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Tema 3

O que pode ser feito? (Transformação)

Patricia Canetti

Palestra apresentada por Patricia Canetti no Encontro Transregional da documenta 12 magazines no Instituto Goethe, em São Paulo, na segunda-feira passada, 8 de outubro de 2006.

Nada. Ou alguma coisa. Fazer alguma coisa em relação a algo, significa transformá-lo. Transformação exige análise, conhecimento, crítica, desejo, energia...

O terceiro tema principal da documenta 12 tem sido o motor da criação e processo do Canal Contemporâneo. “O que pode ser feito? (educação)” surge no questionamento constante sobre o que somos, o que queremos (discurso) e o que podemos ser (ações), equacionado na vivência cotidiana da comunidade digital do Canal Contemporâneo.

Um foco – a arte contemporânea brasileira – e uma mídia digital traçam o início desta comunidade, que se forma na comunicação e no sentimento de pertencimento estabelecidos nas relações que vivenciamos. A definição deste corpo social / sujeito coletivo formado dinamicamente pelos integrantes da comunidade, por suas características e anseios, se delineia e se torna visível através de suas ações e reações.

Ao analisar este corpo social, percebemos células individuais e coletivas – formadas por agrupamentos múltiplos que respondem a características objetivas (funções no contexto artístico) e subjetivas (conceitos artísticos) –, que trazem desejos diversos, muitas vezes conflitantes, revelando espaços e temporalidades díspares que coabitam na profundidade deste espaço cibernético.

Profissionais diversos (artistas, críticos, curadores, pesquisadores, educadores, professores, dirigentes de instituições, galeristas, marchands, colecionadores, patrocinadores, jornalistas, etc.) e apreciadores agregados no Canal Contemporâneo são atores/agentes da cena de arte contemporânea brasileira, que forma o nosso mercado de trabalho e se reporta aos contextos históricos e internacionais, ordenando um encadeamento de conjuntos e subconjuntos. É sobre este todo complexo e dinâmico que se estrutura o Canal Contemporâneo, refletindo e atuando sobre as suas características sociais, políticas e econômicas com o objetivo de criar um coletivo vivo e saudável capaz de um desenvolvimento crítico e transformador.

Do tripé estrutural do coletivo humano, o lado econômico é o que apresenta a maior defasagem entre a sua importância na vida global contemporânea e o seu desempenho nesta coletividade, e talvez por isso seja o que apresenta maior dificuldade em ser abordado: se criar estratégias, receber respostas, provocar desdobramentos e realizar avanços efetivos.

Herdamos da histórica da arte duas características fortes no âmbito econômico: o mecenato e o valor da obra relacionado não apenas a oferta e procura mas também a sua presciência. Ambas afastaram a nossa economia de mercado da realidade comum aos outros mercados e, conseqüentemente, nos moldaram a padrões antigos que perduram até hoje.

No Brasil atual, mecenato denomina um mecanismo público de incentivo fiscal para a cultura. Ou seja, ao invés do significado anterior relacionado à proteção das artes, passou a vigorar o novo sentido relacionado ao marketing cultural, tanto para o estado como para a iniciativa privada. A proteção que nos chega agora via mecenato é, antes de tudo, negócio. Mudou o significado da palavra, já incluído nos dicionários, e mudaram também as relações econômicas de financiamento à arte. E, passados 20 anos, desde a criação desta nova forma de negócio, que nos demanda novos conhecimentos e novas formas de atuação, nós ainda apresentamos um total despreparo perante esta “nova realidade”.

O mecenato de hoje atualiza a arte em relação à economia contemporânea, colocando a prestação de serviços em prioridade de crescimento, no lugar da venda de produtos. O que no nosso mercado de trabalho significa, ao menos teoricamente, uma certa equiparação entre instituições culturais e galerias na sua atuação como agentes econômicos; ambas poderiam atuar como produtoras e editoras, o que certamente viria ao encontro das demandas da produção artística contemporânea, ao invés de se limitarem a seus papeis tradicionais: guardar e mostrar acervos e vender produtos, respectivamente.

Somando-se à manutenção desses papeis tradicionais e à recusa de trabalhar o marketing cultural de nossos agentes econômicos, temos também uma incompatibilidade com a economia contemporânea cujo desenvolvimento se dá no volume de troca. A economia da arte insiste em trabalhar, mesmo que artificialmente, os grandes valores em detrimento do volume de distribuição.

O que pode ser feito?

O movimento inicial do Canal Contemporâneo é muito simples: comunicar e dar visibilidade ao que somos a partir do material que nos é enviado pela comunidade. Na seqüência, analisamos resultados e desdobramentos, propomos ações, novos espaços de visibilidade, e seguimos aprofundando as transformações possíveis.

Vamos relatar aqui alguns casos do Canal para exemplificar as dimensões tratadas na complexidade e simultaneidade do nosso campo de ação, que se esconde atrás de cada comunicação, com o objetivo de investigarmos um pouco mais as nossas questões econômicas e encontrar algumas direções para possíveis transformações.

No terceiro convite eletrônico disparado pelo Canal Contemporâneo, em março de 2001, anunciava-se um novo salão de arte, que conseguiu, com a nova forma de comunicação, atrair mais de 1500 inscrições, quando a média para salões na época girava em torno de 400. Maior número de artistas concorrendo aos prêmios; maior diversidade da produção originada em diferentes partes do país e do exterior e, certamente, mais trabalho para a comissão julgadora... Cinco anos depois, o Canal passa a veicular banners publicitários dos maiores prêmios realizados no país e ao mesmo tempo publica informações para o artista sobre o custo-benefício dos editais no seu informativo eletrônico e no blog Salões&Prêmios. Com o uso de publicidade amplia-se ainda mais a divulgação destes eventos e com a publicação das informações sobre custo-benefício amplia-se também a conscientização do meio a respeito dos altos custos e poucos ganhos que cabem aos artistas nestes concursos (muitas vezes responsáveis pela programação anual de importantes instituições culturais).

Os editais de arte – salões, programação anual de exposições, bolsas e prêmios – são os principais mecanismos destinados a dar visibilidade a produção artística emergente no Brasil, a democratizar o acesso dos artistas ao espaço de exposições em instituições públicas e conseqüentemente exercem um importante papel na circulação de capital entre os responsáveis diretos pela produção de arte no país. Com a visibilidade proporcionada pelo Canal Contemporâneo, aumentamos o acesso aos editais, mas também geramos uma saudável concorrência entre eles, gerando benefícios para artistas, instituições e patrocinadores envolvidos.

Este exemplo dos editais de arte demonstra claramente o quanto as transformações na esfera coletiva entrelaçam as instâncias sociais, políticas e econômicas. E reforça a importância do âmbito econômico que, mesmo sendo o lado mais poderoso deste tripé na vida global contemporânea, revela-se como sendo a parte mais fraca na nossa coletividade.

A falta histórica de mídias especializadas em arte no Brasil nos levou a um embotamento no desenvolvimento de nossa economia de mercado. Não usamos publicidade, por isso não temos publicações periódicas. Ou, não temos publicações e por isso não temos o hábito da propaganda. O ovo ou a galinha, não importa, o resultado é um mercado que não faz uso de uma ferramenta essencial para o seu crescimento.

Outro ponto a ser ressaltado trazido pelos editais de arte é a falta de cachês pagos aos artistas, que compromete gravemente o ponto de partida de nossa cadeia produtiva.

Os artistas investem seus próprios recursos para promover a programação das instituições culturais, que não tem verbas suficientes para o orçamento básico de seu funcionamento. Rubricas como transporte, seguro, equipamentos especiais, passagem, hospedagem e diárias para montagem do trabalho são normalmente atribuídas aos artistas. Algumas vezes, convites e coquetéis de inauguração também. Sem falar na falta de um cachê adequado ao trabalho do artista.

Estes recursos investidos nas instituições faltam aos artistas na hora de bancar a produção de certos trabalhos dispendiosos, como ampliações digitais e vídeos, resultando na necessidade de suas galerias subsidiarem a produção. O dinheiro gasto com a produção de obras deixa de ser aplicado pelos galeristas em marketing e publicidade, em publicações e feiras, o que fragiliza e muitas vezes impossibilita a existência destes mecanismos de comunicação e mercado. A falta de publicações e feiras deprime o mercado de trabalho que poderia, de outro modo, render demandas de textos críticos, curadorias, montagens, serviços fotográficos e tantos outros serviços que fazem parte de nossa cadeia produtiva.

Concluindo: Os recursos não pagos aos artistas no início desta cadeia vão acarretar perdas para todos os profissionais e para o sistema de arte em si, que, aliás, por sua natureza própria de sistema, não poderia deixar de sofrer as conseqüências.

De volta ao mecenato. O Canal Contemporâneo lançou o projeto de sua participação no documenta 12 magazines e, com ele, uma campanha para arrecadar recursos, junto a pessoas físicas, através da Lei de Incentivo a Cultura. A mesma lei que deu um novo significado ao mecenato, ainda mantém um viés da proteção da arte na doação de recursos por indivíduos e vai além; ao agregar um caráter plebiscitário a esta manifestação. Mas, estranhamente, esta via nunca vingou... É muito comum ouvir de pessoas ligadas à área, de todos os níveis, de profissionais a apreciadores, que deveria haver um maior investimento na cultura. Mas estas mesmas pessoas são incapazes de fazer uso de um direito que esta lei lhes reserva; deixam de exercer o mecenato e perdem a oportunidade de apontar ao governo as suas áreas prioritárias.

Dentro deste novo contexto de financiamento da arte, que se configura como uma onda de privatização global, com a retirada do estado e a entrada de empresas, ditando uma nova configuração de negócio com o marketing cultural e com a interferência nos conselhos de instituições culturais, temos efetivada uma mudança de “patrões” da arte. Não mais a Igreja, o Rei ou o Estado, mas o conglomerado que rege o Capital. E enquanto não assumimos esta mudança, não somos capazes de reagir, de influenciar as regras do jogo, nem individualmente, nem coletivamente.

Quando o Canal Contemporâneo mobilizou a sua comunidade contra o uso de recursos públicos na construção e manutenção (durante 10 anos) do museu Guggenheim no Rio de Janeiro, através de um abaixo-assinado e da publicação incessante de encontros, ações e textos, conseguimos levar a nossa insatisfação para o resto da sociedade. Da imprensa, que se mantinha omissa, ao poder legislativo, obtivemos o êxito de promover a ação do judiciário, que impediu o primeiro pagamento, mesmo depois da furtiva assinatura do contrato pelo prefeito da cidade.

Algumas mobilizações políticas realizadas no Canal alcançaram resultados favoráveis para a comunidade. Mesmo com dificuldade de atuar politicamente, seja devido a ainda recente comunicação estabelecida nesta coletividade ou pela herança da ditadura militar vivida em nosso país, ainda conseguimos mais resultados no âmbito político do que no econômico. (Talvez por ser a ditadura econômica ainda mais perversa.)

Transformação.

Como enfrentar este desafio, como nos reeducar economicamente face à ditadura econômica vigente?

A realidade da sobrevivência do Canal Contemporâneo levou-nos a pensar a sua autosustentabilidade e, depois de um ano e meio de vida, a recorrer aos integrantes da comunidade por contribuições em forma de assinaturas semestrais. Indivíduos e organismos passaram a contribuir com valores diferenciados, os primeiros pagando bem menos que os segundos, para a manutenção ainda deficitária do Canal. Outros três anos se passaram até a entrada do primeiro patrocinador nesta comunidade, a Petrobras – maior incentivadora da cultura brasileira, que agora passa para o segundo ano de patrocínio.

O Canal Contemporâneo é a única iniciativa cultural patrocinada que mantém uma política de autosustentabilidade a partir de seus próprios integrantes. Além da questão básica da sobrevivência econômica, estendemos o trabalho cooperativo responsável pela comunicação na comunidade para a área econômica, com o objetivo de refletir sobre ela coletivamente e como forma de manter a nossa independência política junto às outras fontes de recursos (anunciantes e patrocinadores).

Lidamos com a interdependência dos vários integrantes e ações de nossa coletividade e acreditamos que a melhor maneira de manter a nossa liberdade de pensamento crítico está em desenvolver o crescimento econômico junto à própria comunidade, a partir do sistema do qual fazemos parte. Mantendo sempre a prática de dar visibilidade ao sistema para gerar reflexão sobre o seu reflexo em todos os âmbitos.

Dentro deste contexto de uma comunidade participativa economicamente, tratamos o patrocinador como mais um integrante, criando um relacionamento de contágio próprio de relações de sistema. Como conseqüência desta postura, já evidenciamos algumas transformações no relacionamento com a Petrobras. Desenvolvemos contatos com várias áreas da empresa, não apenas com a de patrocínio cultural, que resultou no primeiro encontro de alguns sítios patrocinados pela empresa com representantes de vários departamentos para trocar idéias sobre os projetos e o uso da internet. Esperamos com esta troca aprender mais sobre marketing cultural, educar o patrocinador a respeito de comunidades digitais e sobre as características específicas da internet, e, ainda, interagir com outras áreas culturais também patrocinadas pela empresa.

Mais do que a sobrevivência financeira e a liberdade de ação, buscamos gerar, com a participação da comunidade na sustentabilidade do Canal, um debate sobre os caminhos econômicos existentes e a criação de novos direcionamentos, que promovam o desenvolvimento econômico da coletividade para potencializar transformações sociais e políticas.

Trabalhar o Canal Contemporâneo significa trabalhar a arte contemporânea brasileira e a comunidade formada a partir deste foco através das novas possibilidades de ação e formulação do coletivo engendradas na internet. A partir do biobot de Eduardo Kac obtemos a imagem de nosso funcionamento: um ser tecnológico movimentado pela multiplicação e movimentação de organismos vivos – indivíduos conectados à rede da internet e também às infinitas conexões das coletividades que os formam, culturalmente e geneticamente.

Trabalhamos o todo e cada elemento, as várias camadas que nos formam e, principalmente, as nossas diferenças que compõem as dinâmicas dos padrões das coletividades na construção das individualidades e a dos padrões das individualidades na construção das coletividades. Estas duas dinâmicas em movimento constante, este estar um dentro do outro, constituem uma relação de tempo e espaço que promovem a profundidade no espaço cibernético e desenham este veículo-lugar vivo e dinâmico.

Transformação exige análise, conhecimento, crítica, desejo, energia... estar vivo, sempre.

Como agir sobre as condições atuais? Como participar nesse organismo pode representar mudanças ou apontamentos quanto ao sistema de arte brasileiro e a formulação e aplicação das políticas públicas de cultura? Associar-se ao Canal significa apenas esperar pelo seu conteúdo? Como interferir sendo um agente nessa dinâmica que pretende pensar, criar alternativas e modificar o contexto da produção da cultura no Brasil? Na fase atual do capitalismo contemporâneo e da pauta política brasileira - que ignora ou desconhece as políticas culturais como representantes do universo simbólico do país - como posso atuar politicamente?

Responda e comente o texto publicando um comentário ou envie sua colaboração para ser publicada neste blog para doc12@canalcontemporaneo.art.br.

FORMAS DE PARTICIPAÇÃO NO NOSSO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
- Acesse a seção A Comunidade e conheça os Associados Individuais e Organismos Associados.

- Acesse a seção Faça parte do Canal para conhecer as formas de participação.

- Leia sobre Como incentivar o Canal Contemporâneo na documenta 12 magazines, projeto aprovado na Lei Rouanet e já parcialmente patrocinado pela Petrobras.

Patricia Canetti
É artista, criadora e coordenadora do Canal Contemporâneo - comunidade digital de arte contemporânea brasileira de reconhecida atuação política. Juntamente com o Canal, tem participado de exposições e coordenado projetos e parcerias em eventos como o Fórum Conexões Tecnológicas e o documenta 12 magazines, além de destacada mobilização que levou ao embargo da construção do Guggenheim-Rio com verbas públicas e no processo de inclusão das novas mídias entre os escopos das leis federais de incentivo à cultura. Desde 2005, integra o International Advisory Board of the Digital Communities para o Prix Ars Electronica.
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