulo, entre outros.
Luiz Cavalheiros concluiu o curso de Aprofundamento em Pintura na Escola de Artes Visuais do Parque Lage em 1995. É também artista gráfico e diretor de arte para publicidade, com diversos prêmios nacionais e internacionais. Trabalha no Rio de Janeiro e expôs no Espaço Cultural Sérgio Porto, no Museu da República, no Paço das Artes e no Centro Cultural São Paulo.
"Interações", de Sami Hassan
Sami Hassan
Arquiteto e artista plástico, pesquisa em suas instalações e pinturas a cultura islâmica através da interação entre diferentes eventos no espaço-tempo. Autor do projeto da Mesquita Mohamed (SP).
novembro 21, 2006
"Visão Pós-Traumática do Déjeuner Sur l´Herbe", de Lenir de Miranda
Visão Pós-Traumática do Déjeuner sur l´herbe (après Manet)
Na Visão Pós-Traumática do Déjeuner Sur l´Herbe, o clima bucólico e sensual da pintura de Manet, seu assunto mundano, sua época histórica são substituídos por algo que nos assusta, por estar contextualizado na vivência do homem atual. Surge uma iconografia crítica, situada no contemporâneo.
Neste caso da citação da pintura de Manet, há um trauma no ar da cidade: uma reflexão político-social, através da arte, das circunstâncias agressivas em que vivemos. Há sobras de guerra, sejam elas psicológicas, ideológicas, políticas, sociais, bacteriológicas, ecológicas: a cidade queimada, sobre uma Terra Desolada, numa referência a The Waste Land, de T.S.Eliot: "Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó." (Waste Land-I)
No entanto não é apenas uma visão pessimista a partir das circunstâncias ordinárias da sobrevivência, pois ao fim e ao cabo, após uma Terra Desolada, alguém ainda oferecerá chá aos amigos. "Estarei sentada aqui, servindo chá aos amigos " (Eliot -poem)
Lenir de Miranda Artista plástica, Mestre em Poéticas Visuais pelo Instituto de Artes da UFRS, trabalha com pintura, desenho, imagens digitalizadas, vídeo, poemas, livros-de-artista, instalações.
novembro 20, 2006
"Tropical Modern", por Simone Osthoff
TROPICAL MODERN: The Political Ambivalence Of Cultural Remix
SIMONE OSTHOFF
Apresentado no VII BRASA - Brazilian Studies Association International Congress, Outubro de 2006, Nashville - Tennessee
Este ensaio investiga a relação entre a política e a arte experimental, recorrendo, como temas privilegiados, aos conceitos de utopia e remixagem cultural. O artigo explora a conexão entre Hélio Oiticica e o líder do PCC, Marcola, abordando o papel das estratégias anti-heróicas empregadas pelos artistas de vanguarda no Brasil, assim como as estéticas violentas e negativas que se relacionam com a ambivalência política, fomentando a pesquisa sensória e as novas possibilidades de espacialidade.
Great claims have been made and much faith has been put in art's ability to affect social change, but the defeat of many of Modernity's utopian hopes and dreamssuch as the implosion of massive housing projects from the 1960s and 1970s around the worldcontributed to undermine its universal assumptions. The concept of utopia, so out of fashion in the postmodern era, despite having inhabited the limbo of the living dead over the past three decades, is perhaps, because of that, a privileged controversial theme in contemporary art. According to David Harvey, author of Spaces of Hope, the lack of interest in the utopian tradition in recent times points to the suspicion that there really exists a strict relationship between utopia and totalitarianism. It is not without irony, for instance, that Brasília, built to promote a new democratic society, ended up housing a dictatorship that lasted for a quarter of a century. But it is precisely utopia, understood in a paradoxical way and never fulfilled, that the philosopher Theodor Adorno privileges in art. For him the aesthetic experience is at the center of a critical theory that questions the Enlightenment and the violence of Western rationality; a critical theory that confronts the fascist intolerance towards difference, which led to many 20th century political disasters (among them the holocaust), prompting Adorno to make the famous remark: "writing poetry after Auschwitz is barbaric."
In Brazil, another example of aesthetics' political ambivalence is Tropicalismo, as difficult to define today as it was in 1969, despite the constantly growing international interest in this movement exemplified by the current Tropicália exhibit curated by Carlos Basualdo for the Museum of Contemporary Art of Chicago in 2005 and the Bronx Museum in NY, 2006, and by the exhibition Hélio Oiticica: The Body of Color, at the Museum of Fine Arts, Houston, between December 2006 and April 2007.
It is often impossible to separate a negative aesthetics that privileges experimentation and absurd and violent forms from a romantic, idealist, or even functionalist and socially utopian aesthetics. As Oswald de Andrade already observed "at the heart of every utopia there is not only a dream but also a protest." Hélio Oiticica's box-bólide titled "Homage to Cara-de-Cavalo" from 1965, and his flag-poem "Be an Outcast, Be a Hero" from 1967, are both romantic and violent, and have since their creations, raised questions about the relationship between aesthetics and ethics, and they continue to generate polemics, now with an urgency prompted by gang-related urban violence and the 2006 Presidential elections.
"Estamos todos no inferno. Não há solução, pois não conhecemos nem o problema," é o título dramático da entrevista com Marcola, o lider do PCC (Primeiro Commando da Capital) que o cineasta-cronista Arnaldo Jabor publicou no jornal O Globo (23/5/06). Nos meses que se seguiram, a suposta entrevista circulou em múltiplos emails e blogs por todo Brasil, tomada às vezes como verdadeira, às vezes como alegoria. O que mais impressiona nas palavras de Marcola é a combinação da sofisticação intellectual com a racionalização da violência. E entre clássicos da literatura e da filosofia citados pelo chefe do crime organizado, está a referência à Hélio Oiticica: "Voces intelectuais não falavam na luta de classes, em 'seja marginal, seja héroi'? Pois é: chegamos, somos nós! Ha, ha Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó, né?" Jabor, na tradição rodrigueana de a vida como ela é, contribui com essa entrevista para mais algumas páginas Um segundo evento esse ano explora a relação arte, mídia, miséria, e violência. Em setembro, a cidade de Recife apareceu coberta com o poster "Marcola pra presidente e Pedro Correa para vice," uma intervenção urbana do artista Krishna Passos (Folha de Pernanbuco 20/09/06) que enfatiza a corrupção de políticos e a politização do crime organizado. Os dois eventos parecem perguntar se existe uma relação direta de causa e efeito entre arte e política? Podemos culpar artistas como Hélio Oiticica pelo aumento da violência nas metrópoles brasileiras, como fazem alguns intelectuais conservadores como Olavo de Carvalho?
In a decade that radically mixed art and life, Oiticica, among others in the 1960s, took the artistic experience beyond the pictorial space and outside the frame and the "neutral" zone of official art institutions. By interpreting Malevich's White on White as the limit of painting, the artist translated pictorial questions into life, exploring color and space in time-based performances, which valued the creative potential of samba dance and marginalized urban spaces. Setting color free in space and pursuing a new structure for color, the artist created in 1964, his first Parangolé. In the process, Oiticica crossed many aesthetic and spatial boundaries, besides blurring multiple social, racial, and class borders. His redistribution of sensorial experience subverted the Modernist preference for the visual sense. E se Oiticica encurtou a distância entre o MAM e a Mangueira, ele redescobriu a abstração geométrica no movimento dos corpos no samba, explorando uma super-sensorialidade em estados de êxtase gerados pelos rituais da dança, do sexo, e da droga. Ele mergulhou na cultura popular entendendo a marginalidade e as transgressões sociais que ela involve, como espaço experimental, isto é como espaço radicalonde não se sabe de antemão as regras de comportamento. E para Oiticica, essa experiência de liberdade dizia respeito não só às formas estéticas mas também éticas, já que como artista e homosexual ele confrontou a moral católica, patriarchal, machista e racista da sociedade Brasileira. O desafio contido na frase "Seja Marginal, Seja Héroi" tem como contexto histórico e político específico a crise gerada pelo golpe militar de 1964 e a revolta de estudantes e intelectuais pela liberdade de expressão e pela redefinição do modelo de desenvolvimento nacional, expressos com a mesma urgência nas artes plásticas, no cinema, no teatro, na literatura, no jornalismo, e na música popular.
A "Homenagem a Cara-de-cavalo" enfatiza o papel do anti-herói na modernização da cultura Brasileira, presente tanto no cerne de Macunaíma de Mario de Andrade quanto do cordel que romantiza Lampião e Corisco. A estética do anti-herói continua na figura do malandro carioca que com jogo de cintura tira proveito e energia criativa da pobreza e da opressão, cantado por entre outros, Moreira da Silva e Chico Buarque. O bandido-marginal está no centro do Cinema Novo de Deus e o Diabo de Glauber Rocha, assim como nos filmes paulistas da Boca do Lixo como O Bandido da Luz Vermelha de Sganzerla. O anti-herói é fundamental nas peças e crônicas de Nelson Rodriguez e não pode faltar nas novelas da televisão. As transgressões éticas do anti-herói, no centro da experimentação e da resistência das vanguardas históricas Modernistascomo a Antropofagiafrequentemente operam o rebaixamento dos ideais da forma e da beleza, gerando polêmicas não muito distantes daquelas criadas por Hélio Oiticica, ou mais recentemente pela obra "Desenhando Com Terços" de Marcia X, censurada na exposição Erótica do CCBB-Rio em abril de 2006.
Mas mesmo quando a arte é abertamente política, sua contribuição (utópica?) está principalmente na abilidade de manter em permanente tensão a heterogeneidade e a diferença de todos os seus elementosda relação das palavras com as coisas, às relações entre formas, materiais, processos, linguagens, conceitos, sensorialidade, e sentidos. A conexão Oiticica-Marcola, recoloca a questão ética da responsabilidade social do artista e expõe o lado cru e cruel da vida que a obra de Oiticica expõe, e em visão retrospectiva, romantiza. A marginalidade como projeto libertador da arte nos anos 60 é resultado da busca de um espaço experimental não comprometido com os valores burgueses ou com os interesses de Mercado. Esse projeto deriva em parte da teoria do "não-objeto" articulada pelo crítico Ferreira Gullar em 1960, dando continuidade às idéias Neoconcretas que pensaram a arte para além da mimesis. Em outros contextos culturais, como entre as vanguardas Argentinas, esse impulso anti-representacional gerou a fusão arte e política das intervenções midiáticas e trabalhistas do grupo Tucumán Arde de 1968. E o mesmo impulso está também presente na literalidade do Minimalismo, teorizada por artistas como Donald Judd e Robert Morris em 1966, nos Estados Unidos (e radicalizada na completa desmaterialização do objeto de arte promovida pela Arte Conceitual e registrada por Lucy Lippard em seu livro clássico Six Year of Dematerialization publicado em 1973).
The experience of ecstasy and violence present in some of Oiticica's works might be closer to the experience of the sublime, which includes the non-rational and the irrational, as an intrinsic part of the experience of beauty, as conceptualized by Edmund Burke in the eighteenth century. In the lyrical and ecstatic dimension of Oiticica's works there is the desire to dissolve the separation between subject and object through joyous liberation and the "experimental exercise of freedom."
But contrary to Adorno's horror of the cultural industry, we today believe that contemporary art must indeed explore all cultural forms, including those taken from, and existing within the mass media. Context is content, and the blurry lines between representation and simulation inevitably reject the Modernist universal claim of aesthetic purity and autonomy. An example of this Modernist claim is the notion that Cubism was responsible for the radical invention of collage, propagated as an autonomous artistic development, rather than a pictorial appropriation of methods already employed in the advertising industry since the second half of the 1850s. In Brazil, the subversive body-centered metaphors of cannibalism, carnival, and hunger, which have been at the core of many 20th century revolutionary aesthetics, can further dislocate high and low sensibilities by subverting the optical and aural senses with digestive and sexual metaphors, thus promoting a cannibalization and a carnavalization not far from the aesthetics of cultural remix.
Sampling and remix, born from collage, film montage, jazz and hip hop -radicalized and facilitated by the widespread access to digital technologies -continues to build upon the political ambivalence of many twentieth-century avant-garde practices. With dizzying speed - from Oswald's emphasis upon the "contribuição milionária de todos os erros" to Fernando and Humberto Campana's street based furniture designs, such as their Favela Chair -the logic of cultural remix tends to leave the material, metaphorical, and political fault-lines of collage and sampling exposed.
No fracasso dos ideais utópicos de conteúdo social revolucionário Modernista podemos incluir as tentativas de anti-comodificação das vanguardas dos anos 60. Embora documentos de performances e de outras experiências imateriais tenham sido, no final de contas, reintegrados ao mercado de arte, a ampliação da experiência artística, assim como as relações entre arte, comércio e a mídia, são hoje bem mais estreitas e menos inocentes. A arte e o artista não estão acima do bem e do mau em um mundo autoreferente, mas a a lógica e ética próprias da arte permitem a renovação crítica da cultura, incluindo o questionamento da natureza e da função da própria arte, assim como dos limites das instituições e circuitos artísticos e midiáticos.
Contrasting with Modernity's utopias, and yet building upon some of their political ambivalence, contemporary artists today are both critical of the values of global corporate capitalism, and yet thriving within the international media celebrity system. Such is the case of sound artist Paul Miller, a.k.a. DJ Spooky, an important innovator and theorist of the remix (Rhythm Science, 2004). Spooky's form of resistance, which openly embraces new technologies to challenge racism and collapse disciplinary and social hierarchies, is both aware of technology's military and corporate origins and ties, and further contributes to blur the lines between representation and simulation. The new meanings produced by his performances merge experimental and functional art, avant-garde and kitsch spectacle, sampling and copyright, open source and capitalist-for-profit. Whether practiced by twentieth or twenty-first century artists, in the tropics or elsewhere, the political ambivalence inherent in the aesthetics of cultural remix does not lead to utopian nor dystopian experiences, but usually to a critical and "experimental exercise of freedom."
Simone Osthoff é professora de estudos críticos na School of Visual Arts, Pennsylvania State University. Seus ensaios sobre práticas experimentais e institucionalização das vanguardas, principalmente brasileiras, fazem parte de várias publicações internacionais, incluindo livros do MIT Press. Osthoff participa do painel de críticos da Leonardo Reviews e, no momento, dedica-se a uma pesquisa sobre o Suplemento Dominical do
Jornal do Brasil publicado no Rio de Janeiro nos anos utópicos entre 1956 e 1961.
novembro 16, 2006
Dois Pontos e Canal Contemporâneo convidam: documenta 12 magazines
Dois Pontos e Canal Contemporâneo convidam: documenta 12 magazines
Palestra de Patricia Canetti, do Canal Contemporâneo, sobre o projeto editorial colaborativo da Documenta de Kassel
16 de novembro, quinta-feira, 19h
Fundação Joaquim Nabuco - Sala Aloísio Magalhães
Rua Henrique Dias 609, Derby, Recife - PE
81-3421-3266 ou artes@fundaj.gov.br / doispontos@doispontos.art.br
www.fundaj.gov.br / www.doispontos.art.br
Patrocínio: Chesf e Petrobrás
Apoio: Itaú Cultural, Centro Cultural Brasil Alemanha, Fundação Joaquim Nabuco e Restaurante Papaya Verde
Pontes para a arte contemporânea
Seminário "Dois Pontos e Canal Contemporâneo convidam: documenta 12 magazines"
Construir redes, endossar conteúdos, fazer reverberarem ações artísticas e iniciativas analíticas. Configurar uma agenda de acontecimentos de arte contemporânea baseada nos movimentos dos próprios protagonistas desse circuito. Canal Contemporâneo e Dois Pontos se afinam, o que, dentro de uma lógica de redes, acaba por suscitar possibilidades de associação e parceria.
Na próxima quinta-feira (16/11), às 19h, na Sala Aloísio Magalhães (Fundaj Derby), acontecerá um dos primeiros frutos dessa possibilidade, agora real. "Dois Pontos e Canal Contemporâneo convidam: documenta 12 magazines". Na ocasião, Patricia Canetti (RJ), idealizadora do Canal Contemporâneo, apresentará ao público pernambucano o projeto editorial da mostra alemã documenta de Kassel, do qual o sítio faz parte.
A idéia é que a vinda de Patrícia e o contato dela com curadores, críticos, galeristas, artistas, pesquisadores, arte educadores e interessados por artes visuais do estado estimule novas adesões ao documenta 12 magazines. Ela abordará formas de participação e objetivos do projeto, que já está em vigor numa plataforma específica do Canal Contemporâneo, é patrocinado pela Petrobrás e apoiado pelo Itaú Cultural.
O Portal Dois Pontos atuará, como intermediário da iniciativa. Após o encontro, continuará a alimentação do Canal com produções locais. Seguirá, portanto, como mais um ponto dessa ramificação colaborativa: Dois Pontos agencia Canal Contemporâneo em Pernambuco, que agencia documenta de Kassel no Brasil.
O encontro é uma realização do Canal Contemporâneo e do Portal Dois Pontos, é patrocinado pela Chesf e pela Petrobrás e tem como apoiadores o Itaú Cultural, o Centro Cultural Brasil Alemanha (CCBA), o restaurante Papaya Verde e a Fundação Joaquim Nabuco. Acabado o seminário, às 20h, ocorrerá a abertura da exposição de Tatiana Ferraz para o Projeto Trajetórias, na Galeria Vicente do Rego Monteiro, no térreo da Fundaj do Derby.
O projeto: "documenta 12 magazines"
Oitenta periódicos impressos e eletrônicos sobre arte contemporânea de todo mundo foram convidados a considerar as três questões principais da documenta 12:
É a modernidade nossa antiguidade? Is Modernity our Antiquity?
O que é a vida crua? What is Bare Life?
O que pode ser feito? (Educação) What is to be done? (Education)
Nisso consiste o projeto documenta 12 magazines (www.documenta12.de/english/magazines.html), inédito na história da exposição. O objetivo é envolver diversas instâncias e localidades na formação de uma massa crítica em torno da proposta curatorial da mais importante mostra de arte do mundo.
Cada um dos veículos representantes vem desenvolvendo, desde maio de 2006, plataformas de debate e edições especiais dedicadas aos temas. O material coletado constituirá uma base de dados, textos e imagens na Internet e resultará, nas vésperas da abertura da exposição (meados de 2007), na realização de três Publicações impressas, edições das mais relevantes participações de todo o projeto. A trajetória do projeto também será apresentada presencialmente, na própria mostra. No Brasil, além do Canal Contemporâneo (www.canalcontemporaneo.art.br/documenta12magazines), participam as revistas Rizoma (www.rizoma.net) e Trópico (www.uol.com.br/tropico).
Documenta de Kassel
A exposição de arte documenta (www.documenta12.de), realizada na cidade Kassel, Alemanha, é reconhecida pela comunidade internacional como o mais importante evento de arte contemporânea do mundo. Iniciada em 1955 pelo artista e arte educador Arnold Bode, a documenta vem apresentando e consolidando renomados artistas, de todos os continentes.
A exposição, que acontece a cada cinco anos, representa um marco no calendário de arte por apresentar a produção contemporânea, atualizando o público sobre inovadoras propostas artísticas. Em sua última edição, a documenta arregimentou a visita de mais de 650 mil pessoas, de todas as partes do mundo. A cada documenta uma nova diretoria - curadoria é escolhida, redefinindo uma linha de trabalho, de acordo com o interesse público e com uma agenda de discussões. Na documenta 12 quem está à frente da direção artística é Roger M. Buergel, curador nascido em Berlim, em 1962. A edição da mostra será aberta no verão europeu (junho/setembro) de 2007.
Canal Contemporâneo
"O movimento inicial do Canal Contemporâneo é muito simples: comunicar e dar visibilidade ao que somos a partir da participação da comunidade".
Referência no cenário brasileiro de artes visuais, o Canal Contemporâneo (www.canalcontemporaneo.art.br) vem, há seis anos, preenchendo lacunas de comunicação e formando uma comunidade ao mesmo tempo leitora e propositora para trabalhos artísticos, reflexões críticas, discussões e ações políticas em seu segmento cultural.
Fundado em dezembro de 2000 pela artista multimídia carioca Patricia Canetti, o Canal já faz parte da rotina de quem faz, pensa e consome arte. Seus "e-nformes" orientam o trânsito por uma pauta de eventos. Seus fóruns e abaixo-assinados já foram palcos de articulações coletivas em prol da classe artística e de questionamentos acerca das políticas culturais vigentes.
A primeira delas, a mobilização contra a construção do Museu Guggenheim no Rio de Janeiro em 2003 fez história ao embasar a liminar que impediu a construção do museu - veja o histórico neste blog.
Portal Dois Pontos
O portal Dois Pontos (www.doispontos.art.br) propõe-se a criar bases de divulgação para a produção contemporânea de artes plásticas em Pernambuco. A Internet e o formato de portal de notícias foram as formas de trabalho escolhidas para viabilizar a formação de comunidades de interesse e o abastecimento constante do público com conteúdos exclusivos. Dois Pontos foi lançado no dia 4 de setembro de 2006, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães.
novembro 13, 2006
"Entre o excesso e a exceção: a profanação do jornal", de Vera Lins, sobre trabalho de Leila Danziger
"Entre o excesso e a exceção: a profanação do jornal", de Vera Lins, sobre trabalho de Leila Danziger
Publicado originalmente em "Outra Travessia", Revista de Literatura (número dedicado a Giorgio Agamben e Georges Bataille), Ilha de Santa Catarina, 2o. semestre de 2005.
"Diários públicos" se chamam os últimos trabalhos da artista plástica Leila Danziger, que tensionam memória e esquecimento nas páginas de jornais, subtraídos ao seu uso comum como mercadoria descartável e retrabalhados, transformados em arte, objetos poéticos.
O jornal propicia o esquecimento. Ao mesmo tempo que oferece a experiência de choque com o terror da catástrofe a que nos expõe diariamente, sua linguagem induz ao esquecimento, a uma passagem rápida sobre o que nos é apresentado como fait-divers. Mas aqui o processo é outro. A artista transforma, com seus gestos, esses papéis numa topologia, um lugar em que algo acontece.
"Diários Públicos" - Figura 1
Os jornais passam por um processo lento, que dura meses, em que são descascados, expostos ao sol, dobrados e carimbados. Uma operação delicada é, no entanto, uma intervenção que expõe certas questões urgentes como feridas abertas. O que lembrar e o que esquecer? E ainda, obriga os jornais a durarem, a sofrerem a ação do tempo e a se conservarem, transformados.
As notícias ficam latentes - as letras, raspada sua tinta e a das imagens, permanecem como sombra . Na primeira série, desse cinza, pela exposição ao sol, ficam algumas imagens amareladas. No primeiro trabalho (Fig.1), a sombra de um coração sobra de todas as intervenções e acima dele, a foto de um grupo de rapazes negros num banco de rua. No segundo (Fig.2), a foto de um menino de rua, enrolado num cobertor. No terceiro (Fig.3), um corpo estendido no chão, com o nome Carlo (lembrando Gênova, 2001) e no quarto (Fig.4), rapazes mascarados de um motim da Febem apelam ao não esquecimento do que é cena cotidiana das ruas. A essas imagens foi carimbado como manchete o verso em vermelho de Paul Celan: "para ninguém e nada estar", que fala, pela negação, duplamente, do exílio do artista e do abandono da vida nua sem dimensão política, apresentada nas fotos. E da violência anônima e quotidiana sobre essa vida nua, "uma vida que não merece ser vivida."
A linguagem da comunicação é raspada, neutralizada e a linguagem da poesia toma lugar. Renasce de um não. Uma utopia? No entanto, esse verso é vermelho, também ferida.
"Diários Públicos" - Figura 2
Fica visível com essas imagens amareladas pela luz natural, à qual a folha do jornal é exposta por meses, o estado de exceção que se tornou a regra. Como numa decantação, vem à tona o real. O campo, não só como história, mas como condição inumana atual se torna presente na cidade, em que os cidadãos se transformaram em puros corpos biológicos, abandonados a uma violência mais eficaz porque anônima e quotidiana. É dessa perspectiva do campo, como a entende Agamben1, que se trata nessas imagens de vida nua, em que público e privado se confundem. Os corpos negros marginalizados trazem à memória a escravidão não resolvida com a abolição, que continua de uma outra forma pela fabricação massiva da miséria, com a industrialização do país. Progresso e destruição caminham juntos. O estado de exceção, que "atingiu hoje seu máximo desdobramento planetário" é o resultado de um crescimento ilimitado da atividade industrial. A acumulação desenfreada gera um excedente que tem de ser despendido ou explode em guerra. É portanto do lado da produção exuberante que vem o conflito armado em que se volatilizam riquezas fabulosas. Bataille2 afirma que é necessário dar ao crescimento de energia produtora outro fim que não o guerreiro e criar uma paz dinâmica. Com isso defendeu o Plano Marshall por promover uma repartição menos desigual dos recursos e uma circulação de riquezas. Todo sistema que dispõe de uma certa quantidade de energia deve despendê-la.
Aqui o jornal, que é lido como oração matinal do homem moderno, é profanado, enquanto produto do Estado espetacular integrado (Debord), lhe é dado um uso que não é o comum. A mercadoria do mundo do espetáculo, do qual faz parte, é violentada., se transforma em ruína e outros sentidos têm lugar, são como que liberados.
"Diários Públicos" - Figura 3
A linguagem reportagem fica na sombra, seu barulho é parcialmente silenciado e sobre ela cintilam outras palavras que aparecem nas dobras, compondo um ritmo como pautas musicais, ora vazias, ora com uma ou outra palavra que sobrou, resíduos. Em outra série, o campo é relembrado pelas frases de Marguerite Duras, em Hiroshima meu amor (Fig.4), escritas em francês, num vermelho gritante. Trazem também a questão do nome, pensada por Benjamin. Guerra, amor e linguagem convivem e tensionam: são carimbadas frases em francês como, "Je n'ai plus qu'une seule mémoire, ton nom". As páginas dobradas agora transbordam de sentidos nesse suporte que, se nas vanguardas como colagem se sobrepunha à tela, agora virou a própria tela onde algo tem lugar, numa nova aliança entre pensamento e poesia. O coração, que sobrara meio apagado na primeira imagem fala do excesso, tumulto, energia matriz de tudo.
Outra série tem mais cor, os diários de Ana Cristina César são convocados num verso que fala da memória: Eu era menina e já escrevia memórias, envelhecida. (Fig.5)
E outra poeta, Orides Fontela volta a falar do nome: A escolha do nome, eis tudo. (Fig.6). A questão da nomeação entra em cena, é pensada. Como dar nome, que nome dar ao que se vê e ao que se sente. Uma reflexão sobre a linguagem e os nomes a partir de Benjamin se encena. A linguagem da comunicação através da qual se informa é substituída pela linguagem poética em que se fala com a linguagem, em que ela se abisma e não comunica nenhum conteúdo, mas ela mesma em movimento. Para Benjamin, o homem ao nomear não diz alguma coisa , mas se diz com a linguagem, se fala. A fala de coisas é burguesa, como a linguagem do jornal. Mas no nome a linguagem se comunica. O nome é aquilo pelo qual nada se comunica mais, mas pelo qual a linguagem se comunica ela mesma e de modo absoluto. Depois da queda, a palavra perdeu sua ligação com o conhecimento, agora deve comunicar qualquer coisa: o nome virou meio, a linguagem, tagarelice. O nome pode recuperar sua força, na linguagem da poesia, da arte, quando não é mais apenas comunicação do comunicável, mas ao mesmo tempo símbolo do não comunicável.
Todo o trabalho da artista com o jornal vai no sentido de silenciar a tagarelice e dar forma a esse não comunicável. E citando Schiller com Benjamin3, ela atualiza o que dizia o filósofo alemão nas Cartas sobre a educação estética: o verdadeiro segredo do artista consiste em destruir a matéria pela forma. Aqui se trata de uma destruição da matéria jornal, que vai se descamando e se transformando pelas dobras numa pauta musical. E destruição da linguagem reportagem, a que se referia Mallarmé, numa tentativa de recuperar a faculdade de nomeação. Várias línguas estão presentes, o português, o francês de Duras e o espanhol de Borges. A tensão entre memória e esquecimento se dá nas frases de Funes, o memorioso, dispersas nessas pautas de um dos trabalhos: Mi sueños son como la vigilia de ustedes. Em outro, é a palavra esquecer carimbada entre vazios. E a idéia do carimbo, que substitui o manuscrito, mantém criticamente a mecanização da escrita, a contenção do gesto. O carimbo em nossa recente história da arte foi usada num momento de repressão política por Carmela Gross, que carimbava a pincelada.
"Diários Públicos" - Figura 4
O jornal não é mais coisa com finalidade utilitária, mas se tornou objeto poético, finalidade sem fim. Tornou-se de novo o excesso de onde tudo provém, anunciado na primeira imagem pelo coração esmaecido que diz do tumulto, da energia que somos, que se prodigaliza sem razão nesses gestos movidos pelo desejo que se tem de interferir, de fazer arte. Segundo Bataille, a energia solar que somos é uma energia que se perde, se prodigaliza sem razão. A arte é esse dispêndio sem outra razão que um desejo que se tem e com isso desfaz limites impostos pela regra do estado de exceção. Como o pensamento, é uma via negativa, que vai desfazendo o estabelecido - aqui, a ideologia, que conforma o jornal, sua informação.
Tanto Debord como Agamben pensam o Estado; o espetacular e aquele em que a exceção se tornou a regra se sobrepõem. Como fica a arte em relação à possibilidade de mudança? Schiller, também, contemporâneo da Revolução Francesa, pensa o Estado e a liberdade. E coloca como "carência nas almas refinadas", o Estado estético, que produziria uma cultura que tornaria impossível qualquer abuso, que daria liberdade através da liberdade. Nele também o excesso, como imaginação e abundância, profusão de forças, levaria ao jogo estético, à busca de uma forma livre, à construção de uma verdadeira liberdade política.
Mas o que se vive, a partir do momento em que Bataille escreve, é a ferida aberta e o dilaceramento. Para Bataille, viver o excesso é viver a superabundância jamais controlável, é querer o impossível, sem tarefa a completar, sem função a exercer. A arte, tarefa cega, é a finalidade sem fim kantiana, que está também em Schiller, que foge ao mundo utilitário, pelo desinteresse. O conhecimento é acesso ao desconhecido. Mas esse movimento desemboca numa recusa a toda solução - o pensamento radical pós Segunda Guerra, desemboca no silêncio e na ferida, se dilacera., como o que se vê num poeta como Paul Celan, trazido pelos diários da artista. Como nestes trabalhos vermelhos de mercúrio cromo, o que se usava para curar feridas - referência num texto da artista que acompanha os jornais, a ferida não se fecha.
O estado estético sobrevive como idéia regulativa (nem em Schiller era algo imediatamente possível) e aparece na leitura que Marcuse faz, em Eros e civilização, do pensamento do filósofo . Discutindo Freud, para Marcuse, o princípio de vida como Eros se opõe à mais repressão do Estado industrial moderno e permite imaginar um outro tipo de civilização com outro tipo de produtividade.
Schiller, nas suas Cartas sobre a educação estética4 , critica o espírito de negócio, pergunta onde reside a causa de ainda sermos bárbaros e afirma que o Estado continua estranho aos seus cidadãos. Para ele, deve ser suprimida a cisão entre sensibilidade e razão, para que o Estado seja modificado, e o caminho para o intelecto precisa ser aberto pelo coração - portanto a formação da sensibilidade é a necessidade mais premente da época. Embora afirme o belo como equilíbrio, diz que é apenas uma idéia que jamais pode ser alcançada pela realidade. A imaginação dá o salto em direção ao jogo estético, à busca de uma forma livre. No impulso lúdico que unifica impulso sensível e impulso formal teríamos a forma viva.
"Diários Públicos" - Figura 5
Essa forma viva alcançada pela arte pode ser a imagem dialética de Benjamin, carregada de tempo até explodir, uma representação dilacerada, o que vemos nos vazios, nos silêncios, nas fotos amareladas que tensionam com as palavras nos "Diários públicos". O que Bataille vê, quando diz que o que procuramos é esta sombra que não saberemos apreender - a poesia, a profundidade ou a intimidade da paixão, mas que nos enganamos porque queremos prender esta sombra.
Agamben afirma em Moyens sans fins 5que para ele é inutilizável o pensamento de Bataille com seus conceitos de soberania e sagrado: ter considerado esta vida nua separada de sua forma, na sua objeção, como um princípio superior - a soberania ou o sagrado, constitui os limites do pensamento de Bataille, que o tornam para nós , inutilizável.
Agamben nega a separação vida nua /vida política. Como Schiller, a vida, matéria, só se torna livre quando adquire forma, e, então, se torna vida orgânica . É necessária a passagem da vida cega para a forma, i.e., da sensação ao pensamento, o que se dá no estado estético: no estado físico o homem apenas sofre o poder da natureza, liberta-se desse poder no estado estético e o domina no estado moral. Para Agamben, o pensamento é forma de vida, vida indissociável de sua forma. Schiller coloca o estético como o caminho necessário para resolver o problema político - a maior de todas as obras de arte seria a constituição de uma verdadeira liberdade política. Embora iluminador, Schiller liga arte e pensamento, há uma certa pureza estetizante na sua filosofia, talvez marca do momento histórico.
Agamben, a partir de uma nova situação européia e global, em que o campo se tornou a matriz secreta do espaço político, propõe repensar a idéias de estado, nação e território, para o que traz a figura do refugiado, e o conceito de povo. Diz que é necessário desconectar a linguagem da gramática e o povo do Estado. O conceito de soberania e poder constituinte devem ser abandonados ou totalmente repensados. A realidade que se vive é a de um estado policial supranacional.. O estado de exceção é hoje planetário: o aspecto normativo do direito pode ser eliminado e contestado por uma violência governamental que ignora o direito internacional e promove o estado de exceção permanente, ainda, no entanto, pretendendo aplicar o direito6. É a partir dessa zona opaca onde público e privado se confundem que devemos partir.
O que o trabalho da artista faz, interferindo no jornal, nesse produto do estado de exceção, que é também o estado espetacular integrado, denunciado por Debord. No próprio título as palavras se juntam e se embaralham intimidade e espaço público.- diários públicos, e a experiência que seus gestos tornam presente é a da linguagem. A imaginação aqui dá o salto em direção ao jogo estético, como diria Schiller, em busca de uma forma livre. Mas essa forma se retorce num dilaceramento, é crítica. Nisso encontra a noção de excesso de Bataille.
Mas, se, para Bataille, a filosofia é silêncio, recusa de toda solução; para Agamben, ela é linguagem, em que pensamento e poesia se articulam. E o pensamento que advém, como gesto em que se encontram vida e arte, tem uma potência política.
NOTAS
1 Agamben, G.Moyens sans fins. Notes sur la politique. Paris: Rivages, 1995.volta ao texto
2 Bataille, G..La part maudite. Oeuvres complètes, VII. Paris: Gallimard, 1976.volta ao texto
3 Benjamin, W.Über Sprache überhaupt und über die Sprach des Menschen in Angelus NovusFrankfurt: Suhrkamp, 1988.volta ao texto
4 Schiller, F.A educação estética do homem, numa série de cartas. Trad. Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1990.volta ao texto
5 Op.cit. p. 17. (Avoir consideré cette vie nue separé de sa forme, dans son abjection, comme um principe supérieur - la souveraineté ou le sacré - constitue les limites de la pensée de Bataille, qui la rendent pour nous inutilisable.) volta ao texto
6 Agamben. G.Estado de exceção. Trad. Iraci Poletti. São Paulo: Boitempo. 2004.volta ao texto
Vera Lins
Professora da Faculdade de Letras da UFRJ, pesquisadora do CNPq
Leila Danziger
Artista plástica e professora do Departamento de Teoria e História da Arte do Instituto de Arte da UERJ
novembro 6, 2006
"Miséria invisível", de José Eduardo Barros
José Eduardo Barros
Nasceu na cidade do Rio de Janeiro, onde vive. É fotógrafo, psicanalista, e mestre em Teoria Literária pela UFRJ.
novembro 4, 2006
Prazo para o segundo tópico até 20 de novembro
Prazo para o segundo tópico até 20 de novembro
Depois de "É a Modernidade nossa Antigüidade?", o documenta 12 magazines recebe trabalhos para o segundo tema do projeto até o próximo dia 20. As contribuições enviadas até esse prazo poderão vir a fazer parte da edição impressa de "O que é a vida crua?", questão lançada por Roger Buergel como mote para que os diferentes contextos que integram o projeto possam apresentar suas reflexões. São encorajadas contribuições em vários formatos: textos teóricos e artísticos, ensaios, resenhas, registros de intervenções, documentos em áudio ou vídeo, imagens etc. A vida crua põe em xeque a noção de sujeito, abordando a exposição de sua natureza, sua impotência e vulnerabilidade.
Saiba mais sobre "O que é a vida crua?"
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