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agosto 22, 2006QUADROS MECÂNICOS Fisionomias urbanas por Nelson Brissac Peixoto - parte 2QUADROS MECÂNICOS - Fisionomias urbanas (continuação) Nelson Brissac Peixoto, publicado originalmente no livro Paisagens Urbanas, editora Senac São Paulo, 1996. (Leia a primeira parte do texto no post acima.) O século XIX foi pródigo em artefatos maravilhosos - instalações de cenários, caixas de olhar, autômatos - capazes de reproduzir a abrangência de um olhar panorâmico sobre o mundo. Engenhos óticos e mecânicos - cujos exemplares mais simples eram encontrados nas feiras - que pareciam comportar, apesar da precariedade, o fascínio das grandes paisagens e dos lugares distantes. Daí a atração que despertavam os dispositivos com espelhos e marionetes movidas a manivela. O próprio Baudelaire se interessa por eles, como demonstram suas descrições sobre o funcionamento desses pequenos aparelhos de magia. Benjamin também nos fala das barracas de brinquedos nas feiras antigas. As tendas de tiro ao alvo apresentam teatros, nas quais o espectador, se acerta na mosca, faz começar a representação. Uma porta se abre, e avança uma prancha de madeira onde bonecos encenam, automaticamente, com seus movimentos sincopados, episódios históricos ou de contos de fadas. Esses gabinetes mecânicos têm espelhos deformantes nas paredes, enquanto, oculto sob as mesas, o mecanismo de relojoaria que impulsiona as criaturas tiquetaqueia perceptivelmente. Os autômatos repetem seus gestos bruscos, até saírem de cena aos solavancos. (36) Com suas paisagens pintadas, feitas de pedaços desarticulados, também parecem quadros mecânicos. O autômato é o equivalente, para o corpo humano, da paisagem mecânica. Esse fascínio pelo maquinismo - que nessa época aparece tanto no corpo como na paisagem - foi depois percebido pelo surrealismo. As figuras de cera, as bonecas, os manequins e os autômatos, metáforas da submissão do homem à disciplina da cadeia de produção industrial, aparecem como exemplo do estranho, do não-humano. (37) O maravilhoso que busca desajeitadamente transcender nossa condição. As lanternas mágicas acabariam resultando, ao fim do desenvolvimento desses "aparelhos de fantasmagoria", nos panoramas e dioramas. As formas mais acabadas, antes da fotografia e do cinema, de reprodução da paisagem. Mas antes tivemos o panóptico - pan (tudo) + óptico (visão) -, sistema de construção que permite, de determinado ponto, avistar todo o interior de um lugar. Assim eram feitas as barracas com figuras de cera nas feiras, "manifestação da obra de arte total", em que se pode "não apenas ver tudo, mas ver tudo de todas as maneiras". O mesmo princípio que o panorama - pan (tudo) + orama (vista) - levaria para o exterior. Ideário máximo da época: obter a visão total, o olhar panorâmico. Uma infinidade de outras máquinas de olhar a paisagem seria criada. Os estereoscópios (sólido + ver) e os panógrafos (tudo + grafo), instrumentos com que se obtém, numa superfície plana, uma vasta perspectiva circular. Além dos estereoramas: caixas com duas imagens nas laterais se refletindo em espelhos colocados no centro, o que provoca uma impressão de relevo, de perspectiva em profundidade. A ilusão de um objeto em três dimensões, o efeito da distância - o próximo e o afastado - produzido por meios óticos. Havia também o ciclorama: grande tela semicircular, azul-clara, situada no fundo da cena de teatro, sobre a qual se lançam as tonalidades luminosas de céu que se deseja obter. Ou ainda aparelhos para a produção de movimento, como o kinetoscópio e, mais antigo, fenakistocópio, capaz de reconstituir também por jogo de espelhos o movimento contínuo de um indivíduo ou o passar do dia. Ver imagens fotográficas pelo estereoscópio tornar-se-ia - ao serem produzidos industrialmente, a partir da metade do século - uma das formas mais populares de entretenimento. Logo havia um visor estereoscópico em cada sala de visitas. Uma placa estereoscópica consiste num par de cópias fotográficas positivas de um mesmo assunto, tiradas de dois pontos de vista ligeiramente diferentes, correspondentes à visão interpupilar. Colocadas no visor, as placas estereoscópicas produzem a ilusão de realidade. (38) A sobreposição delas resulta numa vista em profundidade. Acomodada a visão, o espectador sente o relevo dos objetos, pois, separados os planos, o espaço é ilusoriamente recriado. A tridimensionalidade estereoscópica faz com que partes da imagem se projetem para fora. As figuras se distribuem em diferentes planos no quadro. O efeito não é, propriamente, de volume, mas de distintos planos sobrepostos. Como aqueles cartões que, ao serem abertos, dispõem suas figuras recortadas em diferentes profundidades. O estereoscópio, embora distinto dos dispositivos óticos que produziam a ilusão de movimento, é parte da mesma reorganização do observador promovida pelos panoramas. Os efeitos estereoscópicos dependem da presença de objetos em primeiro plano. São próprios de um espaço obstruído, exatamente como as vistas congestionadas das cidades contemporâneas. Daí a profundidade nessas imagens ser essencialmente distinta da que é própria da pintura ou mesmo da fotografia. Cada elemento na imagem parece chapado, sem que se tenha entre eles um afastamento gradual, uma distância estabelecida. Há apenas uma sucessão abrupta. (39) Como um quadro mecânico. Embora o objetivo seja a ilusão de profundidade, o dispositivo é superficial. Enquanto a perspectiva implica um espaço homogêneo e potencialmente mensurável, o estereoscópio revela um campo agregado de elementos disjuntos. Os olhos atravessam a imagem, vendo-a na sua tridimensionalidade. Mas apenas apreendem áreas separadas. Uma acumulação de diferenças, uma colagem de diversos relevos. O mesmo mundo não-comunicante que produziu a cenografia barroca ou as vistas urbanas de Canaletto. Uma justaposição de primeiro plano e fundo, perto e longínquo, passado e presente. É o espaço contíguo do jardim botânico e do gabinete de história natural. Também o mesmo espaço liso, coleção amorfa de partes justapostas, construído por acumulação de vizinhanças com zonas de indiscernibilidade (entre linha e superfície, entre superfície e volume) que se percebe no mundo dos objetos fractais, na matemática, na arte moderna (com sua linha nômade que passa entre os pontos, as figuras e os contornos) e na cidade contemporânea. (40) A pintura do século XIX também manifestaria algumas dessas características da imagem estereoscópica. Obras de Coubert, Manet e Seurat, com suas descontinuidades de grupos e planos, combinação de profundidade e achatamento, sugerem o espaço agregado do estereoscópio. Ao contrário do que comumente se afirma, o estereoscópio e Cézanne têm muito em comum. Ambos remetem à emergência do espaço construído oticamente. A imagem estereoscópica parece composta - como na pintura - de múltiplos planos, dispostos do espaço mais próximo ao mais afastado. Mas a operação de leitura visual do espaço é totalmente diferente. (41) Quando nos deslocamos pelo olhar, de um plano a outro, dentro do túnel estereoscópico, temos a sensação de reajustar sua acomodação. A ilusão ótica da imagem estereoscópica corresponde à travessia de um panorama real. O tipo de percepção possibilitado pelo estereoscópio e pelo diorama, em que o espectador é transportado oticamente, é comparável ao do cinema. Um outro modo de percepção do espaço, uma outra visualidade, estrutura-se aí. Diferente da contemplação tradicional, do dispositivo perspéctico criado pela pintura. As vistas estereoscópicas têm novas características perceptivas: profundidade e nitidez exageradas, isolamento do objeto e dilatação temporal da atenção (o olhar tem de percorrer mais lentamente cada detalhe da imagem). Princípios que já desvelam o dispositivo ótico que produz a impressão do panorama. Não por acaso as imagens estereoscópicas eram chamadas de "vistas" - em vez de "paisagens". Aí se localiza sua especificidade. O termo evoca a profundidade espetacular da imagem e a autonomia do lugar, recortado do contexto natural. Por isso as "vistas" eram - como os retratos - associadas às narrativas de viagem (colportage). Como as fisionomias e o folhetim, pertencem à mesma vontade de catalogação dos tipos e lugares, característica do século XIX. As "vistas" eram guardadas em móveis com gavetas, semelhantes a um arquivo. Todo um sistema geográfico, uma espécie de atlas topográfico se constituía assim. A paisagem - o lugar longínquo - é classificada e guardada. Atget, mais tarde, faria um mapeamento tipológico de Paris. Sua obra em muito se assemelha a um arquivo fotográfico - com as fotos divididas em seres e classes: as paisagens, a Paris pitoresca, a França antiga... O exterior no interior. O modelo sensorial estabelecido pelas "vistas" estereoscópicas não corresponde mais - antes mesmo da bidimensionalidade moderna - à estética pressuposta pela idéia de "paisagem". Alphonse Bertillon Cesare Lombroso A fotografia e o cinema contemporâneos retomam procedimentos pré-modernos: classificação, tabulação, determinação das coisas pela relação entre elas e não mais isoladamente. A imagem carece de significação como coisa única, vale como elemento de um todo, de um quadro. Não por acaso as fotos de identidade não garantem mais a individualização desses anônimos, servindo apenas de material para tipologias. Até o fim do século XVI, a linguagem era essencialmente um signo das coisas porque parecia com elas. Essa transparência foi destruída com o desastre de Babel: as palavras e as coisas, na formulação de Foucault, se separam. Daí o projeto enciclopédico: reconstituir pelo encadeamento das palavras a ordem do mundo. Um novo problema: como um signo pode ligar-se ao que significa? Para além das palavras do dia-a-dia, constrói-se então uma linguagem na qual reinam os nomes exatos das coisas. Essa nominação é a passagem da visibilidade imediata ao caráter taxinômico. Essas abordagens estão mais próximas da história natural de Lineu (século XVIII) - dedicada a inventariar a forma e o nome de cada ente natural - do que de enfoques mais modernos, como de Humboldt, que passa dessa concepção da natureza recortada em figuras para uma perspectiva em que prevalece a visão de conjuntos paisagísticos. A catalogação feita nos gabinetes científicos é o oposto da visão panorâmica, o olhar lançado ao longe revela a intenção de captar o todo. Esses trabalhos sugerem um retorno à atenção enciclopédica de Lineu. O filme Ilha das flores (1989), de Jorge Furtado, instaura o mesmo dispositivo de acumulação e organização. Não por acaso se passa num depósito de lixo. Tudo ali jogado - objetos deslocados de seus lugares convencionais, reduzidos a um monte de detritos - encontra outros vínculos, constituindo novas constelações. Aqui também temos a repetição obsessiva do esforço de nomear coisas que, no lixo, parecem ter perdido toda denominação. Vontade de restaurar uma cadeia de relações que, na verdade, só é possível pela justaposição de tudo naquela ilha-depósito. Dispositivos de contagem e enumeração do colecionismo. A própria montagem do filme tem caráter enciclopédico, a narração sempre recomeçando do primeiro objeto para reiterar as correlações estabelecidas. A Ilha das flores é, perversamente, um jardim botânico, o único que se pode ter hoje, coleção de espécies arruinadas. A narração repete o tom de livros didáticos, exarcebado até a exaustão. O cosmos vai sendo definido através das mais aleatórias combinações, misturando informações científicas de almanaque e assertivas do senso comum. Um turbilhão classificatório que esvazia o sentido das coisas, levando a sintaxe ao limite. As explicações acabam constituindo uma espécie alternativa de teoria explanatória do mundo. Onde não cabe, porém, a noção de verdade. As formulações sobre a sociedade dos homens, Marx, Freud e a religião não dão conta daquela ilha em que as pessoas são alimentadas com o resto de comida dos porcos, numa completa inversão de valores." (42) Já a instalação Filme de curta-metragem e fenakistocópio (1994) é literalmente uma reconstituição de um desses antigos aparelhos óticos. O cinema aqui é visto quando o encadeamento brusco das imagens ainda deixava perceber a mecânica que sustenta o fenômeno ótico. São dois dispositivos conjugados: numa projeção, o homem-músculo, o operário-máquina, a mulher-esteira. Pessoas sem rosto, só corpo e movimento. O registro cinematográfico desse "trabalho escravo" é uma quase interminável repetição, os gestos encadeados correspondendo à sistemática fabril. O filme remete ao maquinismo do início do século XIX. Tudo funciona aos solavancos, como num antigo panorama ou presépio mecânico. Os indivíduos são reduzidos a autômatos. O mesmo fascínio pela mecanização perversa do corpo que os surrealistas evidenciavam pelo uso de manequins e bonecas desconjuntadas. Ao lado, no aparelho ótico, o caleidoscópio de ofertas da cidade: máquinas de empacotar, botões a varejo, panelas de pressão, decalcomania e outras coisas anunciadas no Jornal de Serviço, de Carlos Drummond de Andrade. Cada uma das noventa ofertas do poema corresponde a uma imagem - xerox, polaroid, slides, cartuns, fotografia digital, desenhos, pinturas... Dentro do objeto, a ilusão de movimento se dá pela estroboscopia causada pelo movimento do objeto. Fora, a luz é estroboscópica, fixando por alguns segundos a imagem do objeto em movimento. Nos dois casos, o ritmo sincopado constitui, graças aos efeitos de persistência retiniana, mecânica da imagem. O fenakistocópio funciona aqui como uma grande coleção de imagens pop. Sua rotação proporciona a associação entre as imagens mediante a contigüidade e a justaposição. Humorais (1993), de Rosângela Rennó, utiliza-se de retratos de identidade 3x4, descartados por estúdios populares cariocas, para refazer os antigos sistemas de classificação dos tipos humanos. Cada figura é apresentada numa caixa metálica, fechada por uma bolha de acrílico translúcido bastante convexa. São rostos in vitro. No interior da caixa, uma lâmpada emite a luz que atravessa um slide de película ortocromática. A imagem, medindo cerca de um metro de altura, é projetada segundo o princípio da lanterna mágica, um dos mais antigos dispositivos mecânicos. Essa reconstituição remete a três sistemas classificatórios: a antiga doutrina dos temperamentos, a doutrina do retrato compósito e o Código Penal. Códigos que buscam compreender e administrar o comportamento humano. Primeiro a antiga doutrina dos humores galênicos, segundo a qual existem quatro fluidos corporais, cujo equilíbrio é essencial à saúde. O predomínio de um desses humores sobre os demais configura o desequilíbrio dos temperamentos bilioso, pletórico, fleumático e melancólico. Um sistema dos temperamentos, que distingue os diferentes tipos humanos em função da predominância de um determinado fluido corpóreo sobre os demais. Uma verdadeira taxonomia das fisionomias, dos tipos humorais, cada um denotando características físicas, comportamento moral e inclinações para atos ilícitos específicos. Rennó acrescenta ao inventário o contemporâneo, não previsto nos esquemas antigos, para incluir aqueles indivíduos sujeitos a "inclinações paradoxais". (43) Os herbários e as coleções ajuntam as coisas num quadro. A história natural aparece como um espaço de variáveis simultâneas, concomitantes, sem relação interna de subordinação ou organização. Os jardins botânicos e os gabinetes desprezam a anatomia e o funcionamento, para destacar o relevo e as relações das formas. Substituem a anatomia pela classificação, o organismo pela estrutura, a série pelo quadro taxinômico. (44) A taxinomia torna-se a constituição e a manifestação da ordem das coisas. Instauração de arquivos, estabelecimento de catálogos, de repertórios, de inventários. Mundo da classificação generalizada. Um grande quadro das espécies, dos gêneros, das classes. Outra referência de Rennó é a doutrina do retrato compósito que esteve em voga no século XIX e previa a tradução visual de características comportamentais. Uma antropologia criminal, que utilizava a fusão de vários retratos fotográficos em uma única imagem para definir perfis raciais e padrões de comportamento. Toda a fisionomia setentista já se baseava no conhecimento do caráter a partir de traços exteriores; a leitura fisionômica implica coleções de retratos e perfis, justaposições de silhuetas humanas e animais. O conhecimento proporcionado por esse tipo de retrato é taxinômico: as partes são separadas do todo e classificadas em sua especificidade. O rosto é uma composição. Os retratos compósitos são "quadros mecânicos". É o mesmo dispositivo de catalogação das fisiologias, que há muito tem sido a base do nosso Código Penal. A fotografia - no esteio de sua vocação ao colecionismo - servindo à identificação policial, aliás um dos primeiros usos que foram dados a essa nova técnica de produção de imagens. Cada humor corpóreo é assim apresentado numa redoma, enquanto, ao lado, outro cilindro apresenta a série correspondente de crimes previstos no Código Penal. A fisionomonia aparece como uma representação de como reconhecer a partir do rosto e gestos de alguém suas tendências, boas e ruins. Entre os que se dedicaram a essa ciência, Cesare Lombroso estabeleceria uma verdadeira fisiologia do delinqüente. (45) Consistia em buscar em criminosos anomalias como queixo proeminente, falta de barba, estrabismo, maçãs do rosto proeminentes, cabelos espessos. O tipo resultante seria o Homo delinquens. Os stigmata degenerationis, as marcas da natureza que o homo delinquens traz no corpo, constituem os signos mais visíveis de uma escritura gravada no corpo de todo criminoso. A essência demoníaca da natureza. A antropologia criminal nasce, portanto, com a descoberta do selvagem, com a identificação do absolutamente estrangeiro. O reconhecimento fisionômico transforma o criminoso na personificação do outro. O anonimato na metrópole coage a decifrar, em cada rosto, o caráter, as intenções, os sentimentos. As técnicas de decifração do rosto, de Le Brun e Lavater no século XVII à antropologia criminal de Lombroso, no século seguinte, descrevem um percurso que se inicia na identificação das paixões e culmina na classificação dos indivíduos. São da mesma época os sistemas de identificação antropométrica de Bertillon. Na reforma que implementou do sistema usado pelo judiciário para estabelecer identidade, os presos são indexados a partir do aspecto mais persistente do corpo humano - o comprimento de seus ossos. Ele aperfeiçoou um sistema de classificação antropométrica que permitia estabelecer a identidade de um indivíduo através simplesmente de sete medidas, completadas pela impressão digital, informações sobre a cor dos olhos e fotografias de face e perfil. Não apenas o retrato de frente e perfil, mas também um sistema de mensuração de partes do corpo e a descrição verbal de elementos fisionômicos. Quando os pintores parecem ter definitivamente abandonado a teoria das proporções humanas, ela é retomada no domínio das ciências. A partir de 1830, a antropologia se põe a medir os prisioneiros, os criminosos, as prostitutas. Não por acaso esse esforço científico coincide com o apogeu da caricatura, o corpo desmedido. O oposto dos retratos em perspectiva de Piero della Francesca ou Dürer, cuja semelhança é quase matemática. De um lado a norma, de outro o excesso. Os padrões clássicos de beleza - as proporções ideais - são substituídos pela medição das variações individuais. Um novo modo de tomar o corpo humano se consolida ao final do século XIX: a mensuração da forma humana. A compilação de dados sobre o indivíduo transpõe os limites das experiências científicas e das práticas judiciais para abarcar todos os campos em que esteja envolvido o corpo humano. Muybridge tentaria compilar um catálogo de todas as poses possíveis do homem em movimento, criando uma monumental enciclopédia que serviria de referência para pintores e escultores. Com a mesma intenção, um dos assistentes de Charcot no La Salpêtrière, Richter, fotografou centenas de homens e mulheres, classificados morfologicamente por rigorosos padrões de medida. (46) Como evidenciar as singularidades de um rosto fotografado? Trata-se de caracterizar a imagem de modo que só subsista um pequeno número de traços, a partir dos quais a identidade possa ser estabelecida. Esse problema de interpretação está no cerne do trabalho de Bertillon. O retrato fotográfico só pode servir à identificação se os seus traços principais são selecionados pela linguagem. Deve-se "recitar" um rosto. O "retrato falado" consiste, portanto, em descrever fotografias. Imagens de identidade judiciária: sempre dispositivos de esquadrinhar, medir, classificar. Uma tentativa de tipologização absoluta que leva ao limite a tradição da fisionomonia - todas as disciplinas que pretendiam codificar as relações que a morfologia corporal mantém com os caracteres, os temperamentos e as outras paixões humanas. (47) O "sistema de Bertillon" implicava a idéia de ascender do corpo à alma, de explicar uma pelo outro. Subjacente ao mecanismo classificatório, havia uma inferência dos corpos rumo às "disposições do espírito". Da mesma forma, Duchenne de Boulogne, numa série de fotografias publicadas em Mecanismo da fisionomia humana, ou análise eletrofisiológica da expressão das paixões (1862) retoma as antigas "iconografias da insânia". Trata-se de explorar o rosto humano, eletrizando cada um dos músculos da face. Aplicando eletrodos na face de um paciente - alguém cuja falta de expressão constituísse o grau zero da fisionomia -, ele procurava expor suas formas básicas, "os signos da linguagem muda da alma". (48) Guillaume Duchenne de Boulogne Determinados rostos demandam a contração de um músculo complementar para que nasça uma expressão. Em outros, contrações simultâneas de diferentes músculos engendram expressões patológicas ou dementes. Experimentando todas as possibilidades de contração dos músculos faciais, Duchenne de Boulogne descreve uma tipologia das expressões: alegria, tristeza, desprezo, dor, medo. Uma "análise anatômica das paixões". As fotografias de histéricas feitas no La Salpêtrière (1880) procuram fazer uma iconografia dos estados de espírito. Elencam as "atitudes passionais", como êxtase, apelo e erotismo, além de outras como angústia, desgosto e terror. O histérico, então, era tido por um tipo visual, não verbal. As imagens destacam as fisionomias das pacientes, tomando as expressões faciais como manifestações de histeria. Condições mentais somatizadas facialmente. O fundo das imagens é suprimido, os rostos tomam todo o quadro. A fotografia realiza um trabalho fisionômico. A postura característica da Hysteria major entrou para o domínio da arte. O corpo arqueado da mulher sofrendo o ataque tornar-se-ia uma das referências da modernidade do fim-de-século, aparecendo tanto em Klimt quanto nos surrealistas. Da mesma forma que Degas não se interessou apenas pela cronofotografia de Marey, mas também por toda a ciência fisionômica derivada de Lombroso. A anatomia facial de sua Petite danseuse de quatorze ans correspondia às descrições que essa fisiologia fazia do crânio do "tipo degenerado". (49) Mas, se algumas fotos são acuradas, outras parecem arbitrárias: como deveria ser um retrato da ironia? O problema é que essas imagens são de histéricas: aqui o que parece não é. (50) O sintoma é uma deformação das causas. A verdade dos sintomas não é o estado emocional, mas a doença. O que essas fotografias podem, então, realmente mostrar do rosto, janela para a alma? A fotografia aqui - quando o século XIX acreditava poder com ela tudo revelar - está apenas mostrando o sintoma. O projeto de August Sander. em 1911, de estabelecer o catálogo fotográfico de todos os tipos de alemães, também exibe esse impulso a inventariar. Seus "retratos de arquétipos" adotavam os mesmos postulados das várias ciências tipológicas que se desenvolveram no século XIX, como a criminologia e a psiquiatria. Ele pressupunha que a fotografia revelaria, sobre qualquer rosto, os traços específicos da máscara social. Sander propunha-se a destrinchar a ordem social, subdividindo-a numa infinidade de imagens de tipos sociais. Nessas fotos, a cada indivíduo é consignado seu lugar. O contrário dos retratos feitos depois, na América, por Robert Frank ou Diana Arbus, que sugerem que cada homem é um pária ou um anormal, um estrangeiro na sua terra, inviabilizando todo trabalho de classificação. (51) Rennó questiona justamente a possibilidade de a fotografia servir a esta função de índice do real, de garantir a identidade. Não por acaso utiliza-se de retratos de pessoas anônimas e desconhecidas. As fotos 3x4, originalmente em preto-e-branco, são coloridas à mão e retocadas. Objetos que põem em cheque a noção de "atestado de identidade", sempre associada ao retrato para documentos. Rompimento da ilusão especular da realidade proporcionada pela fotografia. Aqui a imagem não sugere a presença que emanava da velha foto, descrita por Benjamin, da vendedora de peixes. O retrato de identidade se desfaz. Estes rostos deformados, desmedidamente ampliados, com a boca e o nariz muito grandes em relação aos olhos pequenos, parecem se modificar à medida que são contornados. O dispositivo das caixas, com o acrílico em forma de bolha, requer uma mudança na postura do observador. Enquanto a imagem em perspectiva convencional requer um olho imóvel, um ponto de vista fixo, a visão desses rostos pede um olho ativo, deslocando-se em torno da esfera. Essas imagens são verdadeiras anamorfoses. Os surrealistas já produziam "objetos anamórficos". Numa foto de Man Ray, vemos uma estranha construção piramidal, em que o topo é a ponta de um cigarro e a base é formada primeiro pelo nariz e a testa de um rosto humano e depois por uma longa cabeleira em desalinho. Junto com Brassai e Kertez - mestres do informe -, ele faria inúmeros retratos de deformações anatômicas, por reflexos ou composições de corpos. Para produzir esse "informe", a imagem do corpo seria submetida a assaltos químicos e óticos. Os métodos são fotográficos: ataques de solarização, que transformam as sombras que definiam os contornos dos objetos sólidos. Efeitos de corrosão ótica, que produzem uma reorganização do contorno dos objetos. (52) A luz ataca a fronteira dos corpos, que cedem à invasão do espaço. A matéria é consumida por uma espécie de éter. Ocorre uma inscrição do espaço no corpo. Dissolvem-se os limites entre a coisa e o entorno, entre aquele que vê e aquele que é visto. Nos retratos compósitos de Rosângela Rennó os rostos sofrem a mesma violência ótica. A possibilidade de a fotografia garantir a identidade é discutida mais uma vez por Rosângela Rennó em Imemorial (1994), trabalho feito a partir de retratos 3x4 dos trabalhadores mortos quando da construção de Brasília. As imagens, retiradas de velhas fichas funcionais, ampliadas em película ortocromática, mostram feições desbotadas que já trazem estranhamente o signo da morte. Ninguém se lembra mais dos nomes dos sacrificados, dos acontecimentos que a crônica da época procurou mesmo ignorar. O documento fotográfico não foi capaz de evitar o esquecimento. Ao contrário, aqueles rostos retratados parecem ali condenados ao limbo. Brasília, monumento ao moderno, produziu mais um "imemorial". In Oblivionem (1994) leva a fotografia ao limite da intransparência. A instalação consiste em fotos encaixadas, com suas molduras, dentro das paredes. Ao lado, textos também em baixo-relevo. As fotos - retiradas de álbuns de família -, em película ortocromática, parecem ser inteiramente escuras. Só um olhar atencioso, que se aproxime muito da superfície, vislumbra formas e vultos. Os textos, retirados de jornais antigos, são fragmentos de crônicas cotidianas, relatos de circunstância ou notícias irrelevantes. Nada que os trechos isolados e imagens quase imperceptíveis possam trazer à lembrança. Esses indícios tão tênues e opacos apenas ajudam a mantê-los no esquecimento. Descontextualizadas, não sabemos mais a que se referem essas imagens e inscrições. Liberadas de seu compromisso de registro, do vínculo com acontecimentos determinados, podem apenas aspirar à instauração de outras situações, outras inscrições, outros significantes. Permitir contar novas histórias, constituir outras identidades, outros passados. Dar-se talvez uma imagem, fundar uma memória. (53) Uma rearticulação de passado, presente e futuro que mostra como a fotografia pode levar a pensar a história. Não existe catálogo possível. Nada mais assegura o acesso a essas vidas passadas, os registros não têm qualquer valia. As fichas desse arquivo não trazem nenhuma informação útil sobre o paradeiro desses indivíduos, nada que nos permita identificá-los e resgatar seu itinerário. Aos passantes não é acordado nenhum olhar que - como em Baudelaire - os agracie com uma fugaz identificação. Não há nenhuma expectativa de desvelar o significado das coisas. Esse invisível permanecerá para sempre inacessível. A fotografia em nada contribui para incrementar nossa capacidade de ver, de saber o que aconteceu. Todo o trabalho consiste numa investigação sobre os efeitos do tempo, do esquecimento, na memória registrada pela fotografia. Tudo está em baixo-relevo, escavado na parede, mais um indício de falta de visibilidade e transparência desses registros. Nada se dá imediatamente a ler. Há um recuo, textos e imagens retiram-se do primeiro plano. Entre eles se estabelece uma distância que impede toda função ilustrativa e bloqueia toda explicação que constitua um sentido para o que estamos tentando ver. Ficamos apenas com vultos e fragmentos de textos que não articulam jamais uma história, que nunca poderão nos dizer quem eram e para onde foram aquelas pessoas. É como se a passagem delas por aqueles lugares não tivesse deixado nenhum rastro - função tradicionalmente atribuída à fotografia e à palavra. A opacidade das imagens, quase completamente escuras, é o oposto da revelação - que convencionalmente relacionamos com a fotografia. Essas imagens não jogam nenhuma luz sobre os seres e fatos que retrataram. Eles permanecem para sempre condenados às sombras, ao esquecimento. É como se nunca tivessem sido fotografados. Esses registros de nada valem, apenas atestam o inexorável caminhar de tudo para a obscuridade. A fotografia é contrastada com a sua vocação primeira: lançar luz sobre as coisas. A revelação - também constitutiva do próprio processo fotográfico - aqui não tira as coisas do anonimato. Essas imagens parecem, ao contrário, veladas. Rebaixadas nas paredes, mergulhadas profundamente na escuridão. É como se a película ortocromática não conhecesse, propriamente, revelação. O que se vê assemelha-se a um negativo, em grande formato. O processamento é o mesmo do papel fotográfico, variando a base (filme em vez de papel) e a quantidade de prata. A particularidade está no processo de positivação, que explora as características físico-químicas do material, a saturação de prata. Ocorre um uso diferenciado daquele material, normalmente destinado à transparência. Aqui ele não dá luz. No negativo, normalmente, as figuras aparecem mais escuras, enquanto o fundo fica mais claro. Aqui o negativo é pintado de preto, por trás. Contra um fundo negro, o que era escuro fica relativamente mais claro. O depósito de prata faz com que se destaquem os vultos. Tornam-se prateados ao incidir luz lateral. Temos apenas nuances de cinza, prateado e preto. Trata-se, diz a artista, de uma metáfora da opacidade: preto sobre preto. Uma imagem que se dá num preto: uma imagem impossível. Aqui não há - ao contrário do que ocorre com outros artistas que trabalham a falta de transparência das imagens contemporâneas - nenhuma conotação tátil. Apenas a superfície lisa e opaca. O rebaixamento da imagem não cria espessura. A ênfase na superficialidade da imagem evidencia que ela não se cola a coisas e acontecimentos, que não serve para mapeá-los. Afirma o deslocamento dessas impressões com relação ao real, ao passado. Através dessas fotografias nenhuma identidade pode ser atestada, nenhuma história contada. É evidente a atualidade da herança do século XIX para a arte atual. Esse inventário - anatomias, próteses, poses, dispositivos imagéticos e imagens, tudo coletado e catalogado - viria a ser para a arte moderna o que as escavações de Roma foram para o renascimento: um imenso repertório no qual se podem encontrar novos modelos para o mundo contemporâneo. (54) O fenakistocópio de imagens de trabalho mecânico e ofertas de consumo, os rostos in vitro da coleção de humores e retratos de família em película ortocromática remetem aos antigos aparelhos óticos. Aqueles objetos, há muito anacrônicos - as passagens, os dioramas e as barracas de feira -, descortinam a paisagem como um "quadro mecânico". Como o sacudir de uma cúpula de cristal, fazendo nevar sobre o pequeno cenário urbano que encerra no seu interior. NOTAS 36 Walter Benjamin, "Rua de mão única", em Obras escolhidas, vol. II, cit., pp. 50-54. Para uma descrição dessas feiras, ver também Ernst Bloch, Héritage de ce temps (Paris: Payot, 1978) e Traces (Paris: Gallimard, 1968). volta ao texto 37 Hal Foster, Compulsive Beauty, cit. volta ao texto 38 Boris Kossoy, "A fotografia estereoscópica", em Iris, nº 308, São Paulo, setembro de 1978. volta ao texto 39 Jonathan Crary, Techniques of the Observer: on Vision and Modernity in the 19th Century, cit., p. 125. volta ao texto 40 Gilles Deleuze & Felix Guatari, "Le lisse et le strié", em Mille plateaux, cit. volta ao texto 41 Rosalind Krauss, "Photography's Discursive Spaces", em The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths, cit. volta ao texto 42 Observações de Mônica Rodrigues Costa. volta ao texto 43 A emulação do invisível: imagens de Rosângela Rennó (texto não publicado de Margot Pavan). volta ao texto 44 Michel Foucault, Les mots et les choses, cit., p. 143. volta ao texto 45 Peter Strasser, "Cesare Lombroso: l'homme delinquant ou la bête sauvage au naturel", em L'âme au corps: arts et sciences 1793-1993 (Paris: Réunion des Musées Nationaux, 1993). volta ao texto 46 Philippe Comar, "A Made-to-Mesure Identity", em Identity and Alterity, catálogo da 46a Bienal de Veneza, 1995. volta ao texto 47 Philippe Comar, "Les chaînes d'art", em L'âme au corps (Paris: Réunion des Musées Nationaux, 1993). Ver também Philippe Dubois, O ato fotográfico e outros ensaios, cit., p. 241. volta ao texto 48 Maurício Lissovsky, "O dedo e a orelha", em Acervo, n° l, Rio de Janeiro, 1993. volta ao texto 49 Jean Clair, "Impossible Anatomy 1895-1995", Identity and Alterity, cit. volta ao texto 50 Joan Copjec, "Flavit et Dissipati Sunt", em Annette Michelson (org.), October: the First Decade (Cambridge: MIT Press, 1987). volta ao texto 51 Susan Sontag, La photographie, cit., p. 73. volta ao texto 52 Rosalind Krauss, "Corpus delicti", em Le photographique: pour une théorie des écarts (Paris: Macula, 1990), p. 173, e The Optical Unconscious, cit. volta ao texto 53 Ivo Mesquita, "Rosângela Rennó", em 6 artistas da XXII Bienal Internacional de São Paulo (São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1994). volta ao texto 54 Destaque-se a curadoria de Jean Clair da 46a Bienal de Veneza (1995) e da exposição L'ame au corps: arts et sciences 1793-1993, Paris, 1993. volta ao texto
Posted by Patricia Canetti at 6:55 PM
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