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Tema 1

Quadros Mecânicos – Fisionomias urbanas

Nelson Brissac Peixoto
Nelson Brissac Peixoto, publicado originalmente no livro Paisagens Urbanas, editora Senac São Paulo, 2003.

Uma paisagem dentro de uma caixa de vidro, pendurada na parede. Em primeiro plano, crianças brincando junto ao porto, mais atrás, duas mulheres se dirigem às barracas da feira, sob as árvores e, ao fundo, a torre da igreja se destaca contra o céu. O mecanismo do relógio põe em movimento – aos solavancos – os barcos, a roda-d'água, o cata-vento, as janelas e as pessoas. Uma paisagem mecânica.

Uma paisagística do urbano está se esboçando aqui. Mas não se trata de um quadro que se abra, como uma janela, para espetáculo da cidade. O que vemos é um dispositivo ótico-mecânico. O modelo de paisagismo de Benjamin é o do pintor de panoramas. É nas galerias, nos dioramas, nas exposições universais e nos interiores que vai buscar os componentes da paisagem.
 
O quadro mecânico é um dispositivo de passagem. Tudo está contido nele. Ali se passa de um tempo a outro, de uma dimensão a outra. Ligação entre primeiro plano e fundo, entre retrato do cotidiano e imagem de terras longínquas, entre pintura e aparelho ótico, entre o real e a ilusão. Intersecção entre o quadro e o cenário de feira, entre a literatura de folhetim e o museu de cera, entre a obra de arte única e a reprodução técnica, entre miniatura e arquitetura, entre o jogo de armar e a cidade. Passagem entre pintura e arquitetura e fotografia e cinema e urbanismo.
 
A cultura contemporânea, quando entram em crise os sistemas modernos de pensar e ver que até há pouco garantiam a identidade e o lugar das coisas, remeteria a esses antigos dispositivos. Assim é que a produção artística mais recente, como os retratos compósitos de Rosângela Rennó e o cinema fenakistocópico de Jorge Furtado, reconstitui os quadros mecânicos. O olhar contemporâneo vai partir daqueles velhos mecanismos.
 
Uma mutação essencial na natureza da visualidade ocorreria na primeira metade do século XIX – quando o olhar direto passa a ser substituído por práticas em que as imagens visuais não fazem mais nenhuma referência à posição de um observador no mundo. Uma reorganização da visão, que produziria um novo tipo de observador, um novo e heterogêneo regime do olhar. Uma transformação no campo de visão que ecoaria um século depois, com a fotografia e o cinema, e reafirmaria hoje sua atualidade, com a implantação de espaços visuais fabricados pelo computador e pela imagem eletrônica.(1)
 
Uma nova modalidade de espectador toma lugar, quando se passa da câmera obscura – paradigma da visão nos séculos XVII e XVIII – para os aparelhos óticos, em particular o estereoscópio. Os aparelhos de produção de efeitos "realistas" na cultura visual de massa eram na verdade baseados numa radical abstração e reconstrução da experiência ótica. O olhar ganha uma mobilidade e uma intercambialidade sem precedentes, abstraído de qualquer referente ou lugar.(2)
 
Surge um "observador ambulante", formado pela convergência de novos espaços urbanos, tecnologias e imagens. Deixa de existir a própria possibilidade de uma postura contemplativa. Não há mais um acesso único a um objeto, a visão é sempre múltipla, adjacente, sobrepondo outros objetos. Um mundo em que tudo está em circulação.
 
Essa mutação nos princípios da visualidade, pelo deslocamento do observador, já estava esboçada antes: as vistas de Veneza por Canaletto apresentam uma cidade que só é inteligível como uma articulação de múltiplos pontos de vista. Variações que façam as coisas aflorarem desse espaço confuso, organizando-as como num cenário. Próprias de uma cidade barroca, textura aberta, sem referência a um significante privilegiado que lhe dê orientação e sentido. Não por acaso as vistas urbanas de Canaletto são uma referência para os arquitetos contemporâneos que se defrontam com metrópoles desprovidas de centro e perfil
 
A pluralidade de vistas foi condição para a formação de um observador competente para consumir as vastas quantidades de imagens e informações que começavam a ser postas em circulação no século XIX. Densidade e complexidade que também caracterizariam a imagem contemporânea, determinada pelo vídeo. O campo visual é convertido numa superfície de inscrição, em que um amplo leque de efeitos poderá se produzir.
 
Uma nova disposição da paisagem – uma nova visualidade – afirma-se aqui. Uma superfície planar, desprovida de profundidade, em que os elementos são justapostos. Onde o olhar se desloca lateralmente, multiplicando os pontos de vista. Um espaço de agregação de várias perspectivas e linguagens. A paisagem convertida num daqueles antigos cenários automáticos dentro de uma caixa de vidro, um quadro mecânico.
 
Mas os instrumentos do ver podem apreender a imagem da metrópole? Esse paisagismo urbano está assentado em aparatos ótíco-mecânicos – os dioramas, os cenários pintados em barracas de tiro ao alvo e os cartões-postais de celofane – que ainda vacilavam nos limites do mundo moderno. O retrato da cidade é traçado no universo menor e profano dos dioramas e decalcomanias.(3)
 
Essa idéia de que é nos objetos mais banais do mundo cotidiano que foi se aninhar o sublime das grandes paisagens cristaliza-se mais claramente no surrealismo. Caber-lhe-ia a glória de ter primeiro pressentido a energia contida naquilo que é "antiquado", nas primeiras construções de ferro, nas primeiras fábricas, nas fotografias mais antigas, nos objetos que começam a cair em desuso. Ninguém até então tinha percebido até que ponto a miséria da arquitetura e dos interiores podia se converter no seu contrário. O surrealismo resgata esse horizonte urbano vulgar e desolador. Ele dá voz a esse mundo de coisas, em cujo centro está a cidade.(4)
 
O flâneur é esse novo observador. Com seu passo lento e sem direção, ele atravessa a cidade como alguém que contempla um panorama, observando calmamente os tipos e os lugares que cruza em seu caminho. Com esse seu jeito de passear, como se recolhesse espécies para uma verdadeira, tipologia urbana, ele está "a fazer botânica no asfalto". Ele faz "um inventário das coisas": o trabalho de classificação característico da época.
 
Não por acaso surge ao mesmo tempo que as chamadas "fisiologias", um gênero literário popular que se dedicava a descrever os tipos humanos que se podiam encontrar na rua e todos os cenários urbanos possíveis em que se poderia viver. Pode-se dizer então que, uma vez na rua, nosso caminhante "olha a sua volta como em um panorama". Esse modo de andar na cidade, a arquitetura das galerias, o dispositivo ótico-mecânico dos panoramas, das feiras e dos jogos infantis constituem modos combinados de ver a cidade.
Trata-se, diz Benjamin, de uma literatura panorâmica: os folhetins imitam "o primeiro plano plástico e, com seu fundo informativo, o segundo plano largo e extenso dos panoramas".(5) Como um tableau mécanique. As fisiologias pertencem ao mesmo universo dos herbários e das coleções. Ao caducarem, no século XVIII, os antigos modos de relacionamento e hierarquização das coisas, cria-se um novo espaço, em que as coisas agora se justapõem. Um espaço de vizinhança em que tudo pode vir se colocar, onde os seres se apresentam uns ao lado dos outros. O jardim botânico, os acervos zoológicos e o gabinete de história natural apresentam as coisas num quadro.(6)
 
O gênero do tableau é a forma preferida dos folhetinistas e historiógrafos nos séculos XVIII e XIX. O quadro permite, em pouco espaço, pôr em cena usos e costumes, caracteres sociais e conflitos. Mostrar a fisionomia da grande cidade, condensando num instantâneo sua complexa simultaneidade. Daí prestar-se à mistura de gêneros. O tableau urbano, esse gênero conciso, é apropriado para satisfazer simultaneamente os diversos tipos de abordagem.(7) Ele configura pontos topográficos do mapa de uma cidade com toda a sua carga arquitetônica, histórica, simbólica ou resultante da experiência e da memória pessoais.
 
O tema da flânerie implica uma teoria da visão. Justamente para mostrar que não se trata mais de um olhar imediato, como o daquele que contempla uma paisagem. Baudelaire usa o termo flâneur para definir o tipo de observação que ele admira no pintor parisiense Constantin Guys, recorrendo para isso a anotações feitas por Poe. Benjamin observa Baudelaire observando, por meio de Poe, o pintor. Ele usa a figura do transeunte e a poética baudelairiana como lentes através das quais se pode ver a vida parisiense. Paris, o objeto da pintura de Guys, é trazida aos olhos do leitor através de uma série de mediações.(8)
 
O flâneur aponta para os limites do realismo do século XIX. Combina o olhar casual daquele que passeia com a observação atenta do detetive, vê a cidade ampla como uma paisagem e fechada como um quarto: instaura um modo complexo de visão, construído através de sobreposições ou seqüências de diferentes formas de espaço, de descrições, de imagens.
 
A experiência da flânerie transforma a rua num aparato ótico semelhante às arcadas e aos panoramas. A rua como um dispositivo do olhar. Essa idéia de um espaço e um sujeito óticos – em que o centro (fixo) é substituído pelo ponto de vista (para várias direções) – é essencialmente barroca.(9)
 
Tudo então se justapõe, todas as dimensões se encaixam no mesmo quadro. Se, por um lado, a cidade se abre como um espaço sem limites – paisagem –, por outro, também se encerra numa redoma fechada – o quarto. Um teatro mecânico, uma barraca de feira. A rua convertida em interior: as butiques parecem armários.
 
O próprio protagonista da experiência urbana integra-se a esse cenário. A figura do flâneur avança sobre a calçada de pedra "como se ele fosse animado por um mecanismo de relojoaria". O passante é um personagem desse presépio, dessa pintura mecânica. Um autômato: "seu coração assume a cadência de um relógio".
 
Daí o fenômeno de sobreposição (colportage) do espaço ser a experiência fundamental daquele que passeia. A expressão remete às coisas de menor valor, dessas vendidas em grandes quantidades em feiras – colporter é anunciar, atividade do mercador ambulante, que vende quinquilharias. Alude às formas populares de representação, como as pinturas de barracas de parques de diversão – centrais na teoria da arte moderna em Baudelaire. O efeito permite perceber simultaneamente tudo o que acontece potencialmente num mesmo espaço. Implica condensação de diversos eventos num só lugar ou narrativa. A colportage junta todas as coisas como num quadro taxinômico. Notável a atualidade do fenômeno: a imagem contemporânea é também uma justaposição – em contigüidade – de diversos suportes, tempos e dimensões.
 
Desde o renascimento, com a perspectiva, as coisas eram percebidas como distribuídas no espaço. O olhar percorria a extensão vendo antes o que está em primeiro plano, depois o que vem mais atrás e só por fim o que está no fundo. O olhar avançava em profundidade, se fazia no tempo e no espaço. Aqui, ao contrário, tudo o que está em determinado lugar é percebido simultaneamente. O espaço perde suas coordenadas, o fundo se confundindo com o primeiro plano. Como faziam as histórias de folhetim da época – chamadas de colportage –, que mostravam terras exóticas como se fossem familiares, misturando o próximo e o longínquo, o passado e o presente. Tudo – tanto o que está na frente quanto ao fundo – é visto ao mesmo tempo.
 
Isso porque, na flânerie, "as distâncias irrompem na paisagem", assim como épocas passadas surgem no momento presente. Nesse estado inebriante, diz Benjamin, se passa aquilo que podemos visualizar numa daquelas pinturas mecânicas do século XIX, "em que vemos, em primeiro plano, um pastor a tocar flauta, junto a ele duas crianças a se embalarem ao ritmo, mais atrás dois caçadores na caça a um leão e, por fim, bem ao fundo, um trem a atravessar uma ponte ferroviária".(10) De repente, como numa iluminação, tudo nessas paisagens caóticas se põe no seu lugar, todos os planos se sobrepondo no mesmo quadro. A figura do quadro mecânico será fundamental nesse paisagismo moderno.
 
Aí então a cidade parece funcionar segundo uma articulação automática, como se tudo de repente tivesse naturalmente se encaixado. Um momento em que percebemos que tudo está no seu lugar, como que distribuído na paisagem. Veremos como nas galerias as coisas que se acumulam, exibidas nas vitrines, encontram suas próprias composições. Uma constelação mecânica. A cidade fica parecendo um presépio, uma paisagem dentro de uma redoma de cristal.
 
Benjamin descreve assim, em seus diários de Moscou, um desses "quadros mecânicos", que encontrou no museu de brinquedos da cidade: "um relógio mecânico, uma paisagem no interior de uma caixa de vidro pendurada na parede. O mecanismo estava quebrado, e o relógio, cujas batidas antigamente punham em movimento moinhos de vento, rodas-d'água, venezianas e pessoas, não funcionava mais".(11) Uma paisagem cuja dinâmica era produzida por engrenagens. Literalmente, uma paisagem mecânica.
 
O esmagamento da perspectiva – essa telescopagem dos planos –, próprio da pintura moderna e da fotografia, já é anunciado por Proust. Suas descrições da pintura imaginária de Elstir – inspirado em Manet –remetem a um efeito de aproximação inaudita, de uma interpenetração generalizada de partes heterogêneas da paisagem: "um navio em pleno mar, ocultado em parte pelas destacadas edificações do arsenal, parecia navegar no meio da cidade [...]".(12) Esses planos que se sobrepõem sem profundidade correspondem à perspectiva telescópica de Proust. Não por acaso o telescópio é o instrumento ótico escolhido por ele como modelo de sua descrição dos fenômenos.
 
Já se mostrou como também Kafka faz de Praga um labirinto de vasos comunicantes, tirando proveito estético do peculiar traçado da cidade na trama da sua narrativa. Enquanto as cidades em geral destacam o espaço interno do externo separando casas, ruas, praças e bairros, no miolo de Praga o espaço aberto está ligado ao ambiente privado por inúmeras passagens internas que levam o cidadão de uma rua a um pátio ou a outra rua pelo interior das residências. Tem-se então acesso direto a qualquer domínio público ou particular, passando continuamente de um lugar a outro. Até os apartamentos ali são diferentes, pois, em vez dos corredores isolando os aposentos, temos espaços que entram uns nos outros. As passagens internas instalam uma contigüidade de espaços que determina a topografia da cidade e o itinerário do caminhante.(13)
 
Benjamin se contrapõe ao pitoresco, que toma as coisas a distância. Interessam-lhe outros modos de resgatar a paisagem. Conjurá-la, como faz o poeta, com uma nova chamada: a ilusão ótica. Toda uma nova teoria da arte – moderna – está emergindo daí. Examinando uma exposição de quadros de paisagem, Baudelaire diz que gostaria de voltar aos dioramas, cuja "magia grosseira" impõe uma "ilusão útil", que prefere contemplar cenários de teatro, em que encontra, "expressos com arte e trágica concisão", seus mais caros sonhos. "Estas coisas, porque falsas, estão infinitamente mais próximas da verdade, enquanto a maioria dos nossos paisagistas mente, justamente porque se esquecem de mentir." (14)
 
Uma outra noção de paisagem: condensada num cenário, numa superfície pintada. A visão do horizonte e do perfil das cidades por meio de dispositivos ótico-mecânicos. Cenários de teatro, cartões-postais. Ao contrário da pretensão à verossimilhança – a ocultação de todo artifício –, o poeta defende essas imagens justamente no que têm de falsidade e grosseria. Um poder de significação que deriva, paradoxalmente, da própria singeleza e artificialidade mecânica dessas paisagens.
 
Benjamin compreendeu isso: Baudelaire "insiste no fascínio da distância e avalia uma paisagem diretamente pêlos padrões das pinturas das barracas de feira. Quer talvez ver destruído o encanto da distância, como ocorre ao espectador que se aproxima demais de um cenário?".(15)
 
A renúncia ao encantamento do distante é um elemento decisivo na lírica de Baudelaire. A singela distância das paisagens de barracas de feira, esse horizonte azulado – evidentemente pintado –, não se desfaz com a aproximação, tal como tende a ocorrer com qualquer cena após o primeiro olhar. Não se estende, espalhafatosa e prolixa, quando se chega perto, mas apenas se ergue, ainda mais fechada e ameaçadora, à nossa frente. É isso que dá aos cenários teatrais seu caráter incomparável.
 
Os cenários se contrapõem à pintura paisagística tradicional. Para
Benjamin, a grandeza da intenção alegórica consiste na destruição da ilusão naturalista. A alegoria implica arrancar as coisas de seu contexto habitual, destruir seus nexos orgânicos, criando novas constelações. Na cidade convertida em paisagem, as formas urbanas e arquitetônicas aparecem travestidas, fora de lugar. Evita o impulso sentimental de dar às coisas uma morada – evidente nos locais fechados de exibição, nas miniaturas e em todos os estojos, caixas e capas que se produziam, na época, para guardar os objetos. Sob os passos do flâneur, a cidade, alegoricamente, se transmuta. "Já não é pátria. É palco e país estrangeiro." É cenário e lugar outro, distante.

Brassai
La Tour Saint-Jacques
Revista Le Minotaure, Paris, 1935

Um imaginário urbano resultaria desses mecanismos de ilusionismo ótico. Balzac já apontava para a paisagem formada pelos telhados de Paris, "uma savana a cobrir abismos povoados". Mas o procedimento é inspirado em Baudelaire: os Tableaux parisiens efetuam uma "transfiguração da cidade em paisagem". Eles colocam a cidade em confronto direto com o céu, os poucos elementos efetivamente urbanos se confundindo com o horizonte. Seu cenário é, na verdade, a cidade mergulhada na bruma.(16)
 
As vistas de Benjamin transformam a cidade numa floresta, quando afirma que "o nome das ruas deve soar como o estalar do graveto seco ao ser pisado, e as vielas do centro da cidade devem refletir as horas do dia tão nitidamente quanto um desfiladeiro".(17) O arfar de uma respiração, como o latejar da floresta, e o brilho do sol nos edifícios é que dão vida a esse horizonte. É próprio da alegoria fazer da natureza uma história e transformar a história em natureza.(18) A cidade se converte em objeto da ciência natural, com suas arquiteturas classificadas como espécies variadas.
 
É assim que a cidade pode aparecer como uma paisagem. Baudelaire, com o tema das nuvens, em Paysage, já operava essa transformação de Paris. Suas ruas são abismos por cima dos quais, bem alto, passam nuvens. Proliferam, na época, descrições da cidade como se fosse uma mata, onde as Tulherias aparecem como uma imensa savana plantada com bicos de gás no lugar de bananeiras.
 
Uma descoberta: em Paris se pode andar por montes e vales, como no campo. Uma transfiguração se produz aqui. Na flânerie "a cidade abre-se diante do transeunte como uma paisagem sem soleiras". Seu caminhar distraído não só a encerra em interior, mas também a descortina como cenário. "Paisagem – eis no que se transforma a cidade para o flâneur."(19) Benjamin aqui está retomando metáforas entranhadas na cultura ocidental desde o medievo, quando a floresta substitui o deserto como lugar de tentação e perdição.(20) A mesma cidade que, em Le paysan de Paris, Aragon atravessaria como se fossem campos cheios de ruínas.
 
As vistas de Paris por Charles Meryon, mostrando uma cidade inerte, petrificada, como se fossem imagens premonitórias da destruição, que trariam as reformas urbanas no Segundo Império, exemplificam para Benjamin esse processo de mobilização do observador. Não apenas a água-forte é um contraponto às novas técnicas de reprodução. As imagens de uma cidade mineral, como um sítio arqueológico, parecem se opor à mobilização geral da modernidade. Anunciam a aniquilação do espaço pela circulação, da mesma forma que alguns artistas contemporâneos, como Kiefer. Indicam o papel das novas temporalidades, velocidades e experiências de obsolescência na estruturação da memória visual. (21)
 
As galerias são um meio-termo entre a rua e o interior. Um espaço ambíguo. É um dos locais em que a metamorfose da cidade se processa. Ela transforma os bulevares em interiores. Cada passagem é "como uma cidade, um mundo em miniatura". A cidade numa galeria, num recinto fechado. A paisagem urbana como um skyline encerrado num globo de cristal, como um panorama. A cidade convertida em interior.
 
A cidade se descortina, na galeria, como uma paisagem. A iluminação a gás promove, em seu interior, a metamorfose da cidade em selva, em mundo astral. Até seus nomes sugerem espetáculo e terras exóticas, olhar e viajar: "Passagem dos panoramas", "Passagem do Cairo". "Passagem da ópera"... Nessa figura arquitetônica está sintetizado o princípio da articulação entre todas as coisas. As galerias são passagens entre o interno e o externo, o passado e o presente, a cidade e a natureza, o mundo conhecido e as distantes terras exóticas. A passagem é a construção arquitetônica do quadro mecânico.
 
Essa proliferação de dimensões e eventos num mesmo lugar é o fenômeno de sobreposição do espaço, o mesmo efeito provocado pela flânerie. Dá a perceber simultaneamente tudo o que se passa num único local. Fenômeno contemporâneo: uma superfície sem profundidade, onde tudo se inscreve, onde todos os planos se superpõem. Como uma tela de vídeo, uma interface. É por isso que os museus de cera, a forma mais acabada da coleção, se instalaram nas passagens: o múltiplo emprego das figuras nesses museus é o melhor exemplo desse efeito espacial.
 
A multiplicação infinita de significados suprime toda determinação local. O espaço é reduzido a uma mudança permanente de ângulos visuais, à neutralização de todo ponto de vista determinado. Ubiqüidade do observador em movimento, dilatação do espaço produzida pela abundância de espelhos, pela multiplicação das perspectivas.
 
As passagens são "galerias de reverberações óticas". A arquitetura funciona aqui como um aparato do olhar. Essa "arquitetura da visão" –que nada tem de contemplativa, remetendo antes à experiência tátil da arquitetura moderna – é outra figura barroca.(22) Nada nas arcadas – mundo de vitrines e espelhos – parece olhar. Tudo é, ao contrário, anonimamente observado – como numa anamorfose. É o triunfo do panóptico sobre o olho: a concretização moderna da "primazia da ótica", inerente à alegoria barroca. (23) O grande axioma do barroco: ser é ver. O olho barroco atribui primado ao dispositivo ótico. Pintura da pintura, espelho de imagens: a visão alegórica põe em cena o próprio Ver. O olho do pintor, como em As meninas, de Velásquez. Tudo é revelador da potência ocular.(24) O espaço arquitetônico aparece tal como visto num miriadorama, instrumento para ver miragens. A passagem é um dispositivo que permite ter uma visão completa do lugar – um "belvedere ótico". Suas superfícies interiores, as fachadas com letreiros e as vitrines espelham, difundindo ao infinito, todas as imagens da época.
 
As galerias eram também decoradas, em seu interior, com murais. Wiertz foi o grande pintor das passagens. Seus quadros – comportando muitos elementos do panorama – são realizados em dimensões gigantescas e procuram alcançar a mesma reprodução perfeita, em trompe-l’oeil, da realidade. Para ele, essas pinturas colocavam o problema do relevo, da ilusão irretocável de profundas perspectivas, resolvido pelo estereoscópio.(25) Um exemplo acabado da "pintura mecânica" do século XIX, Wiertz associava temas sociais e ilusionismo de relojoaria. Não por acaso Benjamin irá defini-lo como um "materialista mecânico".
 
Toda a cidade é construída como uma casa de espelhos. É também um traço barroco converter a cidade num teatro: não há distinção entre espaço real e ilusório, arquitetura construída e aparato cênico.(26) Supressão das fronteiras entre pintura e arquitetura, entre arquitetura e cidade. Tudo é objeto de percepção. O conjunto passagem-panorama-espelho é que funda esse paisagismo reflexivo – ótico – da cidade moderna. A galeria realiza o modelo ótico – o imperialismo do ver – do flâneur. (27)
 
O ilusionismo tem sua tradução na própria paisagem urbana: as perspectivas. Um dos princípios básicos do paisagismo, da visão panorâmica, tornar-se-ia no século XIX um leitmotiv do próprio urbanismo. Haussmann revoluciona o traçado de Paris, abrindo amplas e retilíneas vias sobre as ruelas tortuosas dos bairros antigos. Seu ideal urbanístico eram as visões em perspectiva através de longas séries de ruas. Tudo aqui é dispositivo cênico, construção ótico-mecânica.(28) A cidade toda é convertida num panorama.
 
A época das passagens coincide com o momento de maior difusão dos panoramas. Não por acaso eles eram construídos, muitas vezes, numa das extremidades das galerias. As "estampas de viagem" eram fixadas numa tela circular, com os espectadores no centro. Cada imagem passava por todas as posições das quais se podia ver, através de uma dupla janela, a "lonjura esmaecida" da paisagem. Uma estrutura de madeira formava a moldura das estampas. Todos os princípios do cinema já estão colocados aí. Assim, a intervalos regulares, as montanhas, as cidades com suas janelas reluzentes, os nativos distantes e pitorescos, as estações ferroviárias com sua fumaça amarela e os vinhedos nas colinas se retiravam, aos solavancos, para dar vez a uma outra imagem.
 
Os panoramas consistiam em grandes telas circulares e contínuas, pintadas em trompe-l’oeil, instaladas nas paredes de uma rotunda, com uma plataforma central elevada para o observador. Um espetáculo de ilusão ótica por efeito da direção e intensidade da luz sobre grandes quadros pintados, vistos a certa distância e de um local escuro. Mais tarde foram introduzidos elementos arquitetônicos e de cenografia, para aumentar os efeitos de profundidade e evitar soluções de continuidade. O panorama constituía um vasto quadro abarcando todo o horizonte do espectador, fazendo-o experimentar a sensação de estar contemplando uma paisagem como se estivesse no cume de uma montanha.(29)
 
Essa nova técnica cria uma relação diferente com a paisagem.(30) Tal como as construções de ferro e vidro procuravam fazer da cidade uma paisagem – "um mundo em miniatura" –, os panoramas tentavam se transformar, mediante artifícios técnicos, em "teatros de uma imitação perfeita da natureza". Os painéis reproduzem, minuciosamente, toda a cidade. "Rua por rua, casa por casa." Por isso, chamavam-se panoramas. Essa determinação a tudo ver, compartilhada pela literatura de folhetim, a obsessão classificatória do colecionismo, é a mesma dos aparelhos de olhar que proliferavam na mesma época. Todos buscam a miragem da visão total.
 
Os panoramas deixam transparecer um pathos típico do século XIX: ver. Tal como a natureza é trazida para a cidade, por sua vez, a cidade é convertida num horizonte natural. Nos panoramas, arremata Benjamin, a cidade ganha as dimensões de uma paisagem, como também ela o seria, mais sutilmente, para o flâneur. A mesma disposição a visitar outros tempos e lugares manifesta nas feiras e nas histórias de aventuras.
 
A comparação com a literatura de folhetim – espécie de "dioramas morais" –, feita primeiro com a experiência do flâneur, é válida também para os panoramas. O estilo, a diversidade e, sobretudo, a técnica de construção das fisiologias, o sistema de catalogação que distribui todas as coisas num painel, encontram um equivalente perfeito nos panoramas. "O primeiro plano, visualmente elaborado, mais ou menos detalhado, do diorama tem seu correspondente na roupagem folhetinesca dada ao estudo social, constituindo um amplo pano de fundo análogo à paisagem." (31) Uma disposição espacial onde tudo tem lugar, que teria sua forma acabada na "pintura mecânica".
 
O kinetoscópio satisfaz o olhar: o fundo negro e o centramento forçado do objeto limitam a amplitude do campo. Já nas vistas de Lumière, o olhar passeia, se perde: se exerce num campo. O cinematógrafo se integra no processo de liberação do olhar no século XIX. Como também contribuiria, mais tarde, o instantâneo fotográfico. Mas desde a camera ottica de Canaletto se configura uma visão do mundo como um campo de cenas potenciais, percorrido por um olhar que só se imobiliza para enquadrar.(32)
 
O panorama é o paradigma do olho móvel. Sua plataforma central, exígua, obriga o espectador a se deslocar, a girar o olhar. Alimenta a visão, limitando seu espaço. O verdadeiro início pode então ser localizado no trompe-l'oeil. E seu prolongamento cinematográfico no cine-olho – a câmera móvel –, de Vertov.
 
Uma completa reorganização do regime da visão – dos princípios da visualidade – está se processando aqui. A constituição do observador autônomo, sem referência a um lugar, móvel. O panorama circular quebra com o ponto de vista localizado da perspectiva pictórica, permitindo ao espectador uma ubiqüidade ambulatória. O mesmo esquema da visão do flâneur nas ruas. O diorama iria mais longe, retirando a autonomia do observador, situado numa plataforma que se movia lentamente, possibilitando vistas de diferentes cenas e mudanças nos efeitos de luz. O olhar é adaptado a formas mecânicas de movimento.
 
Tudo depende da variação da iluminação, mais fraca ou intensa, magnífica ou terrificante. A obscuridade inicial que reina sobre a cena dá, aos poucos, lugar à luminosidade quase imperceptível e difusa da aurora. Uma paisagem se desenha com crescente nitidez, as árvores saem da sombra, o contorno das montanhas e das casas torna-se visível. O sol eleva-se cada vez mais alto, por uma janela vê-se o fogo na cozinha da casa, e, no canto da paisagem, um grupo de camponeses está sentado em torno de uma fogueira, cujas flamas vão ficando mais vivas. A claridade do dia então diminui, até cair a noite. Mas logo o luar se faz sentir, e a paisagem torna-se novamente perceptível. No primeiro plano, acende o farol de um navio no porto, e, ao fundo, numa igreja sobre a colina, as velas do altar são iluminadas.(33) Todo o movimento do mundo, o fluir do tempo, se ofereceu na tela pintada, transparente, com pequenas fontes de luz instaladas atrás, que a clareiam com seu fulgor artificial. E a "arte de ilusão" dos dioramas, a paisagem como um quadro mecânico.
 
Daí a peculiar relação dessa arte dos panoramas com a natureza: uma tentativa extrema de imitar seu objeto. Fenômeno de "transição entre a arte e a técnica de copiar a natureza", o panorama implica resgatar o trompe-l'oeil, um realismo em que o objeto representado parece ao alcance da mão. Aquelas cenas instáveis e esmaecidas tinham o poder de suprimir as distâncias. Os dioramas, essas caixas que conservavam o antigo e o exótico, são "aquários do distante e do passado".
 
O mesmo vale para o fato de, nos dioramas, as mudanças de luminosidade que o dia provoca na paisagem se fazerem em apenas meia hora. Essa aceleração, precursora do ritmo do cinema, introduz – sinteticamente – o fator tempo. Como a flânerie, faz irromper o distante e o passado no aqui e agora. O dia escoa diante do espectador com a mesma velocidade que passa para o leitor de Proust. É o século do feérico, da sobreposição das dimensões, em que a técnica está a serviço da ilusão.
 
No panorama, a cidade se amplia em paisagem e, ao mesmo tempo, se converte em interior, miniatura. Alarga-se como um horizonte ao ser condensada num cenário. O panorama é, como as passagens, uma fantasmagoria de cidade. Aí reside, para Benjamin, o interesse do panorama: "nele é que se vê a verdadeira cidade". A cidade dentro de uma garrafa. Não viria daí o prazer eterno que – como o teatro, que fecha as portas logo que começa o espetáculo – proporcionam essas rotundas sem janelas?
 
Daí a semelhança com as galerias. Os passantes nas arcadas parecem habitantes de um panorama. Os dispositivos óticos – como as barracas de feira, os halls de exposições, os museus de cera e os pavilhões termais – não têm exterior. A cidade é construída em trompe-l'oeil.
 
A história do vidraceiro, contada em Le spleen de Paris, retoma a visão da cidade como um cenário, uma paisagem vista através das lentes de um caleidoscópio. Baudelaire percebe um vidraceiro avançando, em meio à pesada e suja atmosfera parisiense, em sua direção. Tomado de indignação, o poeta derruba-o no chão, aos gritos, quebrando seu carregamento de cristais: "Mas então não tens vidros coloridos? Vidros rosa, vermelho, azul, vidros mágicos, vidros do paraíso? Como ousas andar em bairros pobres, sem ter vidros que façam ver bela a vida!".(34) Não se trata, para ele, de cristais translúcidos, que permitiriam uma visão mais perfeita. Mas de vidros coloridos, puro artifício, capaz de metamorfosear aqueles tristes horizontes.
 
Uma paisagem técnica surge daí. Feita de fotos, tabuletas, folhetos de propaganda, revistas ilustradas e projeções do cinematógrafo. Um horizonte de imagens em duas dimensões, como um cartaz, erguido com figuras recortadas na superfície, fachadas e aparelhos.(35)

Zootrópico

O século XIX foi pródigo em artefatos maravilhosos – instalações de cenários, caixas de olhar, autômatos – capazes de reproduzir a abrangência de um olhar panorâmico sobre o mundo. Engenhos óticos e mecânicos – cujos exemplares mais simples eram encontrados nas feiras – que pareciam comportar, apesar da precariedade, o fascínio das grandes paisagens e dos lugares distantes.
 
Daí a atração que despertavam os dispositivos com espelhos e marionetes movidas a manivela. O próprio Baudelaire se interessa por eles, como demonstram suas descrições sobre o funcionamento desses pequenos aparelhos de magia. Benjamin também nos fala das barracas de brinquedos nas feiras antigas. As tendas de tiro ao alvo apresentam teatros, nas quais o espectador, se acerta na mosca, faz começar a representação. Uma porta se abre, e avança uma prancha de madeira onde bonecos encenam, automaticamente, com seus movimentos sincopados, episódios históricos ou de contos de fadas. Esses gabinetes mecânicos têm espelhos deformantes nas paredes, enquanto, oculto sob as mesas, o mecanismo de relojoaria que impulsiona as criaturas tiquetaqueia perceptivelmente. Os autômatos repetem seus gestos bruscos, até saírem de cena aos solavancos.(36) Com suas paisagens pintadas, feitas de pedaços desarticulados, também parecem quadros mecânicos.
 
O autômato é o equivalente, para o corpo humano, da paisagem mecânica. Esse fascínio pelo maquinismo – que nessa época aparece tanto no corpo como na paisagem – foi depois percebido pelo surrealismo. As figuras de cera, as bonecas, os manequins e os autômatos, metáforas da submissão do homem à disciplina da cadeia de produção industrial, aparecem como exemplo do estranho, do não-humano.(37) O maravilhoso que busca desajeitadamente transcender nossa condição.
 
As lanternas mágicas acabariam resultando, ao fim do desenvolvimento desses "aparelhos de fantasmagoria", nos panoramas e dioramas. As formas mais acabadas, antes da fotografia e do cinema, de reprodução da paisagem. Mas antes tivemos o panóptico – pan (tudo) + óptico (visão) –, sistema de construção que permite, de determinado ponto, avistar todo o interior de um lugar. Assim eram feitas as barracas com figuras de cera nas feiras, "manifestação da obra de arte total", em que se pode "não apenas ver tudo, mas ver tudo de todas as maneiras". O mesmo princípio que o panorama – pan (tudo) + orama (vista) – levaria para o exterior. Ideário máximo da época: obter a visão total, o olhar panorâmico.
 
Uma infinidade de outras máquinas de olhar a paisagem seria criada. Os estereoscópios (sólido + ver) e os panógrafos (tudo + grafo), instrumentos com que se obtém, numa superfície plana, uma vasta perspectiva circular. Além dos estereoramas: caixas com duas imagens nas laterais se refletindo em espelhos colocados no centro, o que provoca uma impressão de relevo, de perspectiva em profundidade. A ilusão de um objeto em três dimensões, o efeito da distância – o próximo e o afastado – produzido por meios óticos.
 
Havia também o ciclorama: grande tela semicircular, azul-clara, situada no fundo da cena de teatro, sobre a qual se lançam as tonalidades luminosas de céu que se deseja obter. Ou ainda aparelhos para a produção de movimento, como o kinetoscópio e, mais antigo, fenakistocópio, capaz de reconstituir também por jogo de espelhos o movimento contínuo de um indivíduo ou o passar do dia.
 
Ver imagens fotográficas pelo estereoscópio tornar-se-ia – ao serem produzidos industrialmente, a partir da metade do século – uma das formas mais populares de entretenimento. Logo havia um visor estereoscópico em cada sala de visitas. Uma placa estereoscópica consiste num par de cópias fotográficas positivas de um mesmo assunto, tiradas de dois pontos de vista ligeiramente diferentes, correspondentes à visão interpupilar. Colocadas no visor, as placas estereoscópicas produzem a ilusão de realidade. (38) A sobreposição delas resulta numa vista em profundidade. Acomodada a visão, o espectador sente o relevo dos objetos, pois, separados os planos, o espaço é ilusoriamente recriado.
 
A tridimensionalidade estereoscópica faz com que partes da imagem se projetem para fora. As figuras se distribuem em diferentes planos no quadro. O efeito não é, propriamente, de volume, mas de distintos planos sobrepostos. Como aqueles cartões que, ao serem abertos, dispõem suas figuras recortadas em diferentes profundidades.
 
O estereoscópio, embora distinto dos dispositivos óticos que produziam a ilusão de movimento, é parte da mesma reorganização do observador promovida pelos panoramas. Os efeitos estereoscópicos dependem da presença de objetos em primeiro plano. São próprios de um espaço obstruído, exatamente como as vistas congestionadas das cidades contemporâneas. Daí a profundidade nessas imagens ser essencialmente distinta da que é própria da pintura ou mesmo da fotografia. Cada elemento na imagem parece chapado, sem que se tenha entre eles um afastamento gradual, uma distância estabelecida. Há apenas uma sucessão abrupta. (39) Como um quadro mecânico.
 
Embora o objetivo seja a ilusão de profundidade, o dispositivo é superficial. Enquanto a perspectiva implica um espaço homogêneo e potencialmente mensurável, o estereoscópio revela um campo agregado de elementos disjuntos. Os olhos atravessam a imagem, vendo-a na sua tridimensionalidade. Mas apenas apreendem áreas separadas. Uma acumulação de diferenças, uma colagem de diversos relevos. O mesmo mundo não-comunicante que produziu a cenografia barroca ou as vistas urbanas de Canaletto. Uma justaposição de primeiro plano e fundo, perto e longínquo, passado e presente.
 
É o espaço contíguo do jardim botânico e do gabinete de história natural. Também o mesmo espaço liso, coleção amorfa de partes justapostas, construído por acumulação de vizinhanças com zonas de indiscernibilidade (entre linha e superfície, entre superfície e volume) que se percebe no mundo dos objetos fractais, na matemática, na arte moderna (com sua linha nômade que passa entre os pontos, as figuras e os contornos) e na cidade contemporânea. (40)
 
A pintura do século XIX também manifestaria algumas dessas características da imagem estereoscópica. Obras de Coubert, Manet e Seurat, com suas descontinuidades de grupos e planos, combinação de profundidade e achatamento, sugerem o espaço agregado do estereoscópio. Ao contrário do que comumente se afirma, o estereoscópio e Cézanne têm muito em comum. Ambos remetem à emergência do espaço construído oticamente.
 
A imagem estereoscópica parece composta – como na pintura – de múltiplos planos, dispostos do espaço mais próximo ao mais afastado. Mas a operação de leitura visual do espaço é totalmente diferente.(41) Quando nos deslocamos pelo olhar, de um plano a outro, dentro do túnel estereoscópico, temos a sensação de reajustar sua acomodação. A ilusão ótica da imagem estereoscópica corresponde à travessia de um panorama real. O tipo de percepção possibilitado pelo estereoscópio e pelo diorama, em que o espectador é transportado oticamente, é comparável ao do cinema.
 
Um outro modo de percepção do espaço, uma outra visualidade, estrutura-se aí. Diferente da contemplação tradicional, do dispositivo perspéctico criado pela pintura. As vistas estereoscópicas têm novas características perceptivas: profundidade e nitidez exageradas, isolamento do objeto e dilatação temporal da atenção (o olhar tem de percorrer mais lentamente cada detalhe da imagem). Princípios que já desvelam o dispositivo ótico que produz a impressão do panorama.
 
Não por acaso as imagens estereoscópicas eram chamadas de "vistas" – em vez de "paisagens". Aí se localiza sua especificidade. O termo evoca a profundidade espetacular da imagem e a autonomia do lugar, recortado do contexto natural. Por isso as "vistas" eram – como os retratos – associadas às narrativas de viagem (colportage). Como as fisionomias e o folhetim, pertencem à mesma vontade de catalogação dos tipos e lugares, característica do século XIX.
 
As "vistas" eram guardadas em móveis com gavetas, semelhantes a um arquivo. Todo um sistema geográfico, uma espécie de atlas topográfico se constituía assim. A paisagem – o lugar longínquo – é classificada e guardada. Atget, mais tarde, faria um mapeamento tipológico de Paris. Sua obra em muito se assemelha a um arquivo fotográfico – com as fotos divididas em seres e classes: as paisagens, a Paris pitoresca, a França antiga... O exterior no interior. O modelo sensorial estabelecido pelas "vistas" estereoscópicas não corresponde mais – antes mesmo da bidimensionalidade moderna – à estética pressuposta pela idéia de "paisagem".

Alphonse Bertillon

Cesare Lombroso
L'Homme criminel, 1887
Biblioteque du Musée de L'Homme, Paris

A fotografia e o cinema contemporâneos retomam procedimentos pré-modernos: classificação, tabulação, determinação das coisas pela relação entre elas e não mais isoladamente. A imagem carece de significação como coisa única, vale como elemento de um todo, de um quadro. Não por acaso as fotos de identidade não garantem mais a individualização desses anônimos, servindo apenas de material para tipologias.
 
Até o fim do século XVI, a linguagem era essencialmente um signo das coisas porque parecia com elas. Essa transparência foi destruída com o desastre de Babel: as palavras e as coisas, na formulação de Foucault, se separam. Daí o projeto enciclopédico: reconstituir pelo encadeamento das palavras a ordem do mundo. Um novo problema: como um signo pode ligar-se ao que significa? Para além das palavras do dia-a-dia, constrói-se então uma linguagem na qual reinam os nomes exatos das coisas. Essa nominação é a passagem da visibilidade imediata ao caráter taxinômico.
 
Essas abordagens estão mais próximas da história natural de Lineu (século XVIII) – dedicada a inventariar a forma e o nome de cada ente natural – do que de enfoques mais modernos, como de Humboldt, que passa dessa concepção da natureza recortada em figuras para uma perspectiva em que prevalece a visão de conjuntos paisagísticos. A catalogação feita nos gabinetes científicos é o oposto da visão panorâmica, o olhar lançado ao longe revela a intenção de captar o todo. Esses trabalhos sugerem um retorno à atenção enciclopédica de Lineu.
 
O filme Ilha das flores (1989), de Jorge Furtado, instaura o mesmo dispositivo de acumulação e organização. Não por acaso se passa num depósito de lixo. Tudo ali jogado – objetos deslocados de seus lugares convencionais, reduzidos a um monte de detritos – encontra outros vínculos, constituindo novas constelações. Aqui também temos a repetição obsessiva do esforço de nomear coisas que, no lixo, parecem ter perdido toda denominação. Vontade de restaurar uma cadeia de relações que, na verdade, só é possível pela justaposição de tudo naquela ilha-depósito. Dispositivos de contagem e enumeração do colecionismo. A própria montagem do filme tem caráter enciclopédico, a narração sempre recomeçando do primeiro objeto para reiterar as correlações estabelecidas. A Ilha das flores é, perversamente, um jardim botânico, o único que se pode ter hoje, coleção de espécies arruinadas.
 
A narração repete o tom de livros didáticos, exarcebado até a exaustão. O cosmos vai sendo definido através das mais aleatórias combinações, misturando informações científicas de almanaque e assertivas do senso comum. Um turbilhão classificatório que esvazia o sentido das coisas, levando a sintaxe ao limite.
 
As explicações acabam constituindo uma espécie alternativa de teoria explanatória do mundo. Onde não cabe, porém, a noção de verdade. As formulações sobre a sociedade dos homens, Marx, Freud e a religião não dão conta daquela ilha em que as pessoas são alimentadas com o resto de comida dos porcos, numa completa inversão de valores." (42)
 
Já a instalação Filme de curta-metragem e fenakistocópio (1994) é literalmente uma reconstituição de um desses antigos aparelhos óticos. O cinema aqui é visto quando o encadeamento brusco das imagens ainda deixava perceber a mecânica que sustenta o fenômeno ótico. São dois dispositivos conjugados: numa projeção, o homem-músculo, o operário-máquina, a mulher-esteira. Pessoas sem rosto, só corpo e movimento. O registro cinematográfico desse "trabalho escravo" é uma quase interminável repetição, os gestos encadeados correspondendo à sistemática fabril. O filme remete ao maquinismo do início do século XIX. Tudo funciona aos solavancos, como num antigo panorama ou presépio mecânico. Os indivíduos são reduzidos a autômatos. O mesmo fascínio pela mecanização perversa do corpo que os surrealistas evidenciavam pelo uso de manequins e bonecas desconjuntadas.
 
Ao lado, no aparelho ótico, o caleidoscópio de ofertas da cidade: máquinas de empacotar, botões a varejo, panelas de pressão, decalcomania e outras coisas anunciadas no Jornal de Serviço, de Carlos Drummond de Andrade. Cada uma das noventa ofertas do poema corresponde a uma imagem – xerox, polaroid, slides, cartuns, fotografia digital, desenhos, pinturas... Dentro do objeto, a ilusão de movimento se dá pela estroboscopia causada pelo movimento do objeto. Fora, a luz é estroboscópica, fixando por alguns segundos a imagem do objeto em movimento. Nos dois casos, o ritmo sincopado constitui, graças aos efeitos de persistência retiniana, mecânica da imagem. O fenakistocópio funciona aqui como uma grande coleção de imagens pop. Sua rotação proporciona a associação entre as imagens mediante a contigüidade e a justaposição.
 
Humorais (1993), de Rosângela Rennó, utiliza-se de retratos de identidade 3x4, descartados por estúdios populares cariocas, para refazer os antigos sistemas de classificação dos tipos humanos. Cada figura é apresentada numa caixa metálica, fechada por uma bolha de acrílico translúcido bastante convexa. São rostos in vitro. No interior da caixa, uma lâmpada emite a luz que atravessa um slide de película ortocromática. A imagem, medindo cerca de um metro de altura, é projetada segundo o princípio da lanterna mágica, um dos mais antigos dispositivos mecânicos.
 
Essa reconstituição remete a três sistemas classificatórios: a antiga doutrina dos temperamentos, a doutrina do retrato compósito e o Código Penal. Códigos que buscam compreender e administrar o comportamento humano. Primeiro a antiga doutrina dos humores galênicos, segundo a qual existem quatro fluidos corporais, cujo equilíbrio é essencial à saúde. O predomínio de um desses humores sobre os demais configura o desequilíbrio dos temperamentos bilioso, pletórico, fleumático e melancólico. Um sistema dos temperamentos, que distingue os diferentes tipos humanos em função da predominância de um determinado fluido corpóreo sobre os demais. Uma verdadeira taxonomia das fisionomias, dos tipos humorais, cada um denotando características físicas, comportamento moral e inclinações para atos ilícitos específicos. Rennó acrescenta ao inventário o contemporâneo, não previsto nos esquemas antigos, para incluir aqueles indivíduos sujeitos a "inclinações paradoxais". (43)
 
Os herbários e as coleções ajuntam as coisas num quadro. A história natural aparece como um espaço de variáveis simultâneas, concomitantes, sem relação interna de subordinação ou organização. Os jardins botânicos e os gabinetes desprezam a anatomia e o funcionamento, para destacar o relevo e as relações das formas. Substituem a anatomia pela classificação, o organismo pela estrutura, a série pelo quadro taxinômico. (44)
 
A taxinomia torna-se a constituição e a manifestação da ordem das coisas. Instauração de arquivos, estabelecimento de catálogos, de repertórios, de inventários. Mundo da classificação generalizada. Um grande quadro das espécies, dos gêneros, das classes.
Outra referência de Rennó é a doutrina do retrato compósito que esteve em voga no século XIX e previa a tradução visual de características comportamentais. Uma antropologia criminal, que utilizava a fusão de vários retratos fotográficos em uma única imagem para definir perfis raciais e padrões de comportamento. Toda a fisionomia setentista já se baseava no conhecimento do caráter a partir de traços exteriores; a leitura fisionômica implica coleções de retratos e perfis, justaposições de silhuetas humanas e animais. O conhecimento proporcionado por esse tipo de retrato é taxinômico: as partes são separadas do todo e classificadas em sua especificidade. O rosto é uma composição. Os retratos compósitos são "quadros mecânicos".
 
É o mesmo dispositivo de catalogação das fisiologias, que há muito tem sido a base do nosso Código Penal. A fotografia – no esteio de sua vocação ao colecionismo – servindo à identificação policial, aliás um dos primeiros usos que foram dados a essa nova técnica de produção de imagens. Cada humor corpóreo é assim apresentado numa redoma, enquanto, ao lado, outro cilindro apresenta a série correspondente de crimes previstos no Código Penal.
 
A fisionomonia aparece como uma representação de como reconhecer a partir do rosto e gestos de alguém suas tendências, boas e ruins. Entre os que se dedicaram a essa ciência, Cesare Lombroso estabeleceria uma verdadeira fisiologia do delinqüente.(45) Consistia em buscar em criminosos anomalias como queixo proeminente, falta de barba, estrabismo, maçãs do rosto proeminentes, cabelos espessos. O tipo resultante seria o Homo delinquens. Os stigmata degenerationis, as marcas da natureza que o homo delinquens traz no corpo, constituem os signos mais visíveis de uma escritura gravada no corpo de todo criminoso. A essência demoníaca da natureza. A antropologia criminal nasce, portanto, com a descoberta do selvagem, com a identificação do absolutamente estrangeiro. O reconhecimento fisionômico transforma o criminoso na personificação do outro.
 
O anonimato na metrópole coage a decifrar, em cada rosto, o caráter, as intenções, os sentimentos. As técnicas de decifração do rosto, de Le Brun e Lavater no século XVII à antropologia criminal de Lombroso, no século seguinte, descrevem um percurso que se inicia na identificação das paixões e culmina na classificação dos indivíduos.
 
São da mesma época os sistemas de identificação antropométrica de Bertillon. Na reforma que implementou do sistema usado pelo judiciário para estabelecer identidade, os presos são indexados a partir do aspecto mais persistente do corpo humano – o comprimento de seus ossos. Ele aperfeiçoou um sistema de classificação antropométrica que permitia estabelecer a identidade de um indivíduo através simplesmente de sete medidas, completadas pela impressão digital, informações sobre a cor dos olhos e fotografias de face e perfil. Não apenas o retrato de frente e perfil, mas também um sistema de mensuração de partes do corpo e a descrição verbal de elementos fisionômicos. Quando os pintores parecem ter definitivamente abandonado a teoria das proporções humanas, ela é retomada no domínio das ciências. A partir de 1830, a antropologia se põe a medir os prisioneiros, os criminosos, as prostitutas. Não por acaso esse esforço científico coincide com o apogeu da caricatura, o corpo desmedido. O oposto dos retratos em perspectiva de Piero della Francesca ou Dürer, cuja semelhança é quase matemática. De um lado a norma, de outro o excesso.
 
Os padrões clássicos de beleza – as proporções ideais – são substituídos pela medição das variações individuais. Um novo modo de tomar o corpo humano se consolida ao final do século XIX: a mensuração da forma humana. A compilação de dados sobre o indivíduo transpõe os limites das experiências científicas e das práticas judiciais para abarcar todos os campos em que esteja envolvido o corpo humano. Muybridge tentaria compilar um catálogo de todas as poses possíveis do homem em movimento, criando uma monumental enciclopédia que serviria de referência para pintores e escultores. Com a mesma intenção, um dos assistentes de Charcot no La Salpêtrière, Richter, fotografou centenas de homens e mulheres, classificados morfologicamente por rigorosos padrões de medida.(46)
 
Como evidenciar as singularidades de um rosto fotografado? Trata-se de caracterizar a imagem de modo que só subsista um pequeno número de traços, a partir dos quais a identidade possa ser estabelecida. Esse problema de interpretação está no cerne do trabalho de Bertillon. O retrato fotográfico só pode servir à identificação se os seus traços principais são selecionados pela linguagem. Deve-se "recitar" um rosto. O "retrato falado" consiste, portanto, em descrever fotografias.
 
Imagens de identidade judiciária: sempre dispositivos de esquadrinhar, medir, classificar. Uma tentativa de tipologização absoluta que leva ao limite a tradição da fisionomonia – todas as disciplinas que pretendiam codificar as relações que a morfologia corporal mantém com os caracteres, os temperamentos e as outras paixões humanas.(47) O "sistema de Bertillon" implicava a idéia de ascender do corpo à alma, de explicar uma pelo outro. Subjacente ao mecanismo classificatório, havia uma inferência dos corpos rumo às "disposições do espírito".
 
Da mesma forma, Duchenne de Boulogne, numa série de fotografias publicadas em Mecanismo da fisionomia humana, ou análise eletrofisiológica da expressão das paixões (1862) retoma as antigas "iconografias da insânia". Trata-se de explorar o rosto humano, eletrizando cada um dos músculos da face. Aplicando eletrodos na face de um paciente – alguém cuja falta de expressão constituísse o grau zero da fisionomia –, ele procurava expor suas formas básicas, "os signos da linguagem muda da alma".(48)

Guillaume Duchenne de Boulogne
Mécanismes de la physionomie humaine, 1856-1857
École Nationale Supérieure des Beaux-arts, Paris

Determinados rostos demandam a contração de um músculo complementar para que nasça uma expressão. Em outros, contrações simultâneas de diferentes músculos engendram expressões patológicas ou dementes. Experimentando todas as possibilidades de contração dos músculos faciais, Duchenne de Boulogne descreve uma tipologia das expressões: alegria, tristeza, desprezo, dor, medo. Uma "análise anatômica das paixões".

As fotografias de histéricas feitas no La Salpêtrière (1880) procuram fazer uma iconografia dos estados de espírito. Elencam as "atitudes passionais", como êxtase, apelo e erotismo, além de outras como angústia, desgosto e terror. O histérico, então, era tido por um tipo visual, não verbal. As imagens destacam as fisionomias das pacientes, tomando as expressões faciais como manifestações de histeria. Condições mentais somatizadas facialmente. O fundo das imagens é suprimido, os rostos tomam todo o quadro. A fotografia realiza um trabalho fisionômico.
 
A postura característica da Hysteria major entrou para o domínio da arte. O corpo arqueado da mulher sofrendo o ataque tornar-se-ia uma das referências da modernidade do fim-de-século, aparecendo tanto em Klimt quanto nos surrealistas. Da mesma forma que Degas não se interessou apenas pela cronofotografia de Marey, mas também por toda a ciência fisionômica derivada de Lombroso. A anatomia facial de sua Petite danseuse de quatorze ans correspondia às descrições que essa fisiologia fazia do crânio do "tipo degenerado".(49)
 
Mas, se algumas fotos são acuradas, outras parecem arbitrárias: como deveria ser um retrato da ironia? O problema é que essas imagens são de histéricas: aqui o que parece não é.(50) O sintoma é uma deformação das causas. A verdade dos sintomas não é o estado emocional, mas a doença. O que essas fotografias podem, então, realmente mostrar do rosto, janela para a alma? A fotografia aqui – quando o século XIX acreditava poder com ela tudo revelar – está apenas mostrando o sintoma.
 
O projeto de August Sander. em 1911, de estabelecer o catálogo fotográfico de todos os tipos de alemães, também exibe esse impulso a inventariar. Seus "retratos de arquétipos" adotavam os mesmos postulados das várias ciências tipológicas que se desenvolveram no século XIX, como a criminologia e a psiquiatria. Ele pressupunha que a fotografia revelaria, sobre qualquer rosto, os traços específicos da máscara social. Sander propunha-se a destrinchar a ordem social, subdividindo-a numa infinidade de imagens de tipos sociais. Nessas fotos, a cada indivíduo é consignado seu lugar. O contrário dos retratos feitos depois, na América, por Robert Frank ou Diana Arbus, que sugerem que cada homem é um pária ou um anormal, um estrangeiro na sua terra, inviabilizando todo trabalho de classificação.(51)
 
Rennó questiona justamente a possibilidade de a fotografia servir a esta função de índice do real, de garantir a identidade. Não por acaso utiliza-se de retratos de pessoas anônimas e desconhecidas. As fotos 3x4, originalmente em preto-e-branco, são coloridas à mão e retocadas. Objetos que põem em cheque a noção de "atestado de identidade", sempre associada ao retrato para documentos. Rompimento da ilusão especular da realidade proporcionada pela fotografia. Aqui a imagem não sugere a presença que emanava da velha foto, descrita por Benjamin, da vendedora de peixes. O retrato de identidade se desfaz.
 
Estes rostos deformados, desmedidamente ampliados, com a boca e o nariz muito grandes em relação aos olhos pequenos, parecem se modificar à medida que são contornados. O dispositivo das caixas, com o acrílico em forma de bolha, requer uma mudança na postura do observador. Enquanto a imagem em perspectiva convencional requer um olho imóvel, um ponto de vista fixo, a visão desses rostos pede um olho ativo, deslocando-se em torno da esfera. Essas imagens são verdadeiras anamorfoses.
 
Os surrealistas já produziam "objetos anamórficos". Numa foto de Man Ray, vemos uma estranha construção piramidal, em que o topo é a ponta de um cigarro e a base é formada primeiro pelo nariz e a testa de um rosto humano e depois por uma longa cabeleira em desalinho. Junto com Brassai e Kertez – mestres do informe –, ele faria inúmeros retratos de deformações anatômicas, por reflexos ou composições de corpos.
 
Para produzir esse "informe", a imagem do corpo seria submetida a assaltos químicos e óticos. Os métodos são fotográficos: ataques de solarização, que transformam as sombras que definiam os contornos dos objetos sólidos. Efeitos de corrosão ótica, que produzem uma reorganização do contorno dos objetos. (52) A luz ataca a fronteira dos corpos, que cedem à invasão do espaço. A matéria é consumida por uma espécie de éter. Ocorre uma inscrição do espaço no corpo. Dissolvem-se os limites entre a coisa e o entorno, entre aquele que vê e aquele que é visto. Nos retratos compósitos de Rosângela Rennó os rostos sofrem a mesma violência ótica.
 
A possibilidade de a fotografia garantir a identidade é discutida mais uma vez por Rosângela Rennó em Imemorial (1994), trabalho feito a partir de retratos 3x4 dos trabalhadores mortos quando da construção de Brasília. As imagens, retiradas de velhas fichas funcionais, ampliadas em película ortocromática, mostram feições desbotadas que já trazem estranhamente o signo da morte. Ninguém se lembra mais dos nomes dos sacrificados, dos acontecimentos que a crônica da época procurou mesmo ignorar. O documento fotográfico não foi capaz de evitar o esquecimento. Ao contrário, aqueles rostos retratados parecem ali condenados ao limbo. Brasília, monumento ao moderno, produziu mais um "imemorial".
 
In Oblivionem (1994) leva a fotografia ao limite da intransparência. A instalação consiste em fotos encaixadas, com suas molduras, dentro das paredes. Ao lado, textos também em baixo-relevo. As fotos – retiradas de álbuns de família –, em película ortocromática, parecem ser inteiramente escuras. Só um olhar atencioso, que se aproxime muito da superfície, vislumbra formas e vultos. Os textos, retirados de jornais antigos, são fragmentos de crônicas cotidianas, relatos de circunstância ou notícias irrelevantes. Nada que os trechos isolados e imagens quase imperceptíveis possam trazer à lembrança. Esses indícios tão tênues e opacos apenas ajudam a mantê-los no esquecimento.
 
Descontextualizadas, não sabemos mais a que se referem essas imagens e inscrições. Liberadas de seu compromisso de registro, do vínculo com acontecimentos determinados, podem apenas aspirar à instauração de outras situações, outras inscrições, outros significantes. Permitir contar novas histórias, constituir outras identidades, outros passados. Dar-se talvez uma imagem, fundar uma memória.(53) Uma rearticulação de passado, presente e futuro que mostra como a fotografia pode levar a pensar a história.
 
Não existe catálogo possível. Nada mais assegura o acesso a essas vidas passadas, os registros não têm qualquer valia. As fichas desse arquivo não trazem nenhuma informação útil sobre o paradeiro desses indivíduos, nada que nos permita identificá-los e resgatar seu itinerário. Aos passantes não é acordado nenhum olhar que – como em Baudelaire – os agracie com uma fugaz identificação.
 
Não há nenhuma expectativa de desvelar o significado das coisas. Esse invisível permanecerá para sempre inacessível. A fotografia em nada contribui para incrementar nossa capacidade de ver, de saber o que aconteceu. Todo o trabalho consiste numa investigação sobre os efeitos do tempo, do esquecimento, na memória registrada pela fotografia.
 
Tudo está em baixo-relevo, escavado na parede, mais um indício de falta de visibilidade e transparência desses registros. Nada se dá imediatamente a ler. Há um recuo, textos e imagens retiram-se do primeiro plano. Entre eles se estabelece uma distância que impede toda função ilustrativa e bloqueia toda explicação que constitua um sentido para o que estamos tentando ver. Ficamos apenas com vultos e fragmentos de textos que não articulam jamais uma história, que nunca poderão nos dizer quem eram e para onde foram aquelas pessoas. É como se a passagem delas por aqueles lugares não tivesse deixado nenhum rastro – função tradicionalmente atribuída à fotografia e à palavra.
 
A opacidade das imagens, quase completamente escuras, é o oposto da revelação – que convencionalmente relacionamos com a fotografia. Essas imagens não jogam nenhuma luz sobre os seres e fatos que retrataram. Eles permanecem para sempre condenados às sombras, ao esquecimento. É como se nunca tivessem sido fotografados. Esses registros de nada valem, apenas atestam o inexorável caminhar de tudo para a obscuridade.
 
A fotografia é contrastada com a sua vocação primeira: lançar luz sobre as coisas. A revelação – também constitutiva do próprio processo fotográfico – aqui não tira as coisas do anonimato. Essas imagens parecem, ao contrário, veladas. Rebaixadas nas paredes, mergulhadas profundamente na escuridão.
 
É como se a película ortocromática não conhecesse, propriamente, revelação. O que se vê assemelha-se a um negativo, em grande formato. O processamento é o mesmo do papel fotográfico, variando a base (filme em vez de papel) e a quantidade de prata. A particularidade está no processo de positivação, que explora as características físico-químicas do material, a saturação de prata. Ocorre um uso diferenciado daquele material, normalmente destinado à transparência. Aqui ele não dá luz.
 
No negativo, normalmente, as figuras aparecem mais escuras, enquanto o fundo fica mais claro. Aqui o negativo é pintado de preto, por trás. Contra um fundo negro, o que era escuro fica relativamente mais claro. O depósito de prata faz com que se destaquem os vultos. Tornam-se prateados ao incidir luz lateral. Temos apenas nuances de cinza, prateado e preto. Trata-se, diz a artista, de uma metáfora da opacidade: preto sobre preto. Uma imagem que se dá num preto: uma imagem impossível.
 
Aqui não há – ao contrário do que ocorre com outros artistas que trabalham a falta de transparência das imagens contemporâneas – nenhuma conotação tátil. Apenas a superfície lisa e opaca. O rebaixamento da imagem não cria espessura. A ênfase na superficialidade da imagem evidencia que ela não se cola a coisas e acontecimentos, que não serve para mapeá-los. Afirma o deslocamento dessas impressões com relação ao real, ao passado. Através dessas fotografias nenhuma identidade pode ser atestada, nenhuma história contada.
 
É evidente a atualidade da herança do século XIX para a arte atual. Esse inventário – anatomias, próteses, poses, dispositivos imagéticos e imagens, tudo coletado e catalogado – viria a ser para a arte moderna o que as escavações de Roma foram para o renascimento: um imenso repertório no qual se podem encontrar novos modelos para o mundo contemporâneo.(54)
 
O fenakistocópio de imagens de trabalho mecânico e ofertas de consumo, os rostos in vitro da coleção de humores e retratos de família em película ortocromática remetem aos antigos aparelhos óticos. Aqueles objetos, há muito anacrônicos – as passagens, os dioramas e as barracas de feira –, descortinam a paisagem como um "quadro mecânico". Como o sacudir de uma cúpula de cristal, fazendo nevar sobre o pequeno cenário urbano que encerra no seu interior.

NOTAS
 
[1] Essa noção de uma "nova visualidade" tem sido desenvolvida por vários autores norte-armericanos. Ver artigos reunidos por Hal Foster, Vision and Visuality (Seattle: Bay Press 1988).
[2] Jonathan Crary, Techniques of the Observer: on Vision and Modernity in the 19th Century (Cambridge: MIT Press, 1990).
[3] Davi Arrigucci Jr. Discute, em Humildade, paixão e morte, cit., através da obra de Manoel Bandeira, as possibilidades de uma poética moderna. Para ele, o “alumbramento”, o instante de revelação, é conciliável com uma visão moderna, na medida em que se dá no chão profano da vida cotidiana, em meio às coisas mais simples e banais. De onde o sublime é extraído, à força de um “estilo humilde”.
[4] Walter Benjamin, "O surrealismo", em Obras escolhidas, vol. I cit., p. 27.
[5] Walter Benjamin, "Paris do Segundo Império", em Obras escolhidas, vol. III, cit., p. 34.
[6] Michel Foucault, Les mots et les choses (Paris: Gallimard, 1966), p. 143.
[7] Willi Bolle, Fisionomia da metrópole moderna, cit., p. 331.
[8] J. Rignall, "Benjamin's Flaneur and the Problem of Realism", em Andrew Benjamin (org.), The Problems of Modemity (Londres: Routledge, 1989).
[9] Gilles Deleuze, Le pli: Leibniz et le barroque (Paris: Minuit, 1988), pp. 28-29.
[10] Walter Benjamin, "O flâneur", em Obras escolhidas, vol. III, cit., p. 190.
[11] Walter Benjamin, Diário de Moscou, cit., p. 125.
[12] Pascal Bonitzer, Décadrages, cit., pp. 43-44.
[13] Modesto Carone, "Nas garras de Praga", em Folha de S. Paulo, São Paulo, 3-1-1993.
[14] Charles Baudelaire, "Salão de 1859", em A modernidade de Baudelaire, cit., p. 139.
[15] Walter Benjamin, "Sobre alguns temas em Baudelaire", em Obras escolhidas, vol. III, cit., p.143.
[16] Walter Benjamin, Paris, capitale du XIX siécle: le livre des passages (Paris: Éditions du Cerf, 1989), p. 372. Essa imagem, para ilustrar a diluição – tipicamente barroca – da arquitetura e da cidade na natureza, na paisagem, reapareceria em alguns arquitetos contemporâneos, como Aldo Rossi.
[17] Walter Benjamin, "Paris do Segundo Império", em Obras escolhidas, vol. III, cit., p. 73.
[18] Gilles Deleuze, Le pli: Leibniz et le barroque, cit., p. 171. Ver também Walter Benjamin, Origem do drama barroco alemão (São Paulo: Brasiliense, 1985).
[19] Walter Benjamin, "O flâneur", em Obras escolhidas, vol. III, cit., p. 186.
[20] Jacques Le Goff, "O deserto-floresta no ocidente medieval", em O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval (Lisboa: Edições 70, 1990).
[21] Jonathan Crary, Techniques of the Observer: on Vision and Modemity in the 19th Century, cit., p. 21.
[22] Gilles Deleuze, Le pli: Leibniz et le barroque, cit., p. 30.
[23] Fabrizio Desideri, "Le vrai n'a pas de fenêtres: remarques sur l'optique et la dialetique", em Heinz Wismann (org.), Walter Benjamin et Paris (Paris: Éditions du Cerf, 1986).
[24] Christinne Buci-Glucksmann, La raison barroque (Paris: Galilée, 1984), p. 30.
[25] Walter Benjamin, Paris, capitale du XIX siécle: le livre des passages, cit., p. 546.
[26] Giulio Carlo Argan, História da arte como história da cidade (São Paulo: Martins Fontes, 1992), p. 173.
[27] Christinne Buci-Glucksmann, La folie du voir (Paris: Galilée, 1986), pp. 226-227.
[28] Bernini já concebia seus "propósitos arquitetônicos em função do panorama. A preferência pelas formas elípticas está em função daquela perspectiva natural que partia das propriedades do olho, e não dos teoremas geométricos, e que, portanto, levava em conta a visão binocular" (Christinne Buci-Glucksmann, La folie du voir, cit., p. 181).
[29] François Robichon, "Le panorama, spetacle de l'histoire", em Le mouvement social, nº 131, Paris, 1985.
[30] Sérgio Paulo Rouanet, "As passagens de Paris", em As razões do Iluminismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1987), p. 55.
[31] Walter Benjamin, Paris, capitale du XIX siécle: le livre des passages, cit., p. 547.
[32] Jacques Aumont, L’oeil interminable, cit., pp. 33-47.
[33] Walter Benjamin, Paris, capitale du XIX siécle: le livre des passages, cit., p. 701.
[34] Charles Baudelaire, "Le mauvais vitrier", em Le spleen de Paris (Paris: Le Livre de Poche, 1972), p. 40.
[35] Flora Sussekind, Cinematógrafo de letras (São Paulo: Companhia das Letras, 1987). A constituição dessa paisagem técnica no Brasil é localizada a partir dos anos 90 do século XIX.
[36] Walter Benjamin, "Rua de mão única", em Obras escolhidas, vol. II, cit., pp. 50-54. Para uma descrição dessas feiras, ver também Ernst Bloch, Héritage de ce temps (Paris: Payot, 1978) e Traces (Paris: Gallimard, 1968).
[37] Hal Foster, Compulsive Beauty, cit.
[38] Boris Kossoy, "A fotografia estereoscópica", em Iris, nº 308, São Paulo, setembro de 1978.
[39] Jonathan Crary, Techniques of the Observer: on Vision and Modernity in the 19th Century, cit., p. 125.
[40] Gilles Deleuze & Felix Guatari, "Le lisse et le strié", em Mille plateaux, cit.
[41] Rosalind Krauss, "Photography's Discursive Spaces", em The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths, cit.
[42] Observações de Mônica Rodrigues Costa.
[43] A emulação do invisível: imagens de Rosângela Rennó (texto não publicado de Margot Pavan).
[44] Michel Foucault, Les mots et les choses, cit., p. 143.
[45] Peter Strasser, "Cesare Lombroso: l’homme delinquant ou la bête sauvage au naturel", em L’âme au corps: arts et sciences 1793-1993 (Paris: Réunion des Musées Nationaux, 1993).
[46] Philippe Comar, "A Made-to-Mesure Identity", em Identity and Alterity, catálogo da 46a Bienal de Veneza, 1995.
[47] Philippe Comar, "Les chaînes d'art", em L'âme au corps (Paris: Réunion des Musées Nationaux, 1993). Ver também Philippe Dubois, O ato fotográfico e outros ensaios, cit., p. 241.
[48] Maurício Lissovsky, "O dedo e a orelha", em Acervo, n° l, Rio de Janeiro, 1993.
[49] Jean Clair, "Impossible Anatomy 1895-1995", Identity and Alterity, cit.
[50] Joan Copjec, "Flavit et Dissipati Sunt", em Annette Michelson (org.), October: the First Decade (Cambridge: MIT Press, 1987).
[51] Susan Sontag, La photographie, cit., p. 73.
[52] Rosalind Krauss, "Corpus delicti", em Le photographique: pour une théorie des écarts (Paris: Macula, 1990), p. 173, e The Optical Unconscious, cit.
[53] Ivo Mesquita, "Rosângela Rennó", em 6 artistas da XXII Bienal Internacional de São Paulo (São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1994).
[54] Destaque-se a curadoria de Jean Clair da 46a Bienal de Veneza (1995) e da exposição L'ame au corps: arts et sciences 1793-1993, Paris, 1993.
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